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A radicalização do antropocentrismo e a confirmação do sujeito como fonte do novo critério de verdade; a metafísica da subjetividade.

No documento A Norma do Novo_DTP (2) (páginas 125-134)

Escatologia e do Milenarismo Cristão

C) A radicalização do antropocentrismo e a confirmação do sujeito como fonte do novo critério de verdade; a metafísica da subjetividade.

Aqui, os termos chaves para a compreensão da cristalização de um direi- to privativo exclusivo de propriedade industrial (especificamente patentário), e conforme veremos com detalhes no capítulo 3/II desta Parte II, são: a noção e valorização do indivíduo, do sujeito e do privado. Ainda, da parte, do singular, do fragmentado, da “análise” local, parcial e, conforme veremos, do lugar do pensar subjetivo (intelectivo), como lugar e fonte da verdade moderna.

Derivam dos três pilares acima as sínteses conceituais utilizadas no título desta Parte II: Novidade, Representação e Sujeito.

Embora os três fundamentos acima sejam cardeais para a compreensão da modernidade e também para a compreensão da gênese e consolidação das principais categorias (mentais, culturais ou institucionais) que nortearam, e de certa maneira ainda direcionam, os sistemas modernos de patentes, a análise do item A acima - o processo de imanentização e secularização do messianismo ju- daico e da escatologia cristã - é marcadamente importante para o entendimento da enorme inflexão espiritual ocorrida na Europa Ocidental em torno do Ano

1000, e mais especificamente nos séculos XII e XIII, a partir da cristalização

sucessiva da concepção escatológica trinitária evolutiva progressista ascendente do abade calabrês Joaquim de Fiore.

Conforme veremos neste capítulo 1/II desta Parte II, um certo otimismo tomou conta dos espíritos daqueles que aguardavam ansiosamente, ou resignadamente, a con- sumação dos tempos, ou seja, o término do mundo profetizado e anunciado nos textos sagrados judaicos e cristãos, e nas inumeráveis apocalípticas da Alta Idade Média.

Há cerca de dez séculos, Thietmar de Merseburgo, e, em nosso tempo, Hen- ri Focillon, Georges Duby, E.Mounier e outros, apontam e descrevem esta inflexão

otimista tão determinante para os destinos da Europa Ocidental e a construção da

modernidade, que ocorre a partir dos séculos XI e XII. Veremos adiante, inclusive, que esta transformação inverteu o entendimento do ciclo histórico da Igreja ins- titucional cristã-católica da Alta Idade Média (Orígenes-agostiniana), onde pre- valeciam as teses e a dogmática de Agostinho de um saeculum senescit (um mundo

que envelhece) para a Cidade Terrena dos homens. E com a simbologia escatológica

trinitária progressista e renovadora de Joaquim de Fiore, organizar-se-á, então, o novo cenário histórico-conceitual e filosófico que prevalecerá fundamentalmente até os dias atuais. Podemos praticamente afirmar que a simbologia escatológica

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joaquimista sustentará, como veremos, as Filosofias da Esperança, as utopias so- ciais, as teorias do progresso e da evolução, e a política de nossos tempos.

É importante ressaltar que uma outra direção filosófica e cultural niti- damente “pessimista” ocorreu em torno dos episódios ocorridos a partir dos séculos XI e XII na Europa continental, mas que foi devidamente abafada, e violentamente exterminada: o crescimento ou a renovação da filosofia (ou, para alguns, da heresia) gnóstica.

Entretanto, se o gnosticismo cristão, antes dos massacres empreendidos pela Igreja Católica romana contra os cátaros, caminhava em direção oposta às mensagens joaquimistas, uma série de outras características que compõem a fi- losofia gnóstica ganharão proeminência e importância para certos fundamentos da modernidade, especialmente em suas versões mais secularizadas. Ademais, a filosofia gnóstica jogará um papel relevante para o sucessivo processo de subje- tificação da “verdade”, e engrandecimento do indivíduo.

