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A Apocalíptica Cristã

No documento A Norma do Novo_DTP (2) (páginas 137-140)

Um messias sofredor e morto, e um reino beatífico puramente espiritual e trans-

-histórico. Estas ideias, que posteriormente viriam constituir o núcleo da doutrina

cristã católica, não foram facilmente aceitas pela maioria dos cristãos primitivos. As ideias acima pareciam claramente desconectadas das escatologias correntes da época. Entretanto, a influência da apocalíptica judaica nos ensinamentos de Cristo é evidente, e evidente ainda é a própria origem histórica do cristianismo como mo- vimento messiânico judaico. Na profecia registrada por Mateus, por exemplo, vemos:

80 Ibid., p. 19 81 Ver Cohn; op.cit.

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“Porque o Filho do Homem há de vir na glória de seu Pai, com seus anjos, e então recompensará cada um segundo suas obras; e na verdade vos digo que existem alguns entre vós que não provarão a morte antes de haver visto o Filho do Homem vir ao seu Reino”.82

Muitos cristãos primitivos interpretaram tais passagens como a escatologia apocalíptica que lhes era familiar.

Da mesma forma que os judeus, os cristãos primitivos sofreram persegui- ções e opressões, e responderam às adversidades e sofrimentos com uma afir- mação cada vez maior de sua fé na iminência da época messiânica, onde termi- nariam seus males e seus inimigos seriam castigados e destruídos. Como era de se esperar, a forma como os cristãos imaginaram a grande transformação seguiu basicamente as apocalípticas judaicas.

A maioria dos judeus considerava a história dividida em duas épocas: an- tes e depois da vitoriosa e gloriosa vinda do messias. O fato de que se referiam frequentemente à segunda época como os últimos dias, ou o mundo futuro, não significa que anteciparam um repentino cataclismo final de todas as coisas. Ao contrário, durante muito tempo, um grande número de cristãos estava con- vencido não só que Cristo voltaria logo, como também que, quando voltasse, estabeleceria seu reino messiânico sobre a Terra. E esperavam confiantemente que este reino iria durar, ou por 1000 anos ou por tempo indefinido.

Na apocalíptica conhecida como o Apocalipse de João, ou o Livro da Reve-

lação, os elementos cristãos e judeus misturam-se em uma profecia escatológica

de grande forma poética. Aqui, da mesma forma que o predito no sonho de Daniel, uma terrível besta de 10 cornos surgiria e governaria o mundo durante um período. Esta besta simbolizava o último poder mundano na Terra, entendi- do, à época, como o Império Romano. Ao término deste período - o milênio no

sentido literal - ocorreria a ressurreição final dos mortos e o Juízo Final, quando

então aqueles cujos nomes não se encontrassem escritos no livro da vida, seriam jogados no lago do fogo, e a Nova Jerusalém desceria do céu para converter-se na morada dos santos para toda a eternidade.83

82 COHN, Norman. The Pursuit of the Millenium, 1961; tr.esp. En Pos del Milenio. Revolucionarios

Milenaristas y Anarquistas Misticos de la Edad Media, 1972; p. 25

83 Ver COHN, Norman. The Pursuit of the Millenium, 1961; tr.esp. En Pos del Milenio. Revolucionarios

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A inclusão da Revelação de João no cânone cristão-católico (na Bíblia) teve consequências importantíssimas, pois com a Revelação foi aceito, no interior da dog- mática cristã, o anúncio revolucionário do milênio em que Cristo reinaria com seus san-

tos nesta Terra. E mais, esta inclusão não apenas sancionou a permanente efetivi-

dade dentro do cristianismo da vasta literatura apocalíptica judaica, como também suscitou a questão de como o milênio poderia ser conciliado com a ideia da exis- tência da Igreja, principalmente de uma Igreja cada vez mais presente e poderosa.

Isto porque, conforme aponta Eric Voegelin, se o cristianismo consistia: 1) num desejo de libertação das coisas deste mundo; 2) na expectativa do fim da his- tória não redimida; e 3) num destino somente realizado pelo Reino, no sentido do capítulo segundo da Revelação de S.João, a Igreja ficava reduzida a uma comunida- de efêmera de homens à espera do Grande Acontecimento, na esperança ainda de que este Acontecimento pudesse ocorrer no transcurso de suas vidas.84

De acordo com o Apocalipse de João, a segunda vinda ocorreria imedia- tamente. Entretanto, conforme dito acima, à medida que a Igreja consolidava- -se e institucionalizava-se, esta compreensão de uma segunda vinda iminente enfraquecia-se. Por exemplo, a segunda epístola de Pedro, escrita em meados do século II, fala que Cristo poderia atrasar a sua segunda vinda, e só o faria quan- do todos se arrependessem e fizessem penitência. Começou, assim, um processo de reinterpretação e especulação sobre a segunda vinda que será cada vez mais intenso, processo este que desaguará na interpretação simbólico-alegórica sobre o milênio de S.Agostinho no início do século V, de desautorização das apocalíp-

ticas cristãs, até o ponto de permitir-se apenas, canonicamente, a Revelação de

S.João; e esta somente permaneceu porque foi erroneamente atribuída ao após- tolo de mesmo nome. Assim, a partir destas interpretações “mais oficiais” e com- preensões cada vez mais simbólicas e alegóricas sobre o millenium, um número crescente de cristãos começou a crer no milênio como uma possibilidade remota e não como um acontecimento iminente e presente em suas vidas concretas. Viria, sim, na consumação dos tempos. O Reino dos Santos, iminente ou não, começou a ser imaginado e interpretado, então, de maneiras bem diferentes.

Vários teólogos e filósofos continuaram a pregar a essência das apocalípti- cas (Irineu de Lyon, Lactâncio, Commodiano, et al.), mas, como dissemos, pau- latinamente, com o fortalecimento e a institucionalização da Igreja, as apoca-

84 Para um aprofundamento ver VOEGELIN, Eric. The New Science of Politics, 1952; tr.port. A Nova

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lípticas serão vistas, oficialmente, como mensagens alegóricas. A Igreja passou a interpretar que seria, ela mesma, o “Apocalipse de Cristo na História”.

De todo o exposto podemos afirmar, então, que a vida das primeiras co- munidades cristãs não era fixa; oscilava entre a expectativa escatológica da Pa- rusia na Terra, que traria o Reino de Deus aos homens, e a compreensão da Igreja como ela mesma o Apocalipse de Cristo na História. Como nos demons- trou Voegelin, nas pegadas do livro de Norman Cohn, não tendo ocorrido a Parusia, a Igreja evoluiu, doutrinária e canonicamente, da escatologia do Reino

na história para a escatologia da perfeição trans-histórica e sobrenatural.

E nessa evolução, a essência do cristianismo separa-se, então, da sua ori- gem histórica.

No documento A Norma do Novo_DTP (2) (páginas 137-140)