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Os Limites da Mimese Clássica e da Representação Objetiva do Ser,

No documento A Norma do Novo_DTP (2) (páginas 111-116)

e a Lógica da Atribuição Analógica

(primeira Aproximação)

Conforme vimos no capítulo anterior, a metafísica clássica definiu a re- alidade dos fenômenos perceptíveis (a percepção direta dos fenômenos) como sendo uma existência imprecisa e incompleta do Ser, isto é, da essência imutável (o universal ou arquétipo); e fez da indagação da entidade do ente a pergunta digna e primordial da reflexão e da verdade filosófica e científica.

As coisas e os entes (os particulares) foram entendidos como imagens im- perfeitas, mutáveis e corruptíveis das Ideias imutáveis ou dos universais.

Apesar do milagre grego no processo representacional e estético, isto é, a

invenção do escorço, a ilusão volumétrica da profundidade nas obras artísticas,

a mimese, em suma, um certo realismo representacional, estas possibilidades re- presentacionais fidedignas e miméticas se configurarão, principalmente a partir de Platão, como uma ilusão da possibilidade representacional dos universais ou das Ideias, isto é, das essências imutáveis ou do conceito.

“Para o estudo da mimesis, partimos de Platão e Aristóteles, porque toda a teoria posterior da arte mimética é sempre uma retomada dos conceitos formu- lados por esses filósofos”.42

De acordo com Platão, as essências ou os universais são para serem con- templados na quietude e no silêncio (intuito) do filosofar, e não para serem re- presentados ou figurados.

Em termos técnicos, o conceito de mimese é bastante complexo, poden- do englobar diversas conotações relativas à arte como imitação de um objeto exterior à obra. “Havelock, em Preface to Plato, diz ser ela uma palavra ver-

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dadeiramente protéica, englobando os mais variados conteúdos. Seu sentido dilata-se e contrai-se ao longo da história”.43

O termo mimese (ou mimesis), no campo da arte, é empregado normal- mente ao lado dos conceitos de realismo e de naturalismo. Expressa a qualidade de transparência e clareza de uma obra, do ponto de vista representacional iso- mórfico, bem como o “desejo de apreender o visível, tornando-o verossímil ao olhar. (...) Tal desejo motiva o pintor, ou o artista, a criar figuras convincentes, a buscar efeitos escultóricos, a sugerir o espaço tridimensional em uma superfície plana, através de recursos ilusionísticos e de trompe l’oeil, e o fruidor/utente a responder também à realidade produzida que na obra se reflete”.44

A crítica e a negativa platônica da mimese como uma possibilidade concre- ta e fidedigna de representar o real será importante e determinante para o curso posterior da estética e da filosofia da arte de toda a civilização ocidental. É Platão, neste sentido, que funda os alicerces da impossibilidade representacional absoluta (pois ilusória) do Ser (do universal) nas obras artísticas e na pintura, até aproxima- damente os séculos XIII, XIV e XV, quando então, com a escolástica, o conceito de mimese ganhará uma dignificação figurativa crescente, e uma nova conotação, bem diferente inclusive, da conceituação de mimese utilizada na metafísica clássica.

Platão, em A República, fez um confronto que se tornou decisivo pelas implicações filosóficas que encerra, entre Arte e Realidade. Levando em conta o caráter representativo da pintura e da escultura, Platão concluía não só que essas artes estão muito abaixo da verdadeira Beleza que a inteligência humana se destina a conhecer, como também que, em comparação com os objetivos da ciência, é supérflua a atividade daqueles que pintam e esculpem, pois o que produzem é inconsistente e ilusório.45

O conceito de mimese inscreve-se, portanto, no que poderíamos designar como “atmosfera estético-filosófica do platonismo”, que nos remete a uma visão do mundo em que a realidade sensível é apenas sombra, reflexo e imitação im- perfeita de outro mundo original, esplêndido e perfeito: o mundo eidético (dos universais e das Formas), onde se encontram as Ideias puras e eternas, confor- me vimos anteriormente.

