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A Filosofia da Esperança de Ernst Bloch

No documento A Norma do Novo_DTP (2) (páginas 172-177)

A Filosofia da Esperança de Ernst Bloch, com sua apaixonada insistência no futuro, entendido como a mais autêntica dimensão do homem, está ligada ao neomarxismo de Georg Lukács e Karl Korsch, e também fortemente influen- ciada pelo hegelianismo.

Bloch dirá, em O Princípio Esperança, que “a esperança não é questão de pouca monta na vida humana. Ao contrário ela é a primeira coisa fundamental que o homem tem que aprender. ... o que importa é aprender a esperar”.139

Filósofos diferentes puseram no centro de suas reflexões diferentes ques- tões: o Ser, o conhecimento, o Estado, a consciência, etc. Bloch colocará a es- perança. E assim o fez por estar convencido de que o homem “originariamente vive unicamente direcionado para o futuro; o passado só chega mais tarde e o verdadeiro presente ainda não chegou. … O homem vive voltado para o futuro.

Para Bloch, “em toda a realidade, e não somente na humana, está presente e ati- vo um impulso originário que a impele adiante em direção à novidade do futuro, que a guia para a realização do possível”. Bloch chama de fome a dimensão cósmica deste impulso e de esperança ou desejo as suas manifestações na vida humana.

Assim, para E.Bloch, o princípio da esperança não é uma questão psicoló- gica, mas um princípio ontológico genuíno; é o princípio da ontologia do “Não- -Ainda-Ser”. Logo, na raiz última das coisas Bloch encontra o possível, isto é, o

Não-Ainda, vale dizer, o ainda não realizado passível de realização. “Uma abertu-

ra, consequência de condição não ainda inteiramente suficiente e, portanto, que se projeta como mais ou menos inadequada”. Essa abertura e esse estado incomple-

to, não é condição negativa. Pelo contrário, é muito mais condição positiva, cons-

tituindo o caminho para o cumprimento, para a emancipação humana: o impulso de esperar “amplia o horizonte do homem, longe de restringi-lo”, dirá Bloch. “Mas para que esse horizonte se amplie cada vez mais, precisamos de homens que se lancem ativamente dentro do Porvir do qual são parte”. O impulso de esperar, portanto, não suporta a resignação, como poderia parecer ...”.140

139 Ibid., p. 814

140 REALE, Giovanni., ANTISERI, Dario. Il Pensiero Occidentale dalle Origini ad Oggi, 1986; tr.port.

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“É do possível, portanto, que se desenvolve a realidade. E esse desenvolvimento realiza-se na interação do elemento subjetivo e do elemento objetivo: o fator subjetivo é a potência não exercida de fazer evoluir as coisas; o fator objetivo é a potencialidade não exercida ... da mutabilidade do mundo no quadro de suas leis, leis que, contudo, em novas condições, sofrerão variações sem perder o seu caráter de leis”.141

O elemento realizador desta possibilidade encontra-se também difundido no mundo pré-humano e extra-humano, mas “o homem é a possibilidade real de tudo o que aconteceu na sua história e, sobretudo, do que ele ainda pode se

tornar, em progresso ilimitado. Logo, o homem é possibilidade que não se exaure

...”. “Somente com o homem cognoscente-operante pode-se construir com pe- dras removíveis uma casa e uma pátria, isto é, aquilo que os antigos utópicos chamaram de regnum hominis, um mundo para o homem”.142

A função utópica do projetar e modificar consciente do homem, diz Bloch, representa a sentinela mais avançada e ativa do trabalhoso direcionamento para a aurora que aflige o mundo, do dia cheio de sombras em que todas as marcas do real, vale dizer, as formas do processo, ainda ocorrem e tem lugar. O homem pro- jeta e modifica conscientemente o mundo e a si mesmo, e o faz no espaço da utopia. Se a esperança é o elemento de impulsão e de fundo da vida humana, se o homem é chamado a se superar continuamente, projetando e criando o futuro, e se ele “é a criatura que, por essência, se projeta no possível que está diante de si”, então se pode compreender muito bem qual o nexo que vincula Marx a Bloch, pois a filosofia marxista é igualmente uma filosofia voltada para o futuro (para o que Não-Ainda-É), que se propõe transformar o mundo, e não apenas contemplá-lo ou interpretá-lo, con- forme Marx escreverá, em 1845, em suas críticas e famosas “Teses sobre Feuerbach”.

