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O Significado da Privacidade

No documento A Norma do Novo_DTP (2) (páginas 78-81)

Para o pensamento grego, o caráter peculiar da privacidade significava li- teralmente um estado em que o indivíduo se privava de alguma coisa e, portan- to, não era totalmente humano. Evidentemente que hoje não concordaríamos com os gregos de que uma vida vivida na privacidade, que é próprio ao indivi- duo (idion), à parte, isolado do mundo comum (koinon), público, é “idiota”.

O exercício da excelência em si, isto é, da virtude, da coragem, e mesmo da superioridade social (areté), virtus para os romanos, sempre foi reservada à esfera pú- blica. Para o ato excelente, por definição, há sempre a necessidade da presença dos outros. O termo público significa, em primeiro lugar, que tudo o que vem a público pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível; e, em segundo lugar, significa o próprio mundo, na medida em que é comum a todos nós.

Assim, não havia dignidade ou sentido na proteção do que era íntimo; ao contrário, tornar público o objeto, por exemplo, era tornar digna a ideia ou o

comportamento, pois somente no espaço público e na comunhão de tais fatos, a

excelência e a “nobreza” se manifestavam. E ainda, se a obra era excepcional (erga), teria que ser durável, e não ocasional ou momentânea; daí, uma vez mais, a inferioridade axiológica das “novidades” (tecnológicas ou outras).

A pólis era, para o grego clássico, o que a res pública era para os romanos: a garantia contra a futilidade e a transitoriedade da vida individual; o espaço protegido contra essa futilidade e reservado à relativa permanência, senão à imor- talidade dos mortais. Somente a existência de uma esfera pública e a subsequente transformação do mundo em uma comunidade de coisas que reúne os homens e estabelece uma relação entre eles depende inteiramente da permanência.

“É em relação a esta múltipla importância da esfera pública que o termo

privado, em sua acepção original de privação, tem significado. Para o indivíduo,

viver uma vida inteiramente privada significa, acima de tudo, ser destituído das coisas essenciais à vida verdadeiramente humana: ser privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros, privado de uma relação objetiva com eles decorrente do fato de ligar-se e separar-se deles mediante um mundo comum de coisas, e privado da possibilidade de realizar algo mais permanente,

durável e estável do que a própria vida. A peculiaridade da privacidade, por ou-

tro lado, reside na ausência de outros; o homem privado não se dá a conhecer, e, portanto, é como se não existisse. O que quer que ele faça permanece sem

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importância ou consequência para os outros, e o que tem importância para ele é desprovido de interesse para os demais”.8

O caráter peculiar da privacidade aqui brevemente apresentado, a consci- ência de se estar privado de algo essencial numa vida passada exclusivamente na esfera restrita do lar, ou da sua individualidade e da sua introspecção, perdeu sua força de hábito, e quase se extinguiu, com o advento e a consolidação do cristianismo. A moralidade cristã, em contraposição a seus preceitos religiosos, sempre insistiu em que cada um deve cuidar de seus afazeres e que a responsa- bilidade política constitui, em primeiro lugar, um ônus.

Por exemplo, Santo Agostinho, em De Civitate Dei, XIX, vê no dever de

caritas em relação à utilitas proximi (“o interesse do próximo”) a limitação do otium e da contemplação. Mas, “na vida ativa, não são as honras e o poder

desta vida que devemos almejar, (...) mas o bem estar daqueles que estão abaixo de nós (salutem subditorum). É óbvio que este tipo de responsabilidade lembra mais a responsabilidade do chefe de família em relação à sua família do que a responsabilidade política (pública) propriamente dita. O preceito cristão de que cada um trate de sua vida provém de I Tes. 4:11: “e que procureis viver quietos e que trateis do vosso negócio” (prattein ta idia), onde ta idia é entendido como o oposto de ta koina (“negócios comuns públicos”).

A Propriedade

A propriedade, para o mundo clássico, era constituída de uma parte fixa e firmemente localizada no mundo. A propriedade privada era um espaço de

privacidade, único modo eficaz de garantir a sombra do que se deve ser escondi-

do contra a luz da publicidade. Como afirma H.Arendt, “um lugar só nosso, no qual podemos nos esconder”.