43 Ibid., p. 8 44 Ibid., p. 9

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A arte e as figurações artísticas, remetendo ao sensível, aos fenômenos, seriam então sombras da sombra, reflexos do reflexo, imitações mais imperfeitas ainda do que já era imitação imperfeita. A arte, portanto, por seu caráter imita- tivo, estaria afastada completamente do mundo das ideias e o “artista nada sabe do verdadeiro Ser, estando sua obra três vezes afastada do real”.46

Em outras palavras, como nos aponta Benedito Nunes ao descrever a concep- ção platônica, o “pintor e o escultor imitam as coisas desse mundo, que o Demiurgo já copiou erroneamente da realidade perfeita. O mérito desses artistas é diminuto e mesmo nulo. Que adianta, pergunta Platão, reproduzir aquelas formas que são inferiores, terrenas e sensíveis quando há outras, supremas, que justificam o esforço do conhecimento intelectual? A pintura e a escultura não imitam a ideia, a forma essencial, que é a verdadeira realidade, mas a aparência sensível, já ilusória, defectiva, imperfeita que o conhecimento intelectual tem por fim ultrapassar”. 47

Para usarmos o exemplo de Platão, a mente do artesão, que concebe a forma de uma cama, fazendo-a passar a uma dada matéria (hoje chamaríamos de um projeto), está mais em contato com a Ideia universal, de que participam todas as camas possíveis, do que o pintor que reproduz a figura singular de um destes objetos existentes, isto é, de uma cama concreta.

Portanto, a obra de arte e a figuração dita fidedigna (a mimesis), colocada na hierarquia dos seres, estariam abaixo da própria realidade sensível, que é aparência da verdadeira. Admitindo-se que as artes imitam, elas não podem reproduzir mais do que esta aparência.

Nesta concepção, o artista imita por deficiência de conhecimentos. Se fosse verdadeiramente sábio, não trocaria a realidade, transcendente, pela apa- rência. “Sua práxis é apenas um jogo, uma atividade gratuita, que nada tem de séria, e que pode, contudo, aumentando a sedução equívoca da matéria sobre a sensibilidade, enredar a alma na trama de falsos sentimentos e emoções”.48

O pintor focalizado no Livro X d´A República de Platão é uma espécie de pres- tidigitador, um ilusionista, capaz de fabricar não só todos os móveis, mas também as plantas e os animais, inclusive ele próprio, e, ainda por cima, a terra, o céu, os deuses e tudo o que existe no céu e debaixo da terra, no Hades. É semelhante a um

46 Platão; A República.

47 Para um aprofundamento ver BENEDITO, Nunes. Introdução à Filosofia da Arte, 1989; p. 12 48 Ibid., p. 39

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homem que tem nas mãos um espelho capaz de refletir tudo o que pode existir, mas que, como este, cria apenas aparências; é imitador daquilo que os outros fabricam e está assim bem longe da verdade; "se pode fazer todas as coisas é porque não alcança senão uma pequena parte delas, parte esta que é mero fantasma”.49

A concepção de mimese em Platão está intimamente ligada à rígida con- cepção hierárquica da realidade, o que impede a forma ideal de manifestar-se no mundo sensível. Conforme nos esclarece W.Y.Werdenius, na concepção pla- tônica de mimese, a Beleza não se encontra em qualquer objeto particular, mas existe por si, singular e independentemente. Esta ideia platônica de transcen- dência é atenuada pela ideia de exemplaridade: a matéria, substrato do mundo físico, é a irracionalidade absoluta, a necessidade, o não-Ser, a chora, como diz Platão no Timeu, o oposto do Ser (e da ousía), ou do mundo das ideias e dos ar- quétipos. Mas o Demiurgo, o Artífice Divino decaído, quando a ordena, o “faz à imitação do mundo das ideias e deseja que tudo seja tanto quanto possível igual a Ele”. Assim, podemos entender que um pálido reflexo do brilho divino subsis- te em todos os planos da realidade, sobretudo no que se refere à Beleza, já que no Fedro Platão afirma que de todos os valores ideais só a beleza se manifesta sensivelmente e é luminosa através do sensível.

Como explica igualmente Platão, no Fedro, todas as almas vislumbraram um dia o mundo das essências antes de terem precipitado no sepulcro que é a carne. Lá, conheceram o Bem, a Beleza, a Verdade e a Justiça. Decaíram, corromperam- -se ao se ligarem ao corpo e à matéria, mas para além da fantasmagoria dos sen- tidos e dos fenômenos guardam uma lembrança do que um dia contemplaram.50

Assim, os homens não poderiam conhecer (neste caso recordar) as essên- cias se estas lembranças já não estivessem neles. No fundo de suas almas, guar- dam como que um tesouro que deve ser desenterrado e restituído ao primitivo esplendor que o corpo ofuscou. E as coisas sensíveis, da realidade fenomênica, podem ser um estímulo a essa tarefa.

