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Propriedade Industrial e Modernidade (A originalidade e a Unicidade desta Tese)

No documento A Norma do Novo_DTP (2) (páginas 57-63)

Até o presente momento, supor e afirmar-se que o sistema de patentes de invenção, que surge de maneira relativamente estável no século XV em certas repú- blicas italianas (como Florença e Veneza), fruto de um lento e progressivo capítulo das concessões de privilégios e patentes individuais ou coletivas desde o século XII na Europa, e se consolida em 1623 na Inglaterra com o Estatuto dos Monopólios, foi uma decorrência da modernidade, não necessita de maiores especulações e confir- mações. A própria constatação cronológica assim o demonstra.

Entretanto, este trabalho buscará demonstrar, adicionalmente, que o direito de patentes de invenção clássico, não somente decorre das profundas transformações filosóficas, culturais, artísticas, políticas, econômicas e sociais da modernidade, como é um dos “direitos fundantes” da própria modernidade; é, por assim dizer, o direito norteador dos profundos movimentos intelectuais, sociais e econômicos no rumo ao Moderno. E mais, como explicado na “Apre- sentação” deste livro, o sistema das patentes (de invenção, de introdução, etc.) é a síntese normativa ou a síntese institucional do mundo moderno.

Na compreensão, revolucionária, de John Commons e de Thorstein Ve- blen, por exemplo, trata-se mesmo da instituição fundante e do direito inaugu- rador do próprio capitalismo, na medida em que o reconhecimento das ideias inventivas passíveis de utilização industrial, expressas em propriedades (proper-

ties), i.e., a ideia da proteção exclusiva dos intangíveis (ou do good-will como um

todo), é uma verdadeira revolução institucional, “prévia”, que organizará e des- lanchará todo o ciclo da Revolução Industrial de nossa época contemporânea.

As categorias normativas orientadoras do direito de propriedade sobre obje- tos técnicos e ideias inventivas, isto é, os conceitos estatutários como norma legal direcionante do Estado moderno quanto à proteção às invenções e à concessão de patentes, são relativamente simples, mas extremamente profundos. Refletem, de forma simples e objetiva, o importante núcleo transformado do universo simbó- lico da metafísica clássica, para o universo simbólico da filosofia moderna, isto é: a) a novidade sucessiva como conduta explícita e base da concessão do privilégio ou do direito;

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b) a atividade inventiva como reafirmação da obrigatoriedade dos passos absolutos de novidade;

c) a utilidade industrial (a transformação recorrente do ambiente humano metamorfoseado já em puro objeto de manipulação com vistas à construção de um ambiente crescentemente artificial ou de uma segunda Natureza);

d) a descrição clara e objetiva do objeto protegido, isto é, a lógica da identi-

dade e da representação definitivamente confirmada pela superação da leitura

analógico simbólica do período precedente;

e) a temporalidade. O tempo propriamente diacrônico, aliado ao imperati- vo da novidade, implicando uma sucessiva destruição criadora no interior tanto dos processos produtivos, como nas concepções de mundo. Rompe, assim, por princípio, qualquer referência à estabilidade, tanto tecnológica como epistemo- lógica, fundamento da própria desconstrução ética da modernidade; ou seja, rompe, por princípio, a estabilidade do ethos tradicional;

f) a indicação clara da titularidade do direito, ou do privilégio, para o indi-

víduo, ou para um indivíduo; indicando o predicado e o valor da subjetividade, ou

dos interesses individuais, no desenvolvimento da nova ordem socioeconômica. Assim, as normas estatutárias expressas nas leis de propriedade industrial, especificamente nas leis de patentes de invenção, conforme veremos, compõem uma perfeita síntese, pronta e fácil de operar na práxis moderna, isto é, gravita- da na órbita do fazer (da poiésis), das posturas e vontades subterrâneas típicas do homem moderno. Refletem ainda, normativamente, como corpo doutrinário de vontade política explícita do Estado moderno, as condutas e os impulsos mais típicos da alma e da filosofia dos nominales terministae, ou seja, dos modernos, como foram designados a partir dos séculos XIV e XV.