Mas nem por isto protegiam-se diretamente as atividades exercidas na esfe- ra privada. Ao contrário, o que era objeto de delimitação para a proteção, como vimos, eram as fronteiras, os limites que separavam a posse privada de outras partes do mundo, principalmente do mundo comum público.

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Murillo Cruz

No mundo clássico o importante era o estabelecimento das fronteiras claras e precisas entre os espaços privados, mas não o seu interior ou as coisas feitas e executadas no seu interior.

O interior da propriedade privada era entendido como não claro, obscuro, não passível de luz e descrição (megaron, atrium). “As palavras gregas e latinas que desig- navam o interior da casa, megaron e atrium, tem forte conotação de sombra e treva”.9

Daí a evidente dificuldade, senão o completo absurdo, de se pensar o dis-

closure do núcleo existente no interior de um objeto (res) de propriedade priva-

da, técnica ou de qualquer outra forma.

A proteção e a propriedade privada estabeleciam-se a partir do espaço fí- sico de contiguidade claro e evidente. A proteção exercia-se a partir desta zona óbvia de separação. Fustel de Coulanges, em The Ancient City, menciona uma antiga lei grega segundo a qual não se permitia que dois edifícios se tocassem.

A própria palavra pólis possuía originalmente a conotação de algo como “muro circundante” e, ao que parece, o latim urbs exprimia também a noção de um círculo e derivava da mesma raiz de orbis. Encontra-se a mesma relação na palavra inglesa

town que, como o alemão Zaun, significava originalmente cerca ou cercado.

Assim, o interior da propriedade privada era entendido como esfera do oculto, zona obscura, não exibível. A distinção entre as esferas pública e privada equivalia à diferença entre o que deve ser exibido e o que deve ser ocultado.

A distinção entre o privado e o público na cultura clássica, assim, coinci- de com a oposição entre a necessidade (indigna) e a liberdade (digna); entre a transitoriedade (indigna) e a realização perene e estável (digna); e entre a vergonha (indigna) e a honra e o status (dignos). E o significado mais elemen- tar das duas esferas indica que há coisas que devem ser ocultadas e outras que necessitam ser expostas em público para que possam adquirir alguma forma de existência e de excelência e virtude.

Em suma, a propriedade exercia-se sobre as coisas (res) e não sobre a sua

interioridade, a sua essencialidade ou a sua conformação, geração ou ideação; e

mesmo assim, exercia-se frouxamente sobre as coisas, pois sem qualquer “secu- ritização” firme ou duplo representacional fidedigno da mesma; excluindo-se, consequentemente, no caso da tecnologia, qualquer possibilidade de proteção

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sobre a ação ou a ideação que a gerou; até porque gerada no próprio espaço indigno do privado, e do conhecimento poiético. Era portanto impensável, na metafísica clássica, um sistema de proteção privada (exclusiva ou não) da técni- ca em si, ou de inovações sucessivas, para metas “econômicas” desejáveis, isto é, um “sistema de patentes”. Os seis atributos básicos dos sistemas de patentes mo- dernos eram absolutamente indignos na metafísica clássica: - (i) a propriedade (em si); (ii) privada; (iii) sobre as técnicas; (iv) para metas econômicas; (v)

por tempo determinado; (vi) desde que plenamente e claramente descritas.

...

Na Idade Média, após a queda do Império Romano, será a Igreja Católica que oferecerá ao homem um substituto da cidadania antes outorgada exclusiva- mente na esfera da pólis.

Na Antiguidade, a ascensão social, como vimos, se dava da esfera do pri- vado (oikia) para o público, na pólis. Na Idade Média, com a decadência, a degradação e a extinção da pólis, o público e o seu simbolismo clássico dilui-se totalmente na esfera do privado, e a ascensão se dará, doravante, de maneira diferente: do secular ao religioso.

A elevação do secular para o plano religioso correspondeu, assim, em mui- tos aspectos, à ascensão do privado ao plano público da Antiguidade.

A Dignificação do Ato Contemplativo

No documento A Norma do Novo_DTP (2) (páginas 78-81)