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A Confirmação vaziana da Representação como Estatuto Gnosiológico e Epistemológico da Modernidade

No documento A Norma do Novo_DTP (2) (páginas 182-199)

Henrique C. de Lima Vaz, ao analisar o conceito de sentido em nossa cul- tura, e a queda desta categoria no mundo da representação, dirá: “o proble- ma do sentido apresenta-se intimamente ligado ao problema da linguagem, e a atualidade de ambos inscreve-se no espaço ideo-histórico da modernidade no momento em que este alcança sua configuração definitiva, tornando-se nele plenamente visíveis as estruturas intelectuais profundas que o vieram modelan- do ao longo dos últimos séculos. A constituição dessas estruturas e sua progres- siva manifestação revelam a direção de um movimento de fundo que pode ser designado como a “passagem da primazia gnosiológica do universo do ser para a primazia gnosiológica do universo da representação”.163

Esta mudança estrutural do conhecimento intelectual foi, assim, decisiva na gê- nese e na formação da cultura moderna. E será, igualmente, decisiva na gênese do sistema de patentes; ou, mais profundamente, da expansão e apropriação das técnicas.

O problema da representação ocorre historicamente quando a descoberta platônica do mundo inteligível “impôs à nossa apreensão da realidade a neces- sidade de submeter o ato da nossa inteligência à norma de um arquétipo ideal capaz de medir a justeza da representação das coisas no nosso conhecimento”.164

Como vimos, para a metafísica clássica (até a cristandade Orígenes-agostinia- na), este problema foi “solucionado” pela figuração e por uma episteme alegórico- -simbólica, como o meio unicamente possível de vincular os singulares ao universal no seu lugar próprio, isto é, na zona intermediária entre o arquétipo (ousía) e o ente. Em termos aristotélicos, na zona da “diferença eidética” entre o ente e a ousía.

Esta “diferença eidética” impunha, assim, a necessidade do esforço de in- telecção, compreensão e interpretação permanente para a complementação do significado das imagens e das figuras, e do próprio conhecimento.

A ruptura entre a “indicação simbólica do Ser” e o “Ser”, que, de fato, é a rup- tura de uma das características do universo gnosiológico alegórico da metafísica clássica, e que acabará desaguando na primazia da representação moderna sobre a

163 Ver LIMA VAZ, H.C. Sentido e Não-Sentido na Crise da Modernidade, Síntese NF v.21, n.64, 1994; p. 5 164 Ibid., p. 5-6

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primazia do Ser, “tem lugar no contexto de uma profunda revolução doutrinal, que pode ser enumerada entre as mais decisivas que o Ocidente conheceu”.165

Assim, o ciclo da modernidade pode ser considerado, entre outras característi- cas, como aquele no qual o homem ocidental refaz a morada simbólica da sua exis- tência no mundo, “situando-a dentro das coordenadas e das perspectivas do espaço da representação. Ora, entregar-se à tarefa dessa reconstrução implica avocar a si o intento propriamente demiúrgico de edificar um mundo submetido a um sistema de medidas imanentes ao próprio homem, ou ainda ensaiar, como projeto de civiliza- ção, a transposição, do plano da theoria para o plano da techne”.166

“A novidade introduzida pela teoria da representação na concepção clás- sica da estrutura e da forma do conhecimento intelectual teve como efeito a supressão ... da distinção aristotélica entre os conhecimentos teórico, prático e poiético. As formas de conhecimento teórico e prático, tendo como objetos respectivamente o Ser (ousía) e os costumes (ethos), passam a ser regidos pelo modelo do conhecimento poiético, pois que a representação, constituindo em

termo imediato do conhecimento, oferece-se ao sujeito como campo de pos-

sibilidades de referir-se ao objeto pela mediação de um modelo representativo que seja a feitura, o ergon do próprio sujeito. Assim, o espaço da representação torna-se o lugar de nascimento de um novo estilo de trabalho teórico que se caracteriza por um fazer o objeto de acordo com os procedimentos operacionais que cabe ao próprio sujeito definir e estabelecer”.167

Todas as vertentes teóricas da modernidade apoiam-se sobre o fundamen- to da teoria da representação, interpretada de acordo com a concepção poiética do objeto do conhecimento; como por exemplo, no campo do conhecimento da Natureza, o modelo poiético dá origem à ciência físico-matemática moderna, regida pelo método empírico-formal.