“... no Ano Mil, o homem do Ocidente atinge o cúmulo das desgraças que o perseguiam durante todo o século X; a crença no fim do mundo é reavivada pela aproximação da data fatídica e estimulada por prodígios; um medo indes- critível apodera-se da humanidade; os tempos preditos pelo Apóstolo chegaram ... Mas o ano passa, o mundo não é destruído, a humanidade respira aliviada e entra com reconhecimento em novas vias. Tudo muda, tudo melhora.66

“De certo, para a geração que precede o Ano Mil o grosso do perigo e do infortúnio havia passado; piratas normandos virão ainda capturar princesas na Aquitânia para exigirem resgate, e ver-se-ão os exércitos sarracenos cercar Nar- bonne; acabaram, no entanto, as grandes agitações e sente-se que já começou o progresso lento e contínuo cujo movimento não deixou de arrastar, desde então, as regiões da Europa Ocidental. De imediato manifesta-se um despertar da cultura, uma ressurgência do escrito; logo reaparecem os documentos. A história do Ano Mil torna-se, a partir de então, possível ...”.67

“Para os historiadores que começaram a trabalhar a seguir ao milênio da Paixão, os juramentos de paz, as peregrinações, todas as medidas de purificação coletiva tinham atingido o seu objetivo. Podiam-se ver as forças do mal recu- arem em desordem. A cólera de Deus acalmava-se. Ele aceitava concluir um

66 FOCILLON, Henri. L´An Mil, 1952; tr.port. O Ano Mil, 1977; p. 44 67 DUBY, Georges. O Ano Mil, 1967; p. 12

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novo contrato com o gênero humano. Cumpridos os mil anos após a passagem dos flagelos, era como se a cristandade saísse de um novo batismo”. Ao caos su- cedia a ordem. O que se segue ao Ano Mil é uma nova primavera do mundo.68

Emmanuel Mounier, inaugurador da Filosofia Personalista contemporâ- nea, dirá: “Por volta do Ano Mil, o medo dos medievais diante do iminente fim do mundo constituiu o estímulo para a construção de uma sociedade melhor, foi aguilhão que levou à melhoria, para que os homens não tivessem que se apresentar de mãos vazias diante de Deus.69

Contrastando também com os horrores e os temores aguardados para o Ano 1000, invertendo mesmo a expectativa pessimista, e antecipando-se à formulação escatológica determinante e crucial para o entendimento filosófico da moder- nidade que foi a de Joaquim de Fiore no final do século XII, Thietmar de Mer- seburgo, no início do século XI, dirá que o Ano Mil é, muito ao contrário, uma data espantosa, pois a interpreta como o consolador milenário do nascimento de Cristo. Thietmar dirá em suas Crônicas: “... completado o milésimo ano sobre o parto redentor da Virgem sem pecado, brilha no Mundo uma manhã radiosa ...”.70

Este capítulo busca exatamente estudar e apresentar as principais caracterís- ticas desta transformação espiritual fundamental ocorrida na Europa Ocidental, em torno do Ano Mil, e que até hoje compartilhamos, de certa forma, como um destino civilizacional comum, inflexão esta que deslocou prática e teoricamente os símbolos componentes dos eixos direcionais e axiológicos que operavam no es- paço categorial do passado e do transcendente estáveis, para os eixos direcionais e axiológicos modernos do devir / futuro (ascendente) e do imanente-secular.

Em outras palavras, este capítulo busca estudar o deslocamento do univer- so da referência estática da fixidez e imutabilidade do Ser, e da normatização ética como costume e hábito, para o universo de referência da dinâmica e do movimento dos entes e do homem (a “queda do Ser no tempo”), e da normati- zação de um comportamento humano sucessivamente aspirante de novidades, de rompimentos sucessivos com o feito, e uma busca de um eidos claramente humano para a História. A consolidação de uma “Era Histórica” como destino

68 Ver detalhes em DUBY, Georges. O Ano Mil, 1967; p. 179

69 Ver REALE, Giovanni., ANTISERI, Dario. Il Pensiero Occidentale dalle Origini ad Oggi, 1986; tr.port.

História da Filosofia, 3 vol., 1990; p. 739

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do ciclo civilizacional judaico-cristão católico ocidental, como querem alguns, ou um caminho “Da Ordem para a História”, como dizem outros.71

Sem a compreensão desta inflexão espiritual, filosófica e cultural em to- das as suas consequências e alcance, não estaremos aptos a compreender, na essência, o centro categorial da instituição do sistema de patentes da moderni- dade, núcleo este que tem, na busca ininterrupta do novo (das novidades), a sua expressão volitiva maior. Este novo sucessivo, traduzido em linguagem corrente secularizada e prática como novas técnicas, novas invenções, aperfeiçoamentos,

inovações, etc., encontra-se atrelado ainda à fórmula da temporalidade restrita

deste mesmo sistema patentário. A concessão de um privilégio exclusivo sobre algo absoluta ou relativamente novo, do sistema de patentes moderno, se dá em um intervalo temporal restrito, um tempo finito e relativamente curto, de 15 a 20 anos, em média, forçando, assim, que um encadeamento sucessivo de novi- dades se verifique na “prática” dos pretensos titulares dos direitos de patentes.72

