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A Dignificação do Ato Contemplativo

No documento A Norma do Novo_DTP (2) (páginas 73-78)

A compreensão da diferença conceitual no pensamento grego entre a esfera do público e a esfera do privado é fundamental para o entendimento da indignidade atribuída à tecnologia, à produção material, ao trabalho de serventia, e ao espaço da privacidade. Ou, como diria Veblen, à “irksomeness of labor” das culturas predatórias.

No centro desta distinção encontra-se o fundamento da liberdade como dignidade suprema e caminho civilizatório do homem grego clássico. Liberdade decorrente da superação das necessidades e das coisas úteis, isto é, da superação do homem da inserção da dependência natural da fabricação e superação das necessidades imediatas de sobrevivência. Em suma, da esfera do econômico.

A transferência da esfera do privado (indigno) para o público (digno), a

pólis, é análoga à transcendência metafísica operada nos conceitos de Verdade e

de Realidade, para o pensamento grego. A matéria, substrato do mundo físico, é a irracionalidade absoluta; é a necessidade, é o não-ser (a chora), o oposto do

Ser ou do mundo eidético das Ideias imutáveis e eternas.

O domínio absoluto e incontestável do paterfamilias fora da pólis grega, no interior da oikia – sua casa, e a esfera política propriamente dita, eram espaços rigorosamente e mutuamente excludentes. Eram claras as dicotomias entre as atividades pertinentes a um mundo comum (na pólis) e aquelas atividades perti- nentes à manutenção da vida, no espaço privado da casa.

De acordo com o pensamento do apogeu cultural grego clássico, a capacida- de humana de organização política não apenas difere, mas é diretamente oposta a essa associação natural cujo centro é constituído pela casa (oikia - associação natural dos homens) e pela família. O surgimento da cidade-estado significava que o homem recebera, além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, o seu bios politikos. Agora, cada cidadão, isto é, os não escravos e não subalternos, pertenceria a duas ordens de existência; e haveria uma grande diferença em sua vida entre aquilo que lhe é próprio (idion) e o que é comum (koinon)”.

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Para Aristóteles, de todas as atividades necessárias para as comunidades humanas, só duas eram consideradas políticas, dignas, e constituintes da bios

politikos: a ação (práxis) e o discurso (léxis), dos quais surge a esfera dos negó-

cios humanos (ta ton anthropon pragmata, como designava Platão), que exclui estritamente tudo o que seja apenas necessário e útil (a technê, por exemplo).

As duas atividades acima, a práxis e a léxis, eram as mais altas de todas as atividades humanas, pois eram exercidas no espaço da pólis. Paulatinamente separam-se na pólis a ação e o discurso, tornando-se estas atividades cada vez mais independentes. A ênfase passou para o discurso como meio de persua- são. O ser político, o viver numa pólis, significava que tudo era ou deveria ser decidido mediante palavras e persuasão, e não através da força e da violência, considerados modos pré-políticos.

Para Aristóteles, todos que viviam fora da pólis, ou seja, escravos e bárba- ros, eram aneu logou, isto é, “mudos”; destituídos, obviamente, não da capacida- de fisiológica de falar, mas destituídos de um modo de vida no qual o discurso, e somente o discurso, tinha sentido.

Os aneu logou encontram-se aprisionados na esfera do privado, privados desta mais alta capacidade humana, e envolvidos, no domínio familiar da oikia, basicamente em suprir as necessidades e produzir ou fazer os objetos necessários à sobrevivência dos homens livres.

Os artífices e os artesãos (bonausos ou “não-livres”), por sua vez, vivem em uma condição de semiescravidão; uma escravidão limitada, pois os artífices e os artesãos não dispunham de dois dos quatro elementos indispensáveis para o status de homem livre, enquanto que a escravidão significava a ausência dos quatro atributos de liberdade.3

A este respeito, Hannah Arendt nos sugere que o próprio termo “economia política”, ao justapor oikia e pólis, teria sido de certa forma contraditório, e mesmo impensável na Antiguidade clássica: o que fosse econômico, relacionado com a vida particular e privada do indivíduo, a produção, a tecnologia, a sobrevivência da espécie, etc., não era assunto político ou digno, mas doméstico por definição. Oikia e pólis eram, assim, espaços, territoriais e filosóficos, antagônicos.