“As coisas belas não são o Belo, mas contribuem para despertar na alma a Beleza primeira, para fazê-la recordar a Beleza esquecida. Conhecer é recordar, é superar a queda, é libertar-se do humano, é transcender”.

49 Platão, A República, p. 384

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Logo, para Platão, a verdadeira arte, e as possibilidades representacionais artísticas ou figurativas, não se limitam aos modelos visuais, não se apegam a um realismo servil absolutamente isomórfico-mimético, como será construído paulatinamente em nossa modernidade a partir dos séculos XII e XIII, e cuja situação histórica emblemática será o Renascimento italiano, e posteriormente o realismo consciente do século XVII.

Aristóteles também irá se referir à arte como imitação, como mimese, mas num sentido todo próprio, bem mais próximo do conceito de verossimilhança, rejeitando a dialética platônica da essência e da aparência.

Para Aristóteles, se a arte é mimese (imitação), ela é antes imitação da

forma imanente na matéria, isto é, da forma, ou arquétipo, presente na matéria;

representação visual da forma ou idea. Na arte e na figuração, o inteligível uni- versal é concretizado, encarnado em um sensível particular, graças ao artista.

“A mimese artística para Aristóteles é o prolongamento de uma tendência natural aos homens e aos animais - a tendência para imitar. ... E como tendên- cia, a imitação decorre da necessidade de aquisição da experiência. É um meio rudimentar de aprender e de conhecer. ...

Aristóteles valoriza a obra de arte em função de sua semelhança com o real. Aceita-a como aparência mesmo. Ela não é nem completamente real, verdadeira, nem cabal ilusão. Está a meio caminho da existência e da inexistência, apoiada nesse termo médio da realidade, que Aristóteles chama de verossimilhança”.51

Assim, para Aristóteles, a arte imitativa pode ser fonte de prazer. Ao pra- zer de ver a imitação e nela reconhecer determinado objeto, soma-se o da pos- sibilidade de aquisição de um conhecimento; “efetivamente tal é o motivo por que se deleitam as pessoas perante as imagens: olhando-as aprendem a discorrer sobre o que seja cada uma delas”.52

Aristóteles parece estar aqui refutando Platão e seu ceticismo em relação à arte imitativa; admitindo como válido o prazer causado pela arte (da mimesis), distancia-se do mestre, que via na mimesis um instrumento nocivo e perigoso, capaz de causar dano ao cidadão de sua “República Ideal”, de colocar em perigo a república interior de cada um.

51 Ver também BENEDITO, Nunes. Introdução à Filosofia da Arte, 1989; p. 40

52 Aristóteles, Poética; in FALABELLA, Maria Luiza. História da Arte e Estética: da Mimesis à Abstração,

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Considerando que o prazer estético básico pode levar ao conhecimento e está até mesmo próximo ao prazer do filósofo, já que aprender não só apraz aos filósofos, mas também igualmente aos demais homens, Aristóteles afasta- -se mais uma vez de Platão, que vê a arte como um empecilho ao verdadeiro conhecimento, uma vez que ela remete ao sensível e só indiretamente ao mundo eidético, ou ao mundo verdadeiro, como vimos acima.53

Outro ponto importante de divergência entre Platão e Aristóteles na con- ceituação de mimese e para o tema que aqui nos ocupamos diz respeito à relação entre arte (figuração) e moral. “Para Platão, arte e moral são inseparáveis. Da poesia deveriam ser banidas as passagens nocivas, a apresentação de caracteres indignos, o comportamento indesejável, os lamentos dos heróis, os excessos na dor e na alegria, e estimuladas as apresentações que despertassem a temperança, a força, a coragem e as virtudes. Aristóteles, ao contrário, põe de lado esta concep- ção de uma arte moralizadora e, com a sua teoria de mimese, parece separar, de maneira hábil, arte e moral; pois para Aristóteles o Belo é, antes de tudo, ordem, simetria e proporção. Como nos lembra Junito Brandão, para Aristóteles, “por seu caráter mimético, a arte não é moral, nem imoral, é arte simplesmente”.54

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