Conforme afirma W.J. Rehfeld:

“Em sua obra O Princípio Esperança, o filosofo marxista Ernst Bloch acentua a importância de descartar a ideia duma natureza, de um “ser” estático do homem e da sociedade e de retornar à aceitação da sua perfectibilidade essencial. Bloch interpreta a décima primeira Tese sobre Feuerbach, afirmando que a verdade do pen- samento marxista consiste em ser uma filosofia que propõe transformar o mundo no contexto de um processo de mudanças de uma realidade que ainda não está concluída, mas cujo futuro continua aberto. Portanto, não é suficiente apenas inter-

141 Ibid., p. 816 142 Ibid., p. 817

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pretá-lo como algo pronto e acabado, mas é preciso transformá-lo para que chegue a ser aquele mundo em que, de fato, vale a pena viver”.143

“Somente um pensamento voltado para a modificação do mundo, pensamento cheio de vontade de mudança, pode se referir ao futuro (o espaço não concluído que está diante de nós) não como um obstáculo. ... Só o saber, como teoria-práxis cons- ciente, diz respeito ao futuro e a tudo o que nele pode ser decidido; um saber con- templativo, ao contrário, per definitionem, só pode se referir ao que já aconteceu”.144

Para Bloch, entretanto, diferentemente de Marx, o homem é alienado por- que é incompleto; incompleto como o universo de que é parte: o homem é a criatura que, por essência, se projeta no possível.

Bloch propõe renovar o marxismo, pois para ele Marx dedicou a maior parte de sua obra para a análise crítica do presente, ou do que “é”, ao invés de explorar mais a fundo as possibilidades do “dever-ser”. Para Bloch, hoje, mais do que a crítica que põe a nu as condições anti-humanistas da economia capi- talista, é preciso desenvolver o marxismo como projeto do reino da liberdade.

Esta crítica de Bloch a Marx precisa ser referida, entretanto, às posturas e intenções teóricas da obra de Marx em sua totalidade. Como bem analisou Refheld “Marx reunia dois socialismos em sua poderosa personalidade: era um socialista utópico, à medida que o utopismo é compreendido como anseio de libertação dos trabalhadores da escravidão do trabalho, e era, ao mesmo tempo, economista que descrevia objetiva e cientificamente o caos econômico de seu tempo. Era discípulo da filosofia grega à medida que investigava cientificamente a essência, a natureza da economia capitalista, e discípulo dos profetas bíblicos e do messianismo judaico à medida que via na economia capitalista não um ser imutável, não uma natureza eterna, mas a fase de uma transformação que clamava um dever-ser em direção ao qual a sociedade deveria caminhar. Este dever-ser se encontrava na imagem de uma sociedade sem classes. Marx era discípulo dos profetas de Israel à medida que admitia uma perfectibilidade in- discutível do homem e da sociedade, à medida que pregava um humanismo ati- vo e combatível no lugar de um pensamento teórico apenas abstrato. A décima primeira tese sobre Feuerbach disso dá pleno testemunho: “os filósofos apenas

143 REHFELD, Walter, I. O Princípio Esperança: das Profecias Bíblicas aos Neomarxistas, Síntese NF, vol.20 n.62, 1993; p. 364

144 REALE, Giovanni., ANTISERI, Dario. Il Pensiero Occidentale dalle Origini ad Oggi, 1986; tr.port.

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interpretam o mundo de diversas maneiras. O que importa é mudá-lo”. Muito antes da sua obra máxima, O Capital, em que analisa cientificamente a essên- cia e o funcionamento do capital na sociedade industrial, expressa sua fé na perfectibilidade essencial do homem e da sociedade que constroem o mundo. Uma vez que é possível mudar este mundo, não é suficiente analisá-lo, afirma Marx, voltando-se, desta forma, ..., ao primado do dever-ser, instaurado pelos profetas de Israel, sobre a descrição do ser, desenvolvido pela filosofia grega”.145

Em mais uma passagem de enorme conteúdo filosófico e poético, Bloch afir- mará: “o vermelho calor do futuro impele o homem a transcender incessantemente as situações presentes e a superar os resultados adquiridos; o impele a conteúdos de esperança, em direção a mundos possíveis, no rumo da utopia; impele-o a encontrar uma pátria de identidade. É corrente de calor que agita a indestrutível esperança de vida nova, do calor novum ultimun. … Sonhos com os olhos abertos, consciência antecipadora, imagens de esperança refletidas na literatura, teatro, cinema, etc.146