A nova estrutura, edificada sobre a teoria da representação, passa a ser um dos traços distintivos da figura do “intelectual” que aparece na cena da história como um dos mais eficazes construtores da modernidade. Soma-se a este “intelectual” as tarefas práticas e utilitárias da techne, encontraremos, então, o típico “inventor” moderno.

165 Ibid., p. 6 166 Ibid., p. 6

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A teoria da representação, assim, é uma teoria do conhecimento intelec- tual que confere novo estatuto gnosiológico à necessária representação do obje- to na imanência do sujeito cognoscente. A representação deixa de ser apenas o

sinal formal que reenvia imediatamente ao objeto na sua realidade extramental

- tal qual um ícone ou uma alegoria - para constituir-se em termo imediato, em

id quo da intenção cognoscitiva, isto é, a representação transforma-se em ima-

gem construída, para operar o mecanismo, a verdade e o controle - e diremos mesmo, por conclusão - a propriedade do conhecimento.

O que Henrique de Lima Vaz esclarece nos parágrafos acima é semelhante às ideias de Michael Foucault acerca da importância da primazia da teoria da representação moderna para a gnosiologia e a epistemologia do mundo mo- derno, especialmente até a cristalização em sua fase consciente. A teoria da representação moderna rompe, então, e talvez em caráter definitivo, a primazia do universo gnosiológico do Ser, que orientou, durante muitos séculos, todo o conhecimento do Ocidente, e que era a base da própria metafísica clássica.

Na metafísica clássica, as coisas e os entes (inclusive as palavras) eram vistos como signos para uma remessa a algo que lhes eram “exterior”, trans- cendente e “estável” (à ousía ou ao ethos). Perguntava-se: - O que “é” o ente xi? O que este ente xi possui em comum, e estável, com todos os demais entes xii,

xiii, ... de sua espécie? E a resposta era: o universal ou o arquétipo da espécie x,

isto é, X. As formas de conhecimento teórico e prático, isto é, respectivamente, os conhecimentos sobre a ousía e sobre o ethos é que se configuravam como os conhecimentos dignos, pois eram eles que remetiam à estabilidade do mundo, à estabilidade dos arquétipos, versus o conhecimento poiético, que lidava com o contingente, com a necessidade, o efêmero e com a produção das coisas, e, portanto a produção de “novos entes artificiais”.

Na modernidade, com a sucessiva consolidação da teoria da representa- ção, e a sua lógica de identidade, as coisas e os entes, inclusive as palavras, serão remessas às suas próprias existências. Não serão remessas a algo que lhes é exterior ou transcendente; e nem mesmo remessas às suas imanências ou às suas essências. A representação, como clareza, patenteabilidade de um duplo construído como espelho do ente ou da coisa, pode tomar o lugar da coisa, e não será mais vista ou compreendida como um signo ou uma alegoria para algo transcendente. As representações das coisas serão, doravante, “puros” e “páli- dos” significantes isomórficos-miméticos, fidedignos, das coisas.

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Como consequência, os conhecimentos teórico e prático serão diluídos e sequestrados para a órbita do conhecimento poiético, pois, como dito, as coi- sas não são mais remessas a algo exterior (ou interior), mas são elas próprias, em suas identidades frias ou monótonas, em suas selbstbestimungen, i.e., em suas liberdades, em suas independências ou autonomias. São o que são, e não por nenhuma outra coisa); por elas mesmas. Daí que as suas existências podem alojar-se ou permitem-se alojar nas suas próprias representações, desde que estas sejam isomórfico-miméticas e fidedignas. Quanto mais isomorfismo, certeza ou identidade o significante (ou a representação) possuir com a coisa representada (com o denotatum), maior veracidade e “conhecimento” sobre a coisa. O Ser das coisas não é mais um duplo abstrato, intuitivo ou recordado noeticamente (os universais ou arquétipos). O Ser das coisas, na modernidade, encontra-se em sua “mesmice”, em sua monótona identidade consigo mesmo, na sua inerência ou selbstbestimung, sua liberdade, independência e autonomia. E o conhecimen- to das coisas poderá advir, ou prosseguir, do conhecimento das representações, sendo que estas, como produções subjetivas, ao tomarem o lugar das coisas, constroem um “novo mundo” em escala infindável. O mundo, as coisas e as próprias palavras, não significarão mais, além de suas identidades monótonas; um peixe será apenas um peixe, e não mais o signo de Cristo. E a representação de um peixe, quanto mais isomórfica, mais identidade e garantia com o denota-

tum peixe natural e concreto existente nos rios, lagos ou oceanos.

