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A Experiência da Temporalidade para a Idade Média Agostiniana

No documento A Norma do Novo_DTP (2) (páginas 91-94)

As radicais inovações operadas nas concepções judaica e cristã da experi- ência da temporalidade desautorizam-nos a pensar numa continuidade das expe- riências do tempo para o homem medieval. Ivan Domingues afirma que “talvez o primeiro risco a ser evitado, seja o erro de anacronismo de que Eliade é vítima, ao supor, este autor, uma continuidade das experiências do tempo dos homens arcaico, grego clássico e medieval. Não contente de ver em ação o mesmo regime dos arquétipos no mundo grego, estende-o agora ao mundo medieval e cristão, no qual ele acomoda, não sem esvaziar, a reafirmação numa escala jamais vista da figura do tempo linear, desconhecendo que a introdução desta figura e a ex- periência da temporalidade que lhe dá estofo pôs fim exatamente ao regime dos arquétipos e colocou no seu lugar o regime da história: a história da salvação”.20

Três pontos são importantes desta nova experiência judaico-cristã da tem- poralidade: (i) As figuras do tempo na Idade Média, aqui principalmente a Idade Média Orígenes agostiniana, isto é, a Alta Idade Média; (ii) O campo semântico da temporalidade; e (iii) A evasão do tempo e a instalação da eternidade.

19 TORDESILLAS, A. L´Instance Temporelle dans l´Argumentation de la Premiére et de la Seconde

Sophistique: La Notion de Kayrós, 1986

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Murillo Cruz

As Figuras

O que separa a concepção do tempo da tradição judaico-cristã da concep- ção da tradição helenístico-romana é o fato de que a primeira lida com o tempo linear, enquanto as últimas com o tempo cíclico ou até mesmo circular. Nada mais certo, mas algumas ressalvas merecem ser feitas.

Se é verdade que, quanto à figura do tempo, na Idade Média, a linha prevalece so- bre o círculo, não é menos verdade também que nessa época, afora os filósofos e doutores da Igreja, os quais nem sempre são claros e coerentes a este respeito, os homens lidavam com outras figuras da temporalidade, como o ciclo e até mesmo o círculo.21

Segundo Eliade, dos primeiros séculos da Era cristã até data bastante avançada da Idade Média (certamente Eliade se refere aqui até a inflexão ima- nentista dos símbolos salvacionistas e escatológicos na entrada dos séculos XI e XIII), segue valendo a crença, muito arraigada nas massas populares, na reno- vação periódica do mundo e do tempo.

Também Le Goff confirma esta coexistência: “certo tipo de tempo circu- lar, o tempo litúrgico, desempenha no cristianismo um papel de primeiro plano, e que sua supremacia é tal que levou o cristianismo a datar durante muito tem- po apenas os meses e os dias, sem mencionar o ano, de maneira a integrar os acontecimentos no calendário litúrgico”.

Entretanto, como assinala Ivan Domingues, como “sói acontecer em todos os acontecimentos que se repetem em intervalos regulares, o círculo pode dar lugar ao ciclo e o ciclo à linha”. Isto é, a dinamização do círculo leva à linha. De modo que os acontecimentos celebrados pelo calendário litúrgico também podem ser lidos em uma perspectiva linear.

Será efetivamente pelo lado da linha, e não do círculo ou do ciclo, que me- lhor podemos avaliar o significado profundo da experiência judaico-cristã do tempo, visto que nos põe frente a frente com acontecimentos fundadores, únicos e irreversíveis e, enquanto tais, a serem lembrados pelo crente cotidianamente.

1. fundadores, porque falam da criação dos homens, da fundação da na- ção de Israel com o chamado de Abraão, da Revelação da Tábua das Leis a Moisés, da encarnação de Cristo, da fundação da Igreja, etc.

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A Norma do Novo

2. únicos, porque os acontecimentos não se repetem e seu sentido radica em sua diferença e individualidade: não haverá outra encarnação, outras Tábu- as da Lei, outra queda de Adão, etc.

Evidentemente, como veremos adiante, este pressuposto de unicidade é bastante polêmico no interior da própria cristandade. A afirmativa da unici- dade da encarnação, por exemplo, sem uma “segunda vinda” de Cristo, é uma interpretação não totalmente concordante no cristianismo. Esta questão é das mais importantes para entendermos a inflexão imanentista do significado do milênio e do Apocalipse de João, textos estes integrados à Bíblia cristã católica e objeto de inúmeras especulações milenaristas e salvacionistas, inclusive na modernidade. (Ver capítulos 1/II e 2/II)

3. irreversíveis, porque se eles fundam, eles começam, inauguram uma nova Era: no tempo do êxodo os judeus não possuíam um palmo de terra, mas eram fiéis a Javeh; depois, o povo se distanciou de Deus e as desgraças se multiplicaram, até que o crime de Judá e seu castigo provocaram o desastre nacional.22

Por outro lado, além da ordem do tempo, há a eternidade, morada do Se- nhor e abrigo do homem regenerado e reconciliado com Deus no fim dos tempos. Na tradição judaica e no cristianismo popular, a redenção ocorrerá no mundo, na Terra Prometida; e na tradição teológica institucional cristã católica, da Alta Idade Média, fora do mundo, no Céu.

Ora, se a figura da linha presta-se muito bem para marcar os acontecimentos únicos e irreversíveis de que nos falam as Sagradas Escrituras, dotando a história da salvação de três pontos fixos: a criação, a encarnação e o resgate (ressurreição), o mesmo não se pode dizer quanto à eternidade, que não tem começo nem fim no tempo; é anterior ao tempo, está fora do tempo, acima de todo e qualquer tempo finito ou infinito. Aqui talvez a figura do círculo fosse mais apropriada, mas esva- ziada das noções de duração e de infinitude com cuja ajuda os gregos pensavam a eternidade (instalada no tempo, não fora do tempo como querem os cristãos).

O que ocorre de fato é a existência de uma tensão constante entre as figuras do círculo e da linha, onde a linha acaba prevalecendo devido à história da salvação.

Evidentemente, há também a forte ideia de uma linha em ascensão, ou um

ciclo em ascensão, nas versões mais propriamente judaicas, como herança da in-

terpretação messiânica da História desde os antigos profetas de Israel. A imanen-

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tização e posterior secularização desta interpretação do messianismo judaico e da escatologia cristã, a partir dos séculos XII e XIII principalmente, será objeto de uma análise mais pormenorizada adiante, na segunda parte deste livro, tendo em vista a sua importância nuclear na formação da ideia de progresso, e do aperfei- çoamento sucessivo do homem e da sociedade; em suma, na formação da ideia geral do novo sucessivo e ininterrupto, inclusive do progresso técnico.

No documento A Norma do Novo_DTP (2) (páginas 91-94)