Em suma, se o novo, impulso correlato vinculado à futurição e ao quilias- mo, conforme veremos, é o principium importans ordinem ad actum da moderni- dade, isto é, o princípio que rege a ação dos tempos modernos, ou, nas palavras de Karl Jasper (Descartes und die Philosophie, 1948), se o novo é o ímpeto cons- tante na valoração da personalidade original típica da exigência de distinção do homem renascentista que se propaga como predicativo axiológico de toda a modernidade, então o direito patentário é o fundamento normativo do mo- derno. É a Norma do Novo. E, consequentemente, da modernidade tout court.

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Hans Jonas dirá que os séculos XVI e XVII são tempos “pregnant with change … A sign of this spreading mood is the currency of the word new, whi- ch from the sixteenth century on we encounter all over Europe (and much early in Italy) as a commendatory epithet”.11

Na cultura greco-romana, e mesmo em grande parte da Alta Idade Média, a referência ao passado, à tradição, à experiência, ao tempo primordial, etc., era valorizada como fonte de sabedoria, e um apelo à tradição era o eixo axiológico maior. Os princípios e a gênese eram os fundamentos e as fontes das ações e da dignificação do homem; e da própria sabedoria e do conhecimento:

«Antiquity served as the stamp of confirmation on the value and truth of beliefs about the nature of things. The source of truth lies with the ancestors who were nearer to the gods and more attuned to the undim- med voice of the world. (...) Rarely before the onset of the modern age is novelty invoked in favor of a venture or a vision”.12

Tudo isto se transforma a partir do fim da Idade Média. Um crescente uso de expressões como novo, novidade, inovações, etc., tem lugar no espaço das ativi- dades humanas: nas artes, no pensamento e nas atitudes. Uma verdadeira verbal

fashion pela palavra “novo” dissemina-se pela Europa moderna, dos séculos XII

em diante. Um novo espírito revisionista, irreverente e mesmo corajoso transfor- ma o termo novo - anteriormente depreciativo - em um adjetivo respeitoso.

«Respect for the wisdom of the past is replaced by the suspicion of har- dened error and by distrust of inert authority ...».13

Até o advento da modernidade era natural acreditar-se que olhar para o passado era olhar numa perspectiva de grandeza e maturidade. Éramos recepto- res de uma sabedoria mais antiga. A modernidade, ao contrário, irá afirmar que todo o passado é infantil, e que “o nosso tempo” é a maturidade que nos perten- ce, numa contradição evidente, pois o impulso para adiante, que se encontra no ventre da modernidade, faz com que este “presente maduro” seja precisamente

11 JONAS, Hans. Philosophical Essays, from Ancient Creed to Technological Man, 1974; p. 49 12 Ibid., p. 49

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e conscientemente o infantil de amanhã, ou seja, este presente maduro já nasce infantil, em uma lógica de perpétua “destruição e desvalorização”.

O que é interessante e único na ruptura da modernidade é que a ruptura não se apresenta como um evento singular que ocorre “no início”. Em todas as grandes rupturas históricas, a autoridade dos fundadores revolucionários logo era incorporada na nova ortodoxia. Entretanto, «the break at the beginning of the modern age embodied a principle of innovation in itself which made its constant further occurrence mandatory”.14

Como consequência radical e importante, na modernidade, a relação de cada fase com o próprio passado precedente (igualmente uma revolução) “re- mained that of critique and overcoming for the sake of further advance”. Sob o símbolo do progresso permanente, toda a história se transforma em história críti-

ca, conforme indicou Nietzsche. O “revolucionarismo”, assim, é uma espécie de

ortodoxia da modernidade, isto é, uma rotina estabelecida: “It made the revo- lution permanent, irrespective of whether its agents were still revolutionaries”.15