Assim, o impulso ao novo, atrelado à temporalidade restrita do sistema de patentes, cria um fluxo constante e ininterrupto de destruição criadora. E este processo de destruição criadora verifica-se não só nos meios materiais, econô- micos e concretos no sentido do apelo ou da satisfação direta das necessidades subjetivas e de manutenção do crescimento incessante das economias modernas (resultados mais aparentes e fáceis de serem percebidos), mas verifica-se também nos meios, fórmulas e símbolos culturais e epistemológicos em geral: novas teorias e compreensões científicas que se sucedem aceleradamente; novos movimentos artísticos, vanguardismos; crises e revoluções conceituais, culturais e de costu- mes sucessivas; novos tempos sucessivamente anunciados; esperanças políticas e sociais gestadas como fórmulas de perpetuação de desigualdades; apelos para- cléticos e salvacionistas de diversas ordens; revolucionários de todos os matizes.

Em suma, concluiremos neste capítulo que:

O Novo é o galho-expressão de uma árvore cujo tronco-símbolo é a Es-

perança (futurição), cuja raiz-id, como reservatório de pulsões instintivas e pro-

fundas, é o messianismo judaico e a escatologia cristã.

71 Por exemplo, FOUCAULT, Michael. Les Mots et les Choses, 1966; tr.port. As Palavras e as Coisas, 1987 72 Ver, neste particular, PRETNAR, Stojan. Industrial Property and Social System, Industrial Property, 1981

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E este simbolismo acima, interpretado, visto e entendido na sua imanência e posterior secularização, nos fornece o galho-expressão das novidades ininterrup-

tas (inovações, invenções, criações), do tronco-símbolo do Utopismo, do Evolu-

cionismo, Progressivismo, Cientificismo e Iluminismo, cuja raiz inconsciente é a mesma: o messianismo judaico, a escatologia cristã e o “salvacionismo” em geral.

Esta árvore-signo transforma radicalmente o universo simbólico da Antigui- dade clássica, a ontologia tradicional (a metafísica) e a teologia clássica; não de forma abrupta evidentemente, mas ao longo de um ciclo histórico civilizacional (judaico-cristão), cujo esboço-estrutura definitiva começa a tomar forma a partir dos séculos XI, XII e XIII em certas regiões da Europa Ocidental, tem a sua ex- pressão sígnica mais evidente e consciente no século XVII; uma certa apoteose ideológica e cultural nos séculos XVIII e XIX, e um certo universalismo durante o século XX, mas com a existência, agora, de sinais de um possível esgotamento.

Pois tudo isto tendeu a romper a fixidez do Ser da ontologia clássica (pré-cristã), para gerar a primazia do ser-devir na história como fenômeno, instalar o Ser no tempo (linear, progressivo, ininterrupto, diacrônico e ascendente), e sucessivamente cami- nhar para o próprio esquecimento e negação do Ser, com a Fenomenologia.

A estrutura subjacente de compreensão do novo e do progressivismo tecno- lógico e material, base irrenunciável de compreensão do sistema de patentes na modernidade, está vinculada e gerada, portanto, por dois grandes componentes:

i) primeiro, da leitura imanente do componente teleológico do simbolismo cristão, herdado do judaísmo messiânico, do Destino Sobrenatural; e

ii) segundo, da leitura e da práxis imanente da esperança messiânica judaica, a Era messiânica, isto é, da concepção profética da história, conforme a interpre- tação do judaísmo clássico e reinterpretado na modernidade a partir da simbolo- gia escatológica trinitária (ascendente, linear e diacrônica) de Joaquim de Fiore.

São os itens acima que explicam a penetração e a consolidação da ideia de novidade sucessiva e do projetar-se adiante como esperança salvítica; tanto na sua versão mito-religiosa, com o advento do Reino e de uma Era messiânica be- atífica, como na sua versão imanente e secular, com a construção da Civilização como a apoteose do projeto criacionista do homem moderno.