Para usarmos uma analogia magistral de Foucault, de 1966, os moinhos de vento que D.Quixote vê como gigantes vivos, animados e ferozes, e que terá que combater bravamente, são “reduzidos”, pelo realista e “moderno” Sancho Panza, à monótona e fria realidade do que são, ou seja, simples moinhos de vento (as a

matter-of-fact). Permanecerão “eternamente” em suas inerências de moinhos de

vento, e não mais símbolos ou ícones de algo exterior a eles mesmos (as a matter-of-

-imputation). D.Quixote, o fidalgo, o típico pré-moderno, que vive em um universo

pansemiótico, ou seja, em um mundo coberto de signos a serem decifrados; Sancho Panza, o típico moderno, que percebe o universo e as coisas em suas inerências.

Ademais, a partir da primazia da representação moderna sobre a primazia do Ser, inclusive como uma busca adicional de segurança e clareza da própria representação, os entes e as coisas serão analisados, “vistos” e representados em suas superfícies; e não mais nos liames e nas remessas do que lhes eram exterio- res ou transcendentes, e nem mais em suas imanências ou essências (interiores).

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E é por esta razão que a cultura moderna, especialmente no apogeu de sua fase consciente, é basicamente uma cultura fenomênica e “realística”.

O limite e o esgotamento da representação fenomênica ou “realística” moder- na, a partir do século XIX, iniciará um novo capítulo cultural, revolucionário, no Ocidente, limite este que veremos, com detalhes, na Parte III, dado a importância que este esgotamento possui para a compreensão de certos eixos de dissolução do sistema de representação da técnica e do próprio sistema de patentes de invenção.

Uma característica interessante da fase pioneira da modernidade, o período que cobre os séculos XII ao XVI aproximadamente, no tema que aqui nos ocupa- mos, é que a representação moderna ainda não se encontrava plenamente estabe- lecida; mas claros sinais de sua lógica já eram delineados, e o homem vivia, nestes séculos, em uma transição cultural / institucional entre a gnosiologia tradicional da primazia do Ser, e a gnosiologia moderna da primazia da representação.

Assim, uma das características principais desta fase pioneira de nossa mo- dernidade é a convivência de um duplo sistema simbólico e gnosiológico: por um lado, a presença constante de temas e conteúdos clássicos e tradicionais (inaugurais, fundadores, bíblicos, religiosos, etc.); mas, por outro lado, operados, visualizados, ou construídos e pensados já dentro de um espírito moderno e de uma técnica formal moderna. Em outras palavras, o conteúdo simbólico cultu- ral ainda buscava exprimir temas sacros, litúrgicos, fontais, evangélicos, etc., mas a forma expressiva e comunicativa, e mesmo a recepção espiritual do utente e do fruidor, operava já em um universo simbólico transformado, e que será designado posteriormente de moderno. É por esta convivência, de certa maneira dicotômica, contraditória e muitas vezes paradoxal, que muitos historiadores e pensadores insistiram, até recentemente, em designar este riquíssimo período, que cobre aproximadamente os séculos XII ao XVI, como “ainda” de medieval; enquanto que outros, ao contrário, percebem os cenários e os signos já estrutu-

ralmente modernos deste mesmo período.

O quadro A Lamentação de Cristo, de Giotto, de 1303/1305, é um dos mais fa- mosos a expressar o afirmado no parágrafo anterior. Giotto, nesta obra, claramente rompe com a tradição medieval, que consistia numa ordenação pictórica bidimen- sional e orientada segundo uma composição rígida e hierárquica dos componentes. Giotto cria, assim, uma pintura que poderíamos designar já por moderna, caracte- rizada por expressões fortemente emotivas, apelos realistas e profundamente huma- nos, uma estrutura tridimensional da composição, antecedendo a técnica perspécti-

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ca que será desenvolvida 100 anos mais tarde. No quadro podemos verificar que as figuras nele representadas já não são estereótipos pintados de acordo com o padrão tradicional. O tema ainda é claramente tradicional ou bíblico, mas a composição já é moderna. Ver figura 10 “A Lamentação de Cristo”, de Giotto.

