• Nenhum resultado encontrado

As Sociedades Arcaicas

No documento A Norma do Novo_DTP (2) (páginas 86-89)

O homem arcaico convive com dois tempos: um tempo fraco (profano), povoado de acontecimentos e entes banais; e um tempo forte (sagrado), po- voado de acontecimentos extraordinários, cujos exemplos todos devem imitar. Esses dois tempos interpõem-se, e três características os qualificam: realidade, continuidade e reversibilidade.

11 Para um aprofundamento, ver DOMINGUES, Ivan. O Tempo e a História, Síntese NF, vol.20 n.63, 1993 12 Ver ELIADE, Mircea. Le Mythe de l´Éternel Retour, 1969

21

A Norma do Novo

Eliade, em Le Mythe de l´Éternel Retour, nos diz que “no plano do mito, en- contramos subjacente a ele uma espécie de teoria segundo a qual nada é real e pode durar se não é animado, ou seja, se não é dotado de uma alma que o anima e lhe dá vida desde dentro”. No plano do rito, pressupõe-se que o suplemento de alma indispensável à duração do real é obtido por meio de um ato, um sacrifício, que repete por imitação o ato primordial mediante o qual os deuses criaram o mundo e deram vida às coisas. E no que tange ao tempo, admite-se que o tempo concreto e profano pode ter seu curso suspenso e os acontecimentos podem ser

revertidos com a ajuda de um conjunto de atos apropriados (o ritual) que, ao re-

petirem o gesto inaugural cumprido pelos deuses quando da criação do mundo, instala-nos num tempo primordial, um tempo sagrado situado in illo tempore, ab

origine, no qual a criação do mundo ocorreu.13

Assim, é através da força mágica do ritual que esse tempo primordial é reatualizado e a continuidade do mundo, no tempo, fica assegurada. Tão forte é essa necessidade, que os deuses têm suas forças exauridas em seu esforço de criar o mundo e pelo fato de nele terem que intervir a todo instante, ao fim de cada ciclo, no começo de cada ano, sob pena de o mundo desaparecer, se as suas forças não forem renovadas ou reanimadas.

Logo, habitado por potências sobrenaturais que agem sobre o curso das coisas e o mundo dos homens, o tempo aqui é uma realidade concreta, e sua ação afeta a vida dos homens e o destino das coisas. Aqui, o tempo é um continuum, e seu sentido duração.

Ainda, por ser possível ter seu curso suspenso e mesmo revertido, ligando o fim à origem, o tempo, além de contínuo, é reversível; repetição do ciclo e eterno retorno.

Das três características do tempo mítico apontadas acima (realidade, continuida- de e reversibilidade), certamente a reversibilidade, e a figura que a acompanha, o tempo

circular, é a mais desconcertante para o homem moderno.

A possibilidade da repetição cíclica do tempo para o homem arcaico, indo do fim ao começo, é a ideia-força de poder renovar o mundo e as coisas, e rever- ter a ação desagregadora e diluente do efêmero e do transitório.

Para Mircea Eliade, o mais curioso na concepção da temporalidade para o ho- mem arcaico é a sua nostalgia de um retorno periódico ao tempo sagrado das origens, ao

grande tempo, bem como uma vontade de desvalorizar o tempo: “se não lhe concedemos

22

Murillo Cruz

nenhuma atenção, o tempo não existe”; ademais, lá onde o homem se afasta do arqué- tipo e cai na duração, ou no pecado, o tempo pode ser anulado e revertido às origens.

“No fundo ... a vida do homem arcaico, reduzida à repetição dos atos arqueti- pais, isto é, às categorias e não aos acontecimentos, à incessante retomada dos atos inaugurais primordiais, embora se desenvolva no tempo, não carrega seu fardo, não registra sua irreversibilidade; em outras palavras, não tem nada a ver com o que é pre- cisamente característico da nossa moderna consciência do tempo. Como o místico, ou o homem religioso em geral, o homem primitivo vive em um contínuo presente”.14

Um bom exemplo desta permanência e reversibilidade temporal é o pa- ralelismo entre os mitos lunares e as fases da humanidade. As fases da lua: aparecimento, crescimento, diminuição, e desaparecimento seguida de reapare- cimento depois de três noites de trevas; e as fases da humanidade: nascimento, morte, e recriação. Ambas, destruição para nova criação.

“Na perspectiva lunar, a morte do homem, assim como da humanidade, são necessárias, tanto quanto são os três dias de trevas que precedem o renas- cimento da lua. A morte do homem e da humanidade é indispensável à sua regeneração. Uma forma, qualquer que seja ela, pelo fato mesmo de que ela existe como tal e de que ela dura, se enfraquece e se desgasta; e para retomar o seu vigor, é preciso reabsorvê-la no amorfo, nem que seja por um só instante; reintegrá-la na unidade primordial da qual ela saiu. Em outras palavras, voltar ao caos (no plano cósmico), à orgia (no plano social), às trevas (para as semen- tes), à água (o batismo no plano humano, Atlântida, no plano histórico)”.15

Tudo recomeça em seu início a cada instante, e o passado não é senão a prefiguração do futuro. Nenhum acontecimento é irreversível e nenhuma trans- formação é definitiva.

Em certo sentido, pode-se mesmo afirmar que para as sociedades arcaicas não se produz nada de novo no mundo, pois tudo é apenas a repetição dos mes- mos arquétipos primordiais, e o tempo somente torna possível o aparecimento e a existência das coisas, já que ele mesmo se regenera sem cessar.

14 ELIADE, Mircea. Le Mythe de l´Éternel Retour, 1969; p. 104 15 Ibid., p. 107

23

A Norma do Novo

O homem arcaico, da mesma forma que se esforça por lembrar-se dos ges- tos inaugurais dos seres arquetipais e guardá-los na memória, esforça-se também por esquecer tudo aquilo que caia no tempo e traga a marca de sua ação corro- siva: o novo, o imprevisto, o efêmero.

Pensados segundo o modelo dos arquétipos, a experiência do tempo e o sentido da história para o homem arcaico, não podiam ser, portanto, diferentes: uma desvalorização do tempo, e o desejo de anular a História.

No documento A Norma do Novo_DTP (2) (páginas 86-89)