“Se levarmos em conta, por um lado, essa essencial relação entre ethos e tra- dição e, por outro, a estrutura dialética circular do tempo da tradição ética, pode- remos compreender melhor a profundidade da crise do ethos na moderna sociedade

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ocidental, na qual a primazia do tempo quantitativo transfere do passado para o futuro a instância normativa do tempo ou o seu “centro de gravidade” (K.Pomian): o que significa conferir ao tempo por vir os predicados axiológicos que asseguravam a exemplaridade do passado na formação do ethos tradicional. A relação do conceito fundamental da eticidade com o tempo histórico torna-se, assim, extremamente problemática e aqui reside, sem dúvida, uma das causas mais visíveis desse niilismo ético que assinala dramaticamente, nas sociedades ocidentais modernas, a ruptura da tradição ética ou a desarticulação do processo dialético que aqui chamamos tra-

dição e que realiza a suprassunção da oposição linear do presente e do passado na

perenidade normativa do ethos. A primazia do futuro na concepção do tempo (para a modernidade) é homóloga à primazia do fazer técnico na concepção da ação, do qual procede o pressuposto utilitarista que, sob várias denominações e formas, sub- jaz a todo o desenvolvimento da ética moderna”.73

O Milenarismo

As crenças milenaristas não se compõem de palavras vãs .... Se o Apocalipse e os diversos comentários apocalípticos apresentam através dos séculos uma vigorosa continuidade no Ocidente, se sustentam a fé dos reformadores religiosos e sociais modernos, de Joaquim de Fiore ao protestantismo e, de certa forma, do marxismo, do evolucionismo e das teorias contemporâneas da Esperança, é porque constituem elementos essenciais do pensamento religioso e filosófico do Ocidente.74

A ideia do fim do mundo, bem como a de um renascimento glorioso, e o tema da periodicidade milenária aparecem em muitos povos antigos como ele- mento fundamental da sua religião, da sua filosofia e de seus conceitos de tem- po e de história. Em outras palavras, é o tema da destruição criadora, recorrente e periódica, visto por seus ângulos mais simbólicos e metafísicos.

Assim, por exemplo, no masdeísmo (persa), ao término de 1000 anos, o inverno e as noites abatem-se sobre o Mundo; mas os mortos ressuscitados des- cem do Reino de Yima para repovoar a Terra. A expectativa do masdeísmo da derrocada do arquidemônio Ahriman no fim dos dias, entrelaçada com o mito babilônico de uma batalha entre o Deus supremo e o dragão do caos, penetra-

73 LIMA VAZ, H.C. Mística e Política, Síntese NF n.42, 1988; p. 20 74 FOCILLON, Henri. L´An Mil, 1952; tr.port. O Ano Mil, 1977; p. 53

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ram na escatologia judaica e influenciaram profundamente na construção dos símbolos apocalípticos do tirano dos últimos dias (o anticristo para os cristãos).75

Crenças idênticas encontramos na antiga mitologia germânica e em certas comunidades muçulmanas.

No De Natura Deorum, Cícero explica como o mundo será destruído pelo fogo; entretanto, como o fogo é alma, é deus, o Mundo renascerá tão belo como era antes.

Segundo o milenarismo cristão (o millenium, ou o chiliasme), Cristo deve governar o mundo durante um período de 1000 anos. Esta ideia, conforme ve- remos, será essencial na cristandade primitiva, onde continuou uma antiga tra- dição apocalíptica judaica.

O significado original do termo milenarismo era estreito e preciso. A cristan- dade sempre possuiu uma escatologia (como doutrina) relativamente aos últimos

tempos, os últimos dias, ou o estado final do mundo (a consumação do tempo); e o

milenarismo cristão (o milênio ou o quiliasmo) não foi mais do que uma variação da escatologia cristã. Referia-se à crença de alguns cristãos, baseada na autoridade do Livro da Revelação (20, 4-6), a Revelação de S.João, ou o Apocalipse de João, que disse que Cristo, depois de sua segunda vinda, estabeleceria um Reino messiânico sobre a Terra e reinaria nela durante mil anos antes do Juízo Final. Segundo o Livro

da Revelação, os cidadãos deste Reino seriam os mártires cristãos que ressuscitariam

para esta finalidade 1000 anos antes da ressurreição dos demais mortos.

O millenium cristão significa, em termos gerais, o supremo combate contra os inimigos de Deus, o regresso de Cristo, o Juízo Final, e a fundação, na Terra,

de um Reino Glorioso.

Na literatura apocalíptica judaica, em Jeremias, Ezequiel e Daniel, bem como nos Salmos, o Reino messiânico não é limitado na sua duração. Poste- riormente surge uma nova ideia: distinguir-se-á a vinda do messias, do apareci- mento posterior do Deus-Juiz. Daí a atribuição de uma duração limitada à realeza

messiânica. “Limitada, mas não precisada no Apocalipse de Baruch, para quem

essa realeza durará até acabar a corrupção do Mundo - texto preciso, pois nos proíbe que confundamos o Reino messiânico (onde a humanidade se debateria ainda contra o pecado), com o Reino de Glória”.76