Fig. 10. Giotto, detalhe central de A Lamentação de Cristo, de 1303/1305. Um dos mais famosos quadros a expressar a transição compositiva e figurativa para a mo-

dernidade, rompendo a tradição medieval da bidimensionalidade compositiva

A primeira pintura indicativamente moderna, com os atributos de rompi- mento “total” com a composição bidimensional e rígida, é O êxtase de S.Gregório

visto pelo diácono Pedro através da cortina perfurada por seu estilete, do século XII,

e que será comentada no capítulo 6/II.

E qual é a relação das observações acima com o desenvolvimento dos siste- mas de patentes, especialmente as patentes de invenção? Esta resposta encontra- -se plenamente respondida no capítulo 7/II adiante, principalmente ao término do capítulo, que é um capítulo fundamental para o entendimento desta Sessão II/II, e mesmo de todo este livro. Por hora, ilustremos, ainda, nos dois capítulos seguintes, a trajetória histórica e cultural do rompimento do estatuto gnosiológico do Ser para a primazia da teoria do conhecimento intelectual da representação.

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Capítulo 5 / II – Ordem, Clareza e

Distinção. O Gótico e a Escolástica

A teoria moderna do conhecimento intelectual pode ser compreendida, con- forme vimos no capítulo anterior, como uma transformação fundamental, e talvez irreversível, nos mecanismos de representação do mundo e do estabelecimento dos critérios de verdade a partir destes novos mecanismos representacionais.

O rompimento sucessivo dos vínculos analógicos e simbólicos que uniam o Ser (transcendente) à compreensão humana deste Ser (a ousía ao ente, o uni- versal aos singulares, o Todo à parte, e as partes entre si), desaguará no estabe- lecimento de um sistema de representação fidedigno, realista, isomórfico e mimé- tico. Uma sucessiva busca e aperfeiçoamento de instrumentos que estabeleçam uma relação estável e segura entre o significante e o significado, equivalendo dizer, assim, que a desconstrução da lógica simbólico-analógica da metafísica clássica, buscará um sistema de representação cada vez mais claro, ordenado e racional; em suma, cada vez mais patente.

Alguns exemplos desta trajetória desconstrutivista de um modo específico (tradicional) de pensar, para a gênese e a implantação desta nova concepção espiritual e filosófica, podem ser extraídos dos capítulos que compõem o pen- samento escolástico na Europa ocidental, a partir do século XII, e também da compreensão do novo modo de construir (o opus francigenum), igualmente a partir desta época: o estilo gótico.

Assim, como nos aponta Erwin Panofsky168, no mesmo momento em que

Lanfranco e Anselmo de Bec iniciam a heroica tentativa de solucionar, por fusão, o conflito entre a fé e a razão, dando início ao programa da “fé em busca do in- telecto” (fides quaerens intelectum), e de toda a trajetória da escolástica medieval, surge, igualmente, o projeto de uma nova maneira de construir, na expressão que deu o Abade Suger no projeto para a igreja de Saint-Denis. “Tanto a nova forma de pensar, como o novo modo de construir, irradia-se de um raio de 150 km de Paris; por mais de 100 anos esta região será o núcleo intelectual e construtivo da

168 Ver PANOFSKY, Erwin. Gotische Architektur und Scholastik, 1951; tr.port. Arquitetura Gótica e

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cristandade. E exatamente no momento do apogeu escolástico, no século XIII, o gótico se expressa nas catedrais monumentais de Chartres e de Soissons”.169

Pode-se vislumbrar na fachada da catedral de Chartres, em contraste com o Românico, o novo interesse que havia ficado adormecido por séculos. As esculturas da fachada de Chartres, já incomparavelmente mais cheias de vida, ainda que não semelhantes a retratos, do apogeu gótico, como em Reims, Amiens, Estrasburgo e Naumburgo; e a flora e a fauna ornamentais do apogeu gótico, de aparência natural, anunciam a vitória do aristotelismo.