3 os quatro atributos de liberdade e status de homem livre no universo cultural grego (clássico) eram: inviolabilidade pessoal; liberdade de atividade econômica; direito de ir e vir; e reputação social por propriedade(s)

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É importante assinalarmos que o respeito à propriedade privada no pensa- mento grego clássico não era atribuído à propriedade privada em si mesma como entendemos hoje, mas ao fato de que sem ser dono de sua casa, ou de “proprie- dades”, o homem não podia participar dos negócios do mundo porque não tinha nele lugar algum que lhe pertencesse. Ademais, o respeito à propriedade privada não era exercido no interior da propriedade como objeto específico e autônomo, mas era exercido nos limites entre as propriedades, limites estes considerados até mesmo sagrados. Platão tinha grande respeito ao Zeus Herkeios, o protetor das fronteiras, e considerava divinos os horoi, os limites entre os Estados.

Seria assim inimaginável pensar-se na propriedade da ação técnica em si e/ ou na ideia de propriedade do processo de fabricação de um objeto; poder-se-ia pensar, sim, na propriedade especifica do objeto, da coisa (res), mas nunca na sua

concepção, ou das ideias inventivas, por exemplo, como chamamos na atualidade.

A esfera familiar, a comunidade natural do lar, e o espaço do privado, decorria da necessidade; era a necessidade que reinava sobre todas as ativida- des aí exercidas. Aqui, os homens viviam juntos por serem obrigados, por suas carências e necessidades. A esfera da pólis, o espaço do público, ao contrário, era a esfera da liberdade (…) “e a vitória sobre as necessidades da vida familiar constituía a condição natural para a liberdade na pólis”.4

O que todos os filósofos gregos da época clássica tinham como certo, por mais que se opusessem à vida na pólis, é que a liberdade situava-se exclusivamente na esfera política; que a necessidade é primordialmente um fenômeno pré-político, ca- racterístico da organização do lar privado; e que a força e a violência são justificadas nesta última esfera (privada) por serem os únicos meios de vencer a necessidade e alcançar a liberdade; por exemplo, subjugando escravos e os inimigos.5

Para Aristóteles, a vida boa e de ociosidade do cidadão, isto é, das classes dominantes ou proprietárias, era boa exatamente por ter dominado as necessi- dades do mero viver, tendo-se libertado do labor e do trabalho, Para o grego, e posteriormente para os romanos, nenhuma atividade que servisse à mera finali- dade de garantir o sustento do indivíduo era digna de adentrar a esfera política, e a obtenção de status ou reputação social.

4 ARENDT, Hannah. The Human Condition, 1958; tr.port. A Condição Humana, 1991; p. 40 5 Ibid., p. 40

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Conforme nos demonstra igualmente Battista Mondin, em L´Uomo: Chi

É? Elementi di Antropologia, na filosofia grega sempre prevaleceu uma conside-

ração negativa do trabalho. Platão, em A República exclui as artes mecânicas do governo do Estado e Aristóteles define como vil todo o trabalho porquanto ele oprime a inteligência. Cícero e Sêneca exaltam o ócio como sendo superior ao trabalho. Essa desvalorização do trabalho de serventia é devida a diversos motivos: a concepção platônica do Homem; a exaltação da vida contemplativa; e a dureza do trabalho, atividade própria do escravo.

Na época patrística e parte da escolástica, diferentemente do grego e do romano, atribuir-se-á ao trabalho um valor soteriológico; ele será visto como instrumento de purificação e de salvação; todavia, como são culturas igualmen- te predatórias, continua-se a considerá-lo como uma atividade ignóbil e servil.

