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A Apocalíptica Judaica

No documento A Norma do Novo_DTP (2) (páginas 134-137)

Os materiais originais que serviram para a elaboração gradual da escatologia (revolucionária ou não) durante a Alta Idade Média consistiram em uma comple- xa coleção de profecias herdadas do mundo antigo. Essas profecias foram formas e mecanismos graças aos quais os grupos religiosos, primeiro os judeus e depois os cristãos, se consolidavam e se fortaleciam ao confrontarem-se com as ameaças e com a realidade de opressão concreta de suas existências históricas. É bastante compreensível, portanto, que as primeiras profecias desse tipo se devam aos judeus.

O que diferenciava definitivamente os judeus dos demais povos do mundo antigo (além do rígido monoteísmo patriarcal) era precisamente a sua atitude diante da história e ante sua própria missão na história. Com exceção dos persas, os judeus foram os únicos que souberam unir seu firme monoteísmo pa- triarcal com a inquebrantável convicção de que eram o povo escolhido por um Deus único. Pelo menos, a partir do êxodo do Egito, chegaram à convicção de que a vontade de Yahweb (Jeová) centrava-se em Israel, de que somente Israel tinha a missão de realizar esta Vontade.

Desde os tempos dos profetas estavam convencidos de que Jeová não era apenas um mero Deus nacional, mas também o Deus uno e único. Senhor oni- potente e que controlava os destinos de todas as nações. Na opinião dos judeus, a tarefa encomendada por Deus a Israel era a de iluminar os homens para levar a salvação de Deus até os confins da Terra. Isto é, compuseram, desde o início, uma ética salvacionista e buscavam difundi-la como uma tarefa divina.

Depois, em função de várias derrotas, deportações e dispersões, os judeus - até porque estavam convencidos de ser o povo escolhido - começaram a reagir contra o perigo, a opressão e a injustiça, diferentemente dos demais povos da Antiguidade, mediante a invenção de símbolos que anunciavam o triunfo total e

a prosperidade ilimitada que Jeová oferecia a seu escolhido, não no presente, mas

sim na plenitude dos tempos, isto é, no final dos tempos, no futuro. As profecias e os símbolos de Jeremias são, neste particular, fundamentais para a compreensão da história ulterior do messianismo judaico, da escatologia cristã, e mesmo de todos os movimentos salvacionistas e revolucionários da modernidade.

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Nos mesmos livros proféticos (alguns do século VIII a.C.) encontramos passagens que predizem e anunciam como, de uma catástrofe cósmica imensa, surgirá, então, uma Palestina que será um Novo Éden, um paraíso reconquis- tado. Por terem abandonado Jeová, o povo judeu deverá ser castigado com a fome, a peste, a guerra e o cativeiro; deverão os judeus ser submetidos a um juízo inquisitorial severíssimo para que sejam purificados radicalmente do passado

culpável. Dito Juízo ocorrerá no Dia de Jeová, o dia da ira, em que o sol e a lua

se obscurecerão, se unirão os céus, e a Terra estremecerá. Deverá haver um julgamento, onde os incrédulos serão julgados, castigados ou destruídos total- mente. Mas este não será o fim: um salvador remanescente de Israel sobreviverá a estes castigos e por ele cumprir-se-á a vontade divina. Ainda, uma vez que a nação tenha sido regenerada e reformada, Jeová cessará a sua vingança e se converterá no libertador. O remanescente justo, junto com os santos mortos que agora ressuscitarão, segundo uma opinião posterior, se reunirá uma vez mais na Palestina, e Jeová viverá no meio deles como juiz e senhor. Reinará, portanto, a partir de uma Jerusalém reconstruída, desde “uma Sion convertida em capital espiritual do mundo”. Estabelecer-se-á um mundo justo e próspero, harmonioso e pacífico, onde os pobres e os injustiçados serão protegidos.

“A lua brilhará tanto como o sol, e a luz deste aumentará sete vezes. Os desertos serão férteis e belos. Haverá abundância de água, de trigo, de vinho, pescado e frutos. Os homens e os rebanhos se multiplicarão, libertados de toda dor e doença, sem injustiças, vivendo segundo a lei de Jeová inscrita nos cora- ções do povo escolhido”.78

Nos Apocalipses dirigidos aos mais pobres da população judaica, o teor da narrativa era mais duro e cruel ainda. Por exemplo, a visão ou o sonho que ocupa o capítulo 7 do Livro de Daniel, em c. 165 a.C.