Acreditar-se-á, a partir de então, com base no hilemorfismo aristotélico, que a alma do homem, embora imortal, representasse também o princípio orga- nizador e unificador do corpo mortal, não existindo independentemente dele. Uma planta florescia enquanto planta e não enquanto imagem da ideia de uma planta, como era assim entendido para o platonismo. Dominará, doravante, a concepção de que a existência de Deus poderia ser provada a partir de suas

criações, não precisando ser postulada a priori.

A escolástica foi fomentada pelos Beneditinos; fundada praticamente por Lanfranco e Anselmo de Bec, e levada ao auge pelos Dominicanos e Franciscanos. Identicamente, o estilo construtivo gótico foi estimulado a partir das construções nos mosteiros beneditinos, introduzido originalmente por Suger em Saint Denis.

Este era um momento de um enorme desenvolvimento comercial que se es- tendia por várias zonas urbanas, e da vida profissional urbana que começava a se estruturar nos diferentes grêmios e corporações de ofício por toda a Europa. É inte- ressante notarmos que o “editor profissional” (stationarius) produzia já nesta época, com a ajuda de escribas, uma grande quantidade de livros manuscritos; “os enlumi-

neurs ocupavam, já no século XIII, todo um conjunto de ruas em Paris”.170

Inicia-se também um movimento progressivo de reconhecimento individual e pessoal dos responsáveis e autores pelas obras e construções, transformando-se a característica básica de autoria coletiva do período antecedente à escolástica e antecedente a esta fase pioneira de nossa modernidade. A partir de então, o retra- to dos arquitetos profissionais passa a ser colocado ao lado do fundador da igreja, nos labirintos das grandes catedrais. Por exemplo, após sua morte em 1263, foi

169 Panofsky, op.cit, 1991, p. 3

170 PANOFSKY, Erwin. Gotische Architektur und Scholastik, 1951; tr.port. Arquitetura Gótica e Escolástica:

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concedida a Hugues Libergier, arquiteto da igreja de Saint-Nicaise, em Reims, a homenagem ímpar e pioneira de ser perpetuado em uma lápide em que foi retrata- do não só com vestes de uma espécie de um homem de letras (um scholar), como também ostentando nas mãos um modelo da “sua” igreja, privilégio que até então só havia sido concedido aos patrocinadores nobres. Ver figura 11.

Fig. 11. O arquiteto Hugues Libergier e “sua” catedral (Saint-Nicaise)

O objetivo estético da escolástica nas obras arquitetônicas, seu modus es-

sendi, será a demonstração de uma unicidade da verdade entre a fé e a razão.

A teologia utilizará, a partir de então o intelecto humano não somente para comprovar a fé, mas para explicitá-la, por manifestare ao homem. Isto significa que a inteligência humana, na concepção escolástica, jamais seria bem sucedida em produzir provas diretas para as questões da fé, mas poderia, sim, e mesmo deveria, ilustrar e explicar com sucesso estas questões da fé.

Pelo lado afirmativo, em outras palavras, a inteligência humana seria ca- paz de apresentar similitudes, ainda que sem caráter probatório, que poderiam explicitar e clarear os mistérios, por meio de analogias visuais.

Assim, para Panofsky, por exemplo, e com enormes consequências para os objetivos das teses contidas neste livro, o primeiro princípio organizador da escolástica, isto é, desta fase pioneira de nossa modernidade, tanto em sua fase inicial como em seu apogeu, é a manifestatio: a explicitação ou a clarificação.

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Por isso, para expressar este princípio, ter-se-ia que aplicá-lo à própria ra- zão. E isto só seria possível através de uma forma de expressão escrita, ou descri- tiva figurativa evidente, no plano da compreensão humana, que esclarecesse os próprios processos do pensamento. Foi neste percurso cultural e filosófico que se desenvolveu o extremo formalismo dos textos escolásticos, formalismo este que foi de uma importância capital para o rompimento do universo pansemió- tico simbólico-analógico anterior à escolástica, e de que tanto se ironizou em períodos posteriores da modernidade.

O ponto alto deste formalismo expressivo extremo da escolástica, e figu- rativo no campo especificamente estético, é a summa clássica, cujas caracterís- ticas principais são:

1. a completude; isto é, a enumeração suficiente;

2. o ordenamento, segundo um sistema de partes equivalentes e de partes

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