Nas culturas predatórias patriarcais europeias, “todas as palavras para labor - o latim e o inglês labor, o grego ponos, o francês travail, o alemão Arbeit – signi- ficam dor e esforço e são usadas também para as dores do parto. Labor possui a mesma raiz etimológica que labare (“cambalear sob uma carga”); ponos e Arbeit têm as mesmas raízes etimológicas que pobreza (pénia em grego, e Armut em alemão). Hesíodo, na Teogonia, via o ponon alginoenta (o “labor doloroso”) como o primeiro dos males que atormentavam os homens. As palavras alemãs Arbeit e

Arm, derivam ambas do germânico arbma-, que significava solitário e desprezado.6

Plutarco louvava Arquimedes por não descrever suas invenções práticas, pois estas, dizia, pertenciam a uma arte vil, baixa e mercenária. E Pierre Schul, em Machinisme et Philosophie, esclarece que o termo engenheiro era compreen- dido e usado, na Grécia e na Antiguidade, como sinônimo de “abuso”.

Assim, o trabalho, especialmente o trabalho de serventia, para a filoso- fia clássica, dominada pelas estruturas mentais e os hábitos da classe ociosa de então, correspondia ao artificialismo da existência humana, e era, como tal, desprezado. E tal concepção irá prolongar-se até aproximadamente a entrada da Era do artesanato na Europa.

A superação da dependência da riqueza (material) e da saúde constituía a condição suprema essencial da liberdade, que os gregos designavam por eu-

daimonia (ventura). Ser pobre ou ter uma saúde deficiente significava, para o

grego, estar sujeito à necessidade física; e ser escravo significava uma dupla

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infelicidade: significava a submissão à douleia (servidão). Na Grécia até mesmo o trabalho árduo e penoso era preferível à vida tranquila de muitos escravos do- mésticos. No tempo de Sólon, a “escravidão era considerada pior que a morte”.7

Assim, no mundo grego, a vida pública somente era possível depois de atendidas as necessidades da própria existência. A posse de propriedades não era valorizada pelo significado da propriedade em si, mas pela possibilidade de transcender a própria existência privada (idion) e ingressar no mundo comum (koinon) a todos. Caso o dono de uma propriedade preferisse ampliá-la ao invés de utilizá-la para viver uma vida política, (portanto digna), era como se espon- taneamente sacrificasse a sua liberdade e voluntariamente se tornasse aquilo que o escravo era contra a sua vontade, ou seja, um servo da necessidade.

Para R.H. Barrow, em The Romans, numa interpretação unicamente economi-

cista, esta teria sido a explicação do conhecido enigma com que se deparou o estudo

da história econômica do mundo antigo: o fato de ter a indústria se desenvolvido até certo ponto, sem jamais chegar a fazer o progresso que se poderia esperar.

O que precisa ser visto de um ângulo mais elevado às observações estrita- mente econômicas de R.Barrow do parágrafo acima, é que da mesma forma que o fundamento da verdade na metafísica clássica se dá no lugar transcendente da Ideia Absoluta ou do universal que enforma todos os singulares, i.e., o que é comum (koi-

non) a todos (o Ser), os particulares, os indivíduos de uma classe são, por si, mutá-

veis, contingentes, singulares e próprios (idion). A “atividade econômica” incluía-se neste espaço filosófico do mutável, da transformação sucessiva das coisas em outras, num processo de fazer (technê), de movimento, portanto, indigno vis-à-vis o lugar do Ser imutável, constante, eterno, real e verdadeiro. O koinon, analogamente, é o universal, o que é comum. E o idion, o particular, i.e., o que é próprio.

Logo, o trabalho, a tecnologia, o econômico, o privado e a propriedade encontram-se no mesmo espaço filosófico indigno: o idion; isto é, no espaço da necessidade (oikia), do contingente, do que é mutável e da não liberdade.

Por outro lado, as necessidades superadas, o filosofar, o público, o comum, o status, etc., encontram-se num espaço filosófico digno do homem grego clás- sico: o koinon, a transcendência do privado, do fazer prático e técnico, do co- nhecimento poiético, etc. E, como dito acima, tal concepção irá prolongar-se por toda a Alta Idade Média com algumas pequenas variações e interpretações.

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