• Nenhum resultado encontrado

e a Cristandade da Alta Idade Média)

No documento A Norma do Novo_DTP (2) (páginas 67-73)

“É a inteligência que vê, é a inteligência que escuta – todo o resto é surdo e cego”. (Epicarmo)

Noesai dè kairòs aristoi (“pois ver – pensar - é o tempo mais excelente”). Con- forme nos ensina Henrique de Lima Vaz, por uma admirável transposição metafórica da língua filosófica grega, o verbo noein, originariamente “ver”, passa a significar “intuir”, contemplar, como ato supremo do conhecimento.1

Considerações Preliminares

As razões da referência à “cristandade Orígenes-agostiniana” em todo este livro, período coberto idêntico ao que a História designa também por Alta Idade Média, serão vistas na Parte II deste trabalho. Referem-se, basicamente, à reinterpretação de Orígenes e de Santo Agostinho quanto à compreensão simbólico-alegórica dos textos bíblicos, e principalmente do Apocalipse e do anúncio de uma segunda vinda do Cristo, vis-à-vis às interpretações literais des- tes enunciados, bastante comuns entre a população cristã durante séculos.

¨¨¨¨

Alexandre Koyré, em artigo clássico, indaga: por que razão o mecanicis- mo nasceu no século XVII, e não vinte séculos mais cedo, nomeadamente na Grécia? Por que a ciência grega clássica não podia dar lugar a uma verdadeira

tecnologia? Ou ainda, por que a Antiguidade não produziu um Galileu?

Segundo Koyré, tais fatos simplesmente não ocorreram porque o saber grego não procurou fazê-lo; isto é, não possuíam os gregos clássicos (e nem os

medievais da Alta Idade Média) uma intenção consciente para tais objetivos, pois acreditavam que tais questões simplesmente não eram realizáveis.

Fazer física no sentido moderno do termo, e não no sentido atribuído por Aristóteles, significa aplicar ao real as noções rígidas, exatas e precisas das ma- temáticas, e, antes de tudo, da geometria. Um empreendimento, para os gregos e para os medievais da Alta Idade Média, completamente paradoxal e impensá- vel, pois para eles a realidade, a circunstância intramundana na qual vivemos e nos inserimos não é matematizável, nem matemática.

Os gregos antigos (e os medievais da Alta Idade Média) acreditavam que vi- viam no interior de um espaço mutável, impreciso, contingente, do domínio do mais-

-ou-menos, do aproximadamente. Assim, entre a matemática e a realidade física exis-

tiria um verdadeiro abismo, pois não há na natureza círculos, elipses ou linhas retas. Assim, para os gregos e os medievais da Alta Idade Média, era impensá- vel querer medir com exatidão as dimensões de um ser natural. Não lhes era admissível que a exatidão fizesse parte do nosso mundo (sublunar). Em contra- partida, admitiam que as coisas se passassem de modo completamente diferente nos céus, com movimentos absoluta e perfeitamente regulares das esferas e dos astros ... “Mas, justamente, os céus não são a Terra”. O nosso mundo é do apro-

ximado; o dos céus, o da ordem e da perfeição. O dia sideral é perfeitamente

ordenado; o dia terrestre, duração variável e mutável. Por isso, a astronomia matemática era possível, mas a física matemática não.

A influência do Orfismo e das religiões dualistas clássicas, especialmente o gnosticismo (autêntico), jogam um papel central e determinante para o entendi- mento das concepções acima acerca da existência de “dois espaços”, de dois luga-

res absolutamente distintos, com as características axiológicas típicas das religiões

dualistas clássicas: o mundo terreno, corporal, material, etc., é espaço da imper- feição e do erro, obra de um deus imperfeito e ignorante – o Demiurgo; e o mundo “divino”, dos céus (ou do Pleroma), é o espaço da perfeição, da ordem, da verdade e do verdadeiro “Deus”. O Orfismo, por exemplo, irá proclamar a imortalidade da alma e conceber o homem segundo um esquema dualista que contrapõe o corpo à alma. O homem passará a compreender que algumas tendências ligadas ao corpo devem ser reprimidas, ao passo que a purificação do elemento divino (dáimon) em relação ao elemento corpóreo torna-se o objetivo de viver.

É interessante notarmos que os gregos, nas artes plásticas e nas chaves figurativas e representacionais, inventam o escorço, e mesmo a ilusão da pro-

3

A Norma do Novo

fundidade (ver figura 8). Mas não desenvolvem, pelas razões acima (e outras),

as possibilidades da perspectiva linear conforme Filippo Brunelleschi inventará alguns séculos adiante, isto é, a aplicação de leis matemáticas à ilusão de pro- fundidade. Esta possibilidade era completamente estranha aos antigos. Como nos recordou Koyré, os gregos, e os medievais, especialmente os da Alta Idade Média, não se permitiam imaginar que o nosso mundo fosse objeto de medidas precisas; portanto seria impossível aplicar as regras geométricas e matemáticas precisas ao nosso mundo do aproximado, e do erro. Para F.Brunelleschi e para o espírito moderno renascentista, não. Assim, Brunelleschi abrirá a técnica pers- péctica como uma possibilidade no interior do escorço.

