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A Dignificação do Ato Contemplativo e da Vita Contemplativa

No documento A Norma do Novo_DTP (2) (páginas 81-86)

A dignidade do ato contemplativo e da bios theoretikos do homem na filoso- fia clássica e na cristandade Orígenes-agostiniana é outro elemento importante para se compreender a primazia e a superioridade axiológica da reflexão metafí- sica comparativamente à vita activa de nossa modernidade, bem como às demais atividades dedicadas à superação das necessidades materiais e econômicas.

O primado da contemplação e do conhecimento teórico (da theoria) e

prático (do ethos) sobre a atividade e o conhecimento poiético, na Antiguidade

e na Idade Média, baseia-se na convicção de que nenhum trabalho de mãos humanas pode igualar em beleza e verdade, o cosmos físico que revolve em torno de si mesmo, em imutável eternidade, ordem, e beleza. Esta eternidade e

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beleza somente se revelam aos olhos dos mortais quando todos os movimentos e

atividades humanas estiverem em absoluto repouso.

O uso do termo “eterno” acima exige um esclarecimento conceitual im- portante que o diferencia de imortal. A theoria ou o ato contemplativo é a desig- nação dada à experiência do eterno, em contraposição a outras atividades que, no máximo, poderiam alcançar a imortalidade, como por exemplo, os grandes feitos e as grandes obras humanas, ou mesmo dos deuses (erga obras).

A experiência do eterno, que para o gnóstico Platão era arrheton (indizí- vel), isto é, não exprimível por palavras, só poderia ocorrer fora da esfera dos negócios humanos e fora da pluralidade dos homens. A experiência do eterno, diferentemente da experiência do imortal, não correspondia a quaisquer tipos de atividades, incluindo aqui a conotação de movimento, e nem poderia nela ser convertida. Até mesmo a atividade do pensamento, que ocorre dentro da pessoa através de palavras, é inadequada e interromperia a própria experiência (a gnose), que é pura intuição.

É também neste sentido que Aristóteles pretendia definir a mais alta ca- pacidade do homem, que para ele não era o logos, isto é, a palavra, ou a razão, mas o nous, a capacidade de contemplação, cuja principal característica é que seu conteúdo não pode ser reduzido a palavras ou a descrições comunicativas diretas entre os homens.

A imortalidade, ao contrário, estava relacionada à continuidade no tem- po, isto é, a vida sem morte, na terra e no mundo, tal como foi dada à natureza (physis) e aos deuses do Olimpo. E a mortalidade (por exemplo, dos homens) significava mover-se ao longo de uma linha reta num Universo em que tudo o que se move o faz num sentido cíclico. A grandeza potencial ou virtual dos mortais estava relacionada à sua capacidade de produzir grandes obras, grandes feitos e palavras; e quanto mais duráveis, grandiosas e perenes, como vimos, seriam mais importantes, e que designavam por erga.

O eterno, o repouso e a estabilidade são, portanto, os verdadeiros centros do pensamento estritamente metafísico, norteadores da dignidade maior na on- tologia clássica, até o limiar de nossa modernidade, conforme veremos.

É clara entre os gregos clássicos e para os homens da Idade Média como um todo, portanto, a dicotomia entre a absoluta quietude da contemplação (otium) e o nec-otium (a inquietude). Para Aristóteles, por exemplo, toda ativi- dade e ação devem culminar na absoluta quietude do ato contemplativo: todo

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movimento, os movimentos do corpo e da alma, bem como o discurso e o racio- cínio, devem cessar diante da Verdade. E esta verdade, seja a antiga verdade do

Ser, ou a verdade cristã de Deus posteriormente migrada da concepção clássica,

só poderia revelar-se em meio à completa quietude humana.

E a cristandade Orígenes-agostiniana da Alta Idade Média irá conferir sansão religiosa ao rebaixamento da vita activa e do conhecimento poiético.

A posição subalterna e secundária da atividade, da ação, do movimento, e obviamente das ações econômicas ou tecnológicas, abriu caminho para a con- templação absoluta do eterno feito Deus.

