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A Inserção Temporal do Homem na Modernidade Primeira Aproximação

No documento A Norma do Novo_DTP (2) (páginas 99-103)

A partir do declínio da interpretação agostiniana do tempo e da História, das inflexões filosóficas dos séculos XII em diante, e mais propriamente a partir da con- cepção histórica de Joaquim de Fiore e da imanentização da escatologia cristã desta

32 Para um aprofundamento ver DOMINGUES, Ivan. O Grau Zero do Conhecimento, 1991 33 ELIADE, Mircea. Le Mythe de l´Éternel Retour, 1969; p. 127; p. 155

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época, veremos aparecer o núcleo moderno das concepções de tempo e de História. A segunda parte deste livro apresentará tais desdobramentos de maneira bem mais completa. Entretanto, apresentaremos aqui um breve esboço das importantes trans- formações operadas na modernidade sobre o tema que nos ocupamos neste capítulo.

Na modernidade, a experiência do tempo e da história é profundamente abalada, senão totalmente rompida.

Em primeiro lugar, o tempo converte-se em uma espécie de marco vazio, indiferente às coisas que o habitam. E a história deixa também de ser uma espécie de potência, para se converter num lugar, num meio onde as coisas duram e acon- tecem. De certa maneira é uma extensão do processo de dessacralização do cos- mos e da natureza, agora para as potências do tempo e da história. O monoteísmo patriarcal absoluto da tradição judaico-cristã católica eliminará paulatinamente a potência sobrenatural do tempo, que era um deus - Chronos, e da história, que era também uma deusa - a Fortuna. Neste sentido, é bem difícil falarmos, como acima, de potências para as experiências cristã e judaica do tempo e da história.

Ao serem esvaziadas pelas tradições do judaísmo e do cristianismo, estas potências são transferidas para o próprio homem que, ao recolhê-las qual um deus, imagina-se suficientemente poderoso para pôr o tempo a seu serviço e a história a seu dispor, isto é, fazer a História, e determinar seu próprio destino, em seu tempo. Uma cantarola brasileira conhecida afirma: “Vem, vamos embora

que esperar não é saber. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer ... ”.

No prosseguimento do projeto de dominação da natureza e de sua con- quista racional, anunciado claramente por Francis Bacon e René Descartes, é bem do mesmo prometeísmo heideggeriano de que nos fala G.Gusdorf que se trata, agora estendido à história.

Primeiro, o homem trata de dominar o tempo do mundo, cria os relógios e inventa instrumentos de precisão para todas as finalidades. Depois, cuida de controlar e dominar a história, com a ajuda da ciência e da tecnologia, ins- talando algo como a ação prospectiva sobre o tempo histórico, voltada para o planejamento consciente do futuro.

Com o esvaziamento das potências do tempo, o desaparecimento do sagra- do e a perda do transcendente, sucede-se a imanentização e posterior seculari- zação do sentido da história ao próprio homem, bem como o esvaziamento do problema do mal. A fonte do mal não será mais uma força sobrenatural, um deus, mas sim o próprio homem, e a história será agora o meio capaz de reparar ou

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consertar, por ela mesma, os males que ela mesmo produziu. Tais são as ideias- -forças das várias ideologias do progresso ao longo de nossa modernidade, das diversas correntes do Iluminismo do século XVIII aos diferentes positivismos, historicismos e evolucionismos dos séculos XIX e XX.

A noção de Progresso, como uma leitura literal imanentista da salvação, surge aqui, então, como a reparação do mal, e do que é ruim, dos infortúnios, etc. O progresso, como via racional construído pelo homem moderno poderia ser capaz de traçar uma trajetória ao futuro isenta do mal no mundo, isenta das doenças, das imperfeições, etc. É esta ideia-força de controlar a história pros- pectiva que deveria assegurar uma trajetória controlada, e a consecução de um

admirável mundo novo como destino natural do simbolismo da Era messiânica

ou de um projeto civilizatório explícito. A ideologia do progresso, entre outras questões, baseia-se, assim, nesta ideia chave de eliminar o mal e as imperfeições

do mundo dos homens, e dos próprios homens.

Podemos mesmo afirmar que o traço que define a época moderna, por opo- sição às anteriores, quanto à experiência do tempo e da história, é uma inversão de perspectiva e de valores de uma forma tal que leva ao desaparecimento de duas características com as quais as civilizações arcaica, helenística romana e cristã- -agostiniana pensavam o homem e a história: as ideias de queda e de decadência.