Onde há esperança, há religião, dirá Bloch, numa evidente alusão à reli- gião judaico-cristã (católica). Marx e Feuerbach falarão da religião como um fenômeno de alienação. Bloch não. Para ele, “onde há esperança, há religião, um lamento pela existência atual e esperança de novo céu e nova terra”. Eis que

eu faço novas todas as coisas”. (Ap. 21-5).147

Em Ateísmo no Cristianismo, Bloch afirmará que a dimensão teocrática do cristianismo aniquila o homem destruindo a sua abertura para o novo, enquan- to que a dimensão herética, por outro lado, é dimensão subversiva, é contesta- ção do existente, é o fio vermelho que atravessa toda a Bíblia, onde explode o “sofrimento de quem não quer permanecer assim, a espera premente do êxodo, das reparações, do tornar-se diferente”.

Finalmente, W.Refheld, referindo-se à atualidade da obra de Ernst Bloch, no âmbito especificamente da interpretação judaica, obviamente, afirma: “uma reali- dade que ainda não está concluída, mas cujo futuro continua aberto, é uma reali- dade que oferece esperança, que promete que a injustiça, a violência e a crueldade que caracterizam a nossa Era poderão ser superadas, para dar lugar a um mundo de

145 Rehfeld, op.cit., 1993, p. 363

146 REALE, Giovanni., ANTISERI, Dario. Il Pensiero Occidentale dalle Origini ad Oggi, 1986; tr.port.

História da Filosofia, 3 vol., 1990; p. 818

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justiça, de igualdade e de felicidade, como previsto na pregação dos grandes profetas bíblicos. Particularmente num momento da derrocada das estruturas econômicas, sociais e ideológicas do mundo marxista, continua a necessidade de um dever-ser social, uma imagem do homem e da sociedade, como deveriam ser e não são, mas como podem e devem vir a ser graças a um princípio que continua válido, o princí- pio da esperança, da perfectibilidade essencial do homem e da sociedade”.148

De todo o exposto acima parece desnecessário perguntarmos onde se en- contram as bases simbólicas, filosóficas ou conceituais de sustentação do impul- so adiante, do progressivismo, do salvacionismo e do evolucionismo contempo- râneos; e, no tema que aqui nos ocupamos, do impulso recorrente, sistemático, e por vezes paranóico, para a busca de novidades que organiza e dá razão, vale dizer, fundamenta, os sistemas de patentes de invenção modernos. Poderíamos mesmo afirmar que Ernst Bloch talvez seja um excelente exemplo e intérprete das condições metafísicas de um dos fundamentos simbólicos da manutenção e da existência do sistema de patentes de invenção em nossa época, entendido este como uma orientação prática, funcional e legitimadora e legitimada da própria filosofia e das teologias da esperança; talvez um “instrumento (estatutá- rio) da esperança”; uma “ferramenta” (embora deformada) da esperança.

E não só Bloch, naturalmente. Diversas outras correntes filosóficas e vários outros importantes filósofos contemporâneos poderiam ser citados, como por exem- plo alguns representantes da fenomenologia e do existencialismo (que veremos na Par- te III), o espiritualismo de H.Bergson, o neopositivismo, o “darwinismo social”, etc.: “A evolução só pode terminar com o estabelecimento da mais elevada perfeição e da mais completa felicidade”. (H.Spencer)

“O homem não é uma coisa e nem possui natureza fixa; o homem é uma tarefa, um a-fazer (um que-hacer) ... A vida é como um naufrágio do homem em sua circunstância. Temos que fazer sempre algo para mantermo-nos na superfície. Cada homem não pode deixar de ser um homem de seu mundo e de seu tempo ... e sendo a-fazer, a vida é projeto, transcorre também em função do que ainda-não-é, ou seja, o futuro; a vida é, também, futurição ... Se a vida humana tem que ser feita, então a vida de cada um é profecia constante, é essencialmente, queiramos ou não, antecipação do futuro; viver é, portanto, profetizar, antecipar o porvir”.149 (Ortega y Gasset)

148 REHFELD, Walter, I. O Princípio Esperança: das Profecias Bíblicas aos Neomarxistas, Síntese NF, vol.20 n.62, 1993; p. 364

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Sessão II / II – Representação

Capítulo 4 / II – A Gnosiologia Moderna.

A Desconstrução do Vínculo Analógico

e a Primazia da Representação.

No documento A Norma do Novo_DTP (2) (páginas 172-177)