Assim, até o início da modernidade, a expressão vita activa jamais perdeu sua conotação negativa e indigna de inquietude e nec-otium.

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Capítulo 2 / I – A Inserção Temporal Cíclica

no Arcaísmo, na Cultura Greco-Romana e

na Circunstância Judaica Cristã Agostiniana

Ivan Domingues, citando Dilthey, dirá que a intuição do efêmero e da transitoriedade das coisas é a primeira forma de que se reveste a experiência humana do tempo, e como um enigma acompanha a trajetória da humanidade desde as épocas mais remotas: a variabilidade e a dinâmica da natureza, a fragi- lidade da existência e da vida, a precariedade das instituições humanas e sociais - em suma, a visão de um múltiplo desordenado - atestam a ação implacável e destruidora do tempo, com o ciclo de nascimento, crescimento e morte. E os homens, então, desde os tempos mais remotos, buscarão explicações que pos- sam dar sentido a essa experiência tão efêmera, fugaz, passageira e transitória.10

Por força desta contingencialidade, efemeridade, variabilidade e desordem da vida concreta, desde os tempos mais remotos o homem buscou, assim, recorrentemen- te, um elemento permanente no fluxo cambiante das impressões, algo que pudesse oferecer uma certa estabilidade diante de tanta efemeridade, variação e destruição, segundo a indagação metafísica e ontológica básica: - “O que é da mudança?”

Na experiência histórica do tempo para o Ocidente, o que é interessante notarmos não é tanto a intuição da inconstância, do fortuito, ou do imprevisto dos fatos e dos acontecimentos, mas sim a permanente negação destas ações efê- meras; uma constante negação do mundo como ele é, e a busca de um elemento permanente, de um ponto fixo que permita aos homens uma certa evasão ou

fuga do tempo, pondo-os ao abrigo de sua ação destruidora. Os homens procura-

rão, então, desde épocas remotas, esvaziar e/ou negar a ação corrosiva do tempo, ainda que tivessem, curiosamente, a absoluta consciência desta impossibilidade. Veremos adiante que a experiência do tempo, principalmente dos homens ar- caico e grego da fase mitológica, é o seu lado trágico, o Deus que engole seus próprios filhos; tempo de queda, danação e morte. A potência do tempo corrói as coisas, e sua marcha é, de certa forma, temida. Buscam os homens destes universos culturais,

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através de simbolismos distintos, uma evasão e uma fuga do tempo e a construção de um lugar ontológico, i.e., firme e estável, onde resida a eternidade ou a imortalidade.

Em outras palavras, o sentimento da caducidade, fragilidade e perda das coisas, provoca nos homens o desejo de retirar-se do tempo, e pôr-se ao abrigo dele; numa tra- jetória semelhante à ocorrida com a sua experiência espacial.

Ferdinand Alquié, por outro lado, dirá que as funções do instinto e do hábito são parecidas: representam a luta da vida contra o tempo, negando a mudança, e elevando-se contra o devir, contra o novo, e contra o imprevisto. Instalam, ambos, uma certa continuidade, psíquica, na ordem do tempo; instalam uma certa fixidez, dando origem ao que os gregos clássicos chamavam de ethos, uma espécie de morada fixa e estável do homem, uma “segunda natureza”, onde os homens se põem ao abrigo da ação do tempo e da ação desintegradora da História. Daí a importância central da Ética – a ciência do ethos – para a filosofia clássica.11

Mircea Eliade, em o Mito do Eterno Retorno, dirá que os homens sempre fizeram de tudo para pôr-se à margem do tempo; e, à exceção dos modernos, sempre olharam a história com desconfiança, vendo nela uma potência demoníaca, que só traria infe- licidade, com seu cortejo de guerras, doenças, sofrimentos e morte.12

Veremos adiante que a modernidade, entre outras transformações funda- mentais, inflexiona esta interpretação pessimista, ou trágica, para uma interpre- tação fundamentalmente otimista, ou, ao menos, se não totalmente otimista, a transforma em um centro de esperança, via a imanentização do messianismo judaico e da escatologia cristã.

No documento A Norma do Novo_DTP (2) (páginas 81-86)