Fig. 8. À esquerda, detalhe de escorço frontal do pé, do vasilhame A despedida

do guerreiro, Grécia, c. 510 a.c. À direita, escorço de pés, de A.Dürer

O “milagre grego” com o escorço e o domínio relativamente racional do espaço, a mimese (mimesis), o naturalismo e o realismo da arte do apogeu grego, teve, entretanto, em Platão, seu grande crítico.

De fato Platão bloqueará o caminho seguido em nossa modernidade de representar visualmente (absoluta e metricamente) o conceito e a Ideia, isto é, os universais, ao teorizar a arte como ilusionista, separada duas vezes da Verdade. Assim, as representações isomórfico-miméticas (episódicas) do grego clássico e do cristão medieval da Alta Idade Média não alcançaram status de verdade e significante autônomo, duplo/espelho, que viriam assumir no nosso mundo moderno. Platão, assim, impede a transformação do milagre grego expresso nas figurações realísticas, em significante autônomo de verdade. E de certa for-

4

Murillo Cruz

ma impede, assim, a adoção da representação fidedigna (visual) como imagem existencial do Ser, isto é, que a representação objetiva, isomórfico-mimética, do

conceito se faça verdade em si.

Estas concepções e comportamentos difundem-se e mantêm-se na cultura ocidental até o limiar da nossa modernidade, tanto com as primeiras tentativas de metrificação do tempo terrestre e dos registros dos fatos, mas principalmente a par- tir do século XIV com as especulações sobre a metrificação do espaço circundante, e a

invenção da perspectiva linear, conforme veremos com detalhes adiante.

Neste mesmo sentido, Lucien Febvre, em Le Problème de L’Incroyance au XVIe.

Siècle (1946), dirá que o homem da Alta Idade Média, e ainda de grande parte do

Renascimento, não possuía os instrumentos materiais e principalmente mentais para o cálculo preciso. Para L.Febvre, a alquimia, por exemplo, nunca conseguiu fazer uma experiência precisa simplesmente porque nunca o tentou (...) “não é o ter- mômetro que lhe faltava, mas a ideia de que o calor fosse suscetível de medida exata. Não se olha enquanto não se sabe se há alguma coisa a ver, e sobretudo se sabemos, ou acreditamos, que não há nada a ver. A inovação de Anton van Leeuwenhoek (o inventor do microscópio) consistiu principalmente na sua decisão de olhar”.2

Poderíamos igualmente indagar, para o tema que aqui nos ocupamos: por que razão a Antiguidade Clássica e a cristandade Orígenes-agostiniana, isto é, a cristandade da Alta Idade Média, não formularam e implementaram um regime de apropriação privada do saber técnico, um “sistema de patentes”, que se asseme- lhasse ao regime que se implantará lenta e sucessivamente a partir dos séculos XII e XIII d.C. em certas regiões da Europa, e se conformará estatutariamente no século XV, ao norte da Itália?

Em outras palavras, por que razões a metafísica clássica (greco-romana e cristã Orígenes-agostiniana) impossibilitava a existência e a explicitação de re- gras formais de proteção (privada), estímulo e apropriação das obras intelectuais e das ideias inventivas, que pudessem ter aplicação industrial ou manufatureira?

Além dos importantes motivos apresentados acima por A.Koyré e Lucien Febvre, outros obstáculos culturais ou mentais importantes estavam enraizados nestas culturas pré-modernas, i.e., nestes quadros institucionais ordenados por uma bios theoretikos (uma vita contemplativa), como por exemplo: (i) a absoluta

2 KOYRÉ, Alexandre. Du Monde Clos à l´Univers Infini, 1961; tr.port. Do Mundo Fechado ao Universo

5

A Norma do Novo

impossibilidade de pensar o futuro, e portanto a novidade, como locus axiolo- gicamente positivo (ver capítulo 2/I); (ii) a absoluta impossibilidade, e mesmo a não necessidade, de pensar em um regime de “propriedade” que não fosse evidentemente sobre “bens tangíveis”; e (iii) especialmente a evidente subor- dinação e desvalorização do trabalho, do fazer técnico, e mesmo de todas as atividades relacionadas com a economia e o comércio. (Ver capítulo 1/I adiante)

Conforme explicou Thorstein Veblen, esta longa etapa cultural, que abar- ca claramente a Antiguidade Clássica e grande parte da Idade Média até a Era do artesanato na Europa, esta etapa que designou Veblen por “Bárbara Predató- ria”, possui um claro e peculiar código axiológico, onde a reputação individual e social buscava-se “fora” das atividades econômicas e tecnológicas (e pecuniá- rias). A guerra e a predação em estado bruto é que eram as atividades focais na busca da reputação e manutenção da hierarquia social e poder da “leisure class”, da classe dominante, até uma pequena inflexão antropocêntrica e racional ilu-

minista, operada principalmente (desde Sócrates) por Platão e Aristóteles. As

atividades “econômicas”, comerciais e tecnológicas, encontravam-se vinculadas à servidão e à escravidão, pois todas vinculadas ao espaço do privado (idion), espaço este claramente negativo (ver adiante). As “técnicas”, quando importan- tes, isto é, como riquezas imateriais, eram apropriadas, assim, de forma indire-

ta, ou seja, através da posse/propriedade dos próprios objetos, dos escravos, dos

7

Capítulo 1 / I – A Desvalorização do

Trabalho, da Tecnologia e da Esfera Privada.

No documento A Norma do Novo_DTP (2) (páginas 67-73)