O século II a.C. foi um momento particularmente crítico da história de Israel. A Palestina caiu sob o poder da dinastia greco-síria dos selêucidas, e sob o poder de Antíoco IV Epífanes. A resposta dos judeus foi a famosa Revolta dos

Macabeus, e a elaboração do Apocalipse de Daniel. No sonho do Livro de Da-

niel, composto no momento crítico desta Revolta, quatro bestas simbolizam os quatro poderes mundanos sucessivos: o babilônico, o medo, o persa e o grego. Este último será diferente de todos os outros reinos.

78 COHN, Norman. The Pursuit of the Millenium, 1961; tr.esp. En Pos del Milenio. Revolucionarios

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Murillo Cruz

“Devorará, esmagará e pulverizará toda a Terra ... Quando este reino for destruído, Israel, personificado como o filho do homem, ... chegará por entre as nuvens do céu …”.79

As profecias de Daniel vão muito além das anteriores, pois pela primeira vez imagina-se o glorioso Reino futuro compreendendo não só a Palestina, mas também toda a Terra e todos os povos.

Aqui podemos reconhecer já o símbolo maior da escatologia revolucioná- ria moderna: o mundo encontra-se dominado por um poder maligno e tirânico, possuidor de uma capacidade destrutiva ilimitada, poder este que não se supõe unicamente humano, mas também diabólico. A tirania deste poder será cada vez mais insuportável, os sofrimentos de suas vítimas cada vez maiores, até que, repentinamente, surge a hora em que os santos de Deus levantam-se para destruí-lo. Então, os mesmos santos, os escolhidos, que até aquele momento so- friam sob o poder do opressor, herdarão o domínio sobre a Terra agora libertada e renovada. Neste momento, se dará, então, a consumação da história; o Reino dos santos superará em glória todos os anteriores, e não haverá sucessor.

Foi graças a esses símbolos acima que a apocalíptica judaica e suas variantes exerceram um enorme fascínio nos descontentes e frustrados das gerações posteriores.

Desde a anexação da Palestina por Pompeu, em 63 a.C., até a guerra dos anos 66-72 d.C., as lutas dos judeus contra seus Senhores - os romanos - fo- ram estimuladas por correntes apocalípticas e salvacionistas. Estas mensagens acomodaram-se muito bem entre a população e difundia-se a ideia da vinda de um salvador escatológico, o messias (o ungido). A ideia da vinda de um salvador era antiga; mas segundo os profetas, o salvador que deveria reinar sobre o povo escolhido no fim dos tempos era geralmente o mesmo Jeová.

Concebido a princípio como a imagem de um monarca sábio, justo e po- deroso, descendente de David e restaurador da nação, à medida que o declínio político de Israel aumentava, o messias foi convertendo-se pouco a pouco num ser sobrenatural. No sonho de Daniel, o filho do homem que aparece cavalgando sobre as nuvens parece personificar e simbolizar todo o povo de Israel.

Nos apocalipses de Baruch e Esdras (c. século I a.C.) o ser sobre-humano é indubitavelmente um rei-soldado dotado de poderes e forças milagrosas. Em

79 COHN, Norman. The Pursuit of the Millenium, 1961; tr.esp. En Pos del Milenio. Revolucionarios

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Esdras apresenta-se o messias como “o leão de Judá, cujo rugido a última e pior besta (agora a águia romana) arde e se consuma”.80

Segundo Baruch, virá um tempo de terrível opressão e injustiça, o do úl- timo e pior império: o romano. Depois, no momento em que o mal tenha al- cançado o seu ponto culminante, aparecerá o messias, um grande guerreiro, que vencerá e aniquilará os exércitos inimigos; levará cativo e acorrentado ao monte Sion o imperador dos romanos, onde será, então, justiçado. Estabelecer- -se-á um Reino que permanecerá até o fim dos tempos, e todas as nações que tenham dominado Israel serão massacradas. Começará uma era beatífica, onde se desconhecerá a dor, a doença, a violência, a rivalidade, a indigência e a fome.

À medida que o conflito com Roma ia aumentando, as fantasias messiâ- nicas convertiam-se em verdadeira obsessão. Para Josefo, por exemplo, o que le- vou os judeus à guerra suicida que terminou com a conquista de Jerusalém e a destruição do Templo pelos romanos no ano de 70 d.C., foi exatamente a fé dos judeus na iminente vinda de um rei messiânico. Simon bar-Cochba - que dirigiu a última grande rebelião em favor da independência nacional de Israel, em 131 d. C. - foi seguido e considerado como messias. Mas a sangrenta repressão deste levante pelos romanos, e o aniquilamento da nacionalidade política, pôs fim tanto à fé apocalíptica como a belicosidade dos judeus. A partir de então raramente ten- taram levantes armados, e daí em diante não foram os judeus, mas os cristãos, que acolheram e elaboraram profecias inspiradas na tradição de Jeremias, Ezequiel, Esdras, Baruch e Daniel e continuaram sendo inspirados por elas.81

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