75 Para um aprofundamento ver FOCILLON, Henri. L´An Mil, 1952; tr.port. O Ano Mil, 1977; p. 45 76 HARNACK, art. Millenium, Enc. Britânica, v.15, 1934; p. 89

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Conforme indica o Apocalipse de Baruch: ... donec finiatur corruptio mundi .... É no meio da corrupção do mundo, e para lhe pôr termo, que deve trabalhar a Igreja militante até o dia em que, depois da convulsão de Satanás, depois do Juízo Universal, a Igreja triunfante (a Igreja da comunhão em Deus) será esta- belecida num mundo renovado. O reinado terrestre não é, portanto, o reinado da virtude e da paz, mas sim o desenrolar do drama, queda e redenção, drama repleto de catástrofes e sofrimentos.

Segundo o Apocalipse de Esdras e o Talmud, a duração do Reino messiâ- nico é de 400 anos. Entretanto, a cifra que mais frequentemente lhe é atribuída é a de um milênio, isto é, “um dia de Deus, um dia de mil anos”.

Veremos reaparecer durante grande parte da Alta Idade Média, e prin- cipalmente a partir da consolidação da interpretação agostiniana da História, esta concepção mais simbólica de uma semana imensa, cujos sete dias constitui- riam as sete Idades do Mundo, a última das quais, preenchida pela realeza do Messias, possuindo valor sabático.

Adolf von Harnack nota justamente que o princípio de uma limitação de dura- ção não aparece nem na literatura evangélica e nem na apostólica. Mas o Apocalipse

de S.João, esse estranho testemunho da sobrevivência do pensamento judaico entre os

cristãos da Ásia, é formal e claro neste ponto: o Reino messiânico deve durar mil anos. Depois, Satanás (o Anticristo) reaparecerá por pouco tempo e será destruído. Então, os mortos sairão das suas sepulturas para serem julgados e, como no masdeísmo persa, um novo universo, Reino de glória, será criado pelos escolhidos.

Atualmente, usa-se o termo milenarismo em um sentido mais amplo. Este termo converteu-se, contemporaneamente, numa designação específica de salvacionismo.

Os movimentos ou seitas milenaristas (salvacionistas e soteriológicas) sempre descrevem a salvação contendo as seguintes características:

1) coletiva; deve ser desfrutada pelos fiéis em coletividade;

2) terrestre; no sentido de que deve realizar-se na Terra, e não no céu, fora deste mundo, com exceção da importante e marcante reinterpretação de Jerô- nimo, de Orígenes e, fundamentalmente, de S.Agostinho;

3) iminente; deve chegar logo e de modo repentino;

4) total; no sentido de que transformará toda a vida na Terra, de tal modo que a nova situação não será uma simples melhoria do presente, mas sim a perfeição;

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5) milagrosa; deve realizar-se por e com a ajuda de intervenções e forças sobrenaturais.77

Dentro dos limites apontados acima, existe, evidentemente, uma varieda- de muito grande de possibilidades de se imaginar o milênio e o caminho para alcançá-lo. Como nos mostrou Norman Cohn, em estudo clássico e referência obrigatória sobre o tema, as seitas milenaristas variaram desde atitudes mais agressivas e violentas, até o absoluto pacifismo e ascetismo; ou seja, desde uma absoluta convicção espiritual e resignada, até uma convicção materialista, cruel e claramente revolucionária. Por exemplo, desde os espirituais franciscanos do sé- culo XIII, ascetas rigorosos, cuja concepção do milênio passava por uma união de oração, contemplação mística e pobreza voluntária, até as seitas milenaris- tas mais atuantes, derivadas dos pobres e despossuídos, movimentos violentos, anárquicos e muitas vezes revolucionários.

Estes últimos (os pobres), bem como todos os ulteriores reformadores sociais

salvacionistas, não criaram ao longo do tempo uma fé milenarista própria, mas sim

a receberam de presumidos profetas e messias que elaboravam suas mensagens à luz das apocalípticas clássicas. Vários símbolos milenaristas provinham inicial- mente dos judeus e posteriormente dos cristãos primitivos, conforme veremos; outros tiveram sua origem na escatologia de Joaquim de Fiore, no século XII.

Setores sociais pobres foram, e poderíamos claramente dizer que conti- nuam a ser, facilmente cativados pelas profecias milenaristas e por discursos paracléticos de líderes “salvacionistas”. O desejo de melhoria de vida e o apelo à esperança (futura) se transfiguraram muitas vezes em fantasias de um mundo renascido para a inocência, apesar de uma destruição final total e apocalíptica necessária. Os maus, que segundo as circunstâncias históricas poderiam ser os

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