A busca de uma compreensão mais propriamente filosófica ou compreen-

siva sobre o tema da propriedade industrial, e especificamente das patentes de

invenção, ocorreu-me através de dois grandes universos informacionais com- pletamente distintos entre si: um, eminentemente prático, fruto de experiên- cias a partir de vários encontros e reuniões governamentais internacionais, por cerca de onze anos seguidos e intensos, onde tive a oportunidade de presenciar as imensas dificuldades atuais em se adaptar o direito tradicional de patentes de invenção aos novos objetos tecnocientíficos. Uma verdadeira encruzilha-

da semântica estabeleceu-se na atualidade quanto às possibilidades reais (e

minimamente inteligentes) de se designarem as novíssimas tecnologias, base irrenunciável para a determinação precisa dos claims nas patentes, isto é, das propriedades específicas dos titulares das patentes.

A experiência, a vivência concreta nos principais organismos internacio- nais que lidam com a matéria, e o estudo destas dificuldades e impossibilidades cognitivas conduziu-me à busca e ao estudo de razões mais profundas e clara- mente filosóficas, isto é, mais compreensivas, sobre as reais impossibilidades re- presentacionais, cognitivas e descritivas dos objetos e processos tecnocientíficos

14 Ibid., p. 51 15 Ibid., p. 51

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que buscam expressões claras nos documentos de patentes, ou nos pedidos / depósitos, sem ferir ou invadir titularidades anteriores.

Este segundo universo informacional, teórico-filosófico, por assim dizer, chegou-me inicialmente através de estudos sistemáticos individuais, e também do reencontro, nos cursos de doutorado da COPPE/UFRJ, entre 1991 e 1995, com amigos / professores que não haviam interrompido suas atividades mais especificamente acadêmicas e filosóficas, conforme indiquei na “Apresentação”.

No início, no campo da Comunicação e da Arte, devo muito às ideias contidas no conhecido e estimulante livro de Michael Foucault, Les Mots et les

Choses, de 1966, e de um livro bastante sugestivo, quase que único sobre o tema

até a sua publicação original, de Manfredo Massironi, Vedere con il Disegno (Ver

pelo Desenho), de 1982.16

Impossível deixar de fazer referência, ainda nos primeiros estágios destes meus estudos e especulações, aos livros e às teses de Rudolf Arnheim (1980, 1985), Ernst Gombrich (1959), Umberto Eco (1965, 1968, 1973, 1987), Erwin Panofsky (1955, 1927, 1957, 1939), Pierre Francastel (1951, 1965 1983), Lewis Munford (1952), René Alleau (1976), Ernst Cassirer (1923-29, 1944), e outros (ver Bibliografia).

Em uma segunda etapa, fruto de uma leitura mais direcionada para a colo- cação do tema no interior do entendimento sobre a transição da metafísica clás- sica para a filosofia moderna, não posso deixar de fazer referência, em primeiro lugar, a uma parte da erga obra de Henrique de Lima Vaz (S.J.), e de vários outros livros e artigos de autores importantes, como Norman Cohn (1961), Eric Voegelin (1952), Walter Rehfeld (1994), Manfredo Oliveira de Araújo (1989), Alexandre Koyré (1973, 1939), Hannah Arendt (1958), Hans Jonas (1974), Hans Freyer (1955), Ortega y Gasset (1933), Reale/Antiseri (1986), Jacques Ellul (1954, 1977), E.Nasr (1968), Ivan Domingues (1991, 1994), e outros.

No campo especificamente contemporâneo dos problemas concernentes à propriedade intelectual, além da ampla bibliografia corrente, indicada na bibliogra- fia, busquei incorporar as questões e as teses citadas por três significativos escritores: Norbert Wiener (1950); André Lucas (1975) e Jean-Pierre Chamoux (1985)

16 Massironi recebeu, obviamente, forte influência de Jacques Bertin, autor do importantíssimo livro “Semiologia Gráfica”, de 1967

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