Se antes, a existência do homem no cosmos era considerada como queda (a perda do arquétipo), na nossa modernidade, a partir da imanentização da mensagem bíblica profética judaica e da imanentização e posterior seculariza- ção da escatologia cristã, a existência do homem no universo passa a ser vista como uma trajetória de ascensão, que só tende a melhorar com o avançar do tempo, levando a um aperfeiçoamento maior ainda do homem. Em suma, se antes a História era vista como decadência, na modernidade, ao contrário, será vista como progresso e lugar de aprimoramento do homem e da sociedade, num tempo indefinido adiante, num futuro aberto.

Na base desta inversão de perspectiva encontra-se uma inversão ontológica na escala do Ser, a qual levou os modernos a considerar o que vem depois na ordem do tempo como superior ao que vem antes, e não o inverso, como imaginavam os antigos. Conforme nos indica Ivan Domingues, mudança capital, suficientemente po- derosa para alterar a fundo a escala de valores no plano axiológico do homem e da história. Antes de tudo, no homem passa a ser valorizada não propriamente a imita- ção e a repetição dos arquétipos (deuses, heróis ou santos), mas a criação e a inovação

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enquanto tais, totalmente desprendidas dos arquétipos, quaisquer que sejam eles. Já na História, passa a ser valorizado não o que permanece e não muda (o mesmo), mas a mudança e a diferença (o outro), dissociados de todo e qualquer arquétipo, salvo o progresso, se é que se pode falar aqui de arquétipo, visto que o modelo é buscado e atingido, sempre, no futuro, e não no passado, como se imaginava antes.34

“Desprendido dos arquétipos e de sua ação limitadora e paralisante, os quais levaram os homens antigos a bloquear por milênios a sua capacidade de criação e a abafar a própria história, é um novo homem que irrompe: um ho- mem que se sabe e se quer criador da história; um homem que, ao quebrar de vez o invólucro em que o mito encerrava os personagens e os acontecimentos históricos, libera as forças da história, empurra o tempo para frente, uma vez livre dos arquétipos que o puxavam para trás, transformando-o de cíclico em linear, em uma linha ascendente (...) Resultado: lá onde os homens arcaico, antigo e medieval da Alta Idade Média viam na novidade do acontecimento a falta, o pecado, algo como uma transgressão a ser combatida e abolida, o ho- mem moderno vê, na novidade do acontecimento, o signo do poder de criação do próprio homem e algo a ser celebrado e valorizado como tal, ... não tendo mais nada de sólido e de antigo em que se apoiar, a não ser o novo”.35

Cabe finalmente indagar, com Eliade, uma vez afastado o transcendente, sem qualquer arquétipo a remontar (ver, a este respeito, o nominalismo no capítulo 9/ II deste livro), tendo ante si apenas o novo e o efêmero a se reportar, se o homem moderno está equipado para lidar com o problema do mal na história. Otimista, o homem moderno acredita que a história tem um sentido intrínseco e que ela pró- pria, fonte dos males, nos daria o remédio. Esta ideia é partilhada pelos iluministas, historicistas e evolucionistas de quase todos os matizes (uma fantástica exceção é T.Veblen): a história, como o lugar do aprimoramento do homem e da sociedade. Pessimista, Eliade dirá que não. Para este pensador, com a perda do absoluto, a abo- lição do transcendente e a imanentização do sentido da história ao homem e aos acontecimentos, o que vemos, de fato, é apenas a aceleração da história.

Sem a transcendência, permanecendo colado aos fatos, não há como fixar um

metron capaz de medi-los ou avaliá-los; não há como dar-lhes sentido, não há como

orientar-se por eles, opor resistências a eles e mesmo detê-los, quando necessário.

34 Para mais detalhes ver DOMINGUES, Ivan. O Tempo e a História, Síntese NF, vol.20 n.63, 1993 35 DOMINGUES, Ivan. O Tempo e a História, Síntese NF, vol.20 n.63, 1993; p. 725

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As sociedades tradicionais puderam suportar as desgraças e os sofrimentos infligidos pela história porque essas provações tinham um sentido meta-históri- co ou transcendente. Já o homem moderno, sem qualquer plano meta-histórico a que se reportar, está claramente despreparado para suportar os males e os infortúnios de uma história que lhe escapa cada vez mais.

Imitação e Invenção. Tempo de Espera

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