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A Tradição Apocalíptica na Europa Medieval

No documento A Norma do Novo_DTP (2) (páginas 140-143)

A primeira e importante tentativa de desacreditar o milenarismo ocorre no século III, quando Orígenes, talvez “o mais influente de todos os teólogos da Igreja antiga”, começou a apresentar o Reino como um acontecimento que não teria lugar nem no espaço, e nem no tempo, mas sim na alma dos crentes. Oríge- nes substitui uma escatologia milenarista e coletiva por uma escatologia da alma

individual. Supunha, em sua interpretação alegórica e não “literal” do milênio,

um progresso espiritual começando neste mundo e continuando no futuro, no outro-mundo. Conforme Norman Cohn, “tal variação de interesses correspon- dia perfeitamente bem à nova situação de uma Igreja organizada, gozando de uma posição cada vez mais poderosa e reconhecida no mundo. Assim, quando no século IV, o cristianismo conseguiu uma posição de supremacia (política) no mundo mediterrâneo e converteu-se em religião oficial do Império, a condena- ção eclesiástica do milenarismo converteu-se em definitiva”.85

A Igreja Católica, agora uma instituição próspera, rica e poderosa, não tinha evidentemente o menor desejo de ver os cristãos lutando por sonhos

inapropriados sobre um Novo Paraíso Terrestre. E, em princípios do século V,

S.Agostinho propôs, então, quase que de forma definitiva para seu tempo, a doutrina e a fórmula que era exigida pelas novas circunstâncias da Igreja no

85 Ver COHN, Norman. The Pursuit of the Millenium, 1961; tr.esp. En Pos del Milenio. Revolucionarios

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mundo. Segundo a Civitas Dei, A Cidade de Deus, o Livro do Apocalipse deveria ser interpretado como uma alegoria espiritual: o milênio havia começado com o nascimento do cristianismo, e se realizaria totalmente na Igreja. S.Agostinho rejeitará incisivamente, assim como o fez Orígenes, a crença literal no milênio, afirmando-o como fábulas ridículas, e declarando que o Reino dos mil anos era o reinado de Cristo em sua Igreja na época presente (sua), a qual duraria até o Juízo Final e o advento do Reino eterno no além. Esta interpretação e doutrina converteram-se imediatamente na ortodoxia aceite. E a Igreja eliminará, a par- tir de então, todos os textos que pudessem fazer referência ao milênio fora da interpretação Orígenes-agostiniana. Por exemplo, retirará do famoso livro do teólogo Irineu de Lyon, Contra as Heresias, todas as referências milenaristas.

Esta doutrina agostiniana sobre o milênio e sobre a concepção existencial da Igreja como o Apocalipse de Cristo na História permaneceu oficialmente vá- lida até o final da Idade Média. Ou seja, a esperança revolucionária numa segun-

da vinda, que transfiguraria a estrutura da história na Terra, foi abandonada e

considerada ridícula. Para a Igreja institucional, o Verbo tornara-se matéria em Cristo e a graça da redenção fora concedida ao homem; “não haveria qualquer divinização da sociedade além da presença espiritual de Cristo em Sua Igreja”.86

Assim, apesar da inclusão do Apocalipse de João no Novo Testamento, o mes- sianismo judaico, vertido no milenarismo cristão da Revelação, ficava oficialmente excluído, deixando a Igreja como a organização espiritual universal dos santos e pe- cadores, ou seja, como representante (símbolo e alegoria) da Civitas Dei na História, como o “clarão da eternidade no tempo”, como nos mostra Eric Voegelin.

Embora a doutrina oficial negasse, a partir do século III aproximadamente, a tradição apocalíptica, (os teólogos de Alexandria e Bizâncio chegaram mesmo a negar o Apocalipse de João), esta seguia e continuou sendo extremamente influente na religiosidade popular, isto é, no “cristianismo popular”. E nos mo- mentos de grandes incertezas, temores ou tragédias, a população voltava-se para o livro do Apocalipse e aos inumeráveis comentários que existiam sobre ele, principalmente aos comentários sibilinos.

As profecias juaninas e sibilinas (a Tiburtina, o Pseudo-Metodio, etc.) tive- ram grande influência nas atitudes políticas. Quase todo novo monarca ou impe- rador era visto por seus súditos cristãos como o último monarca a governar antes

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Murillo Cruz

da consumação dos tempos. As crônicas populares os chamavam de rex justus ou David. Sempre a experiência os levou a uma desilusão, mas o povo limitava-se a imaginar que a consumação gloriosa havia sido postergada até o próximo reinado e ao próximo governante. Algumas vezes consideravam o monarca reinante como um precursor, com a missão de preparar o caminho para o último imperador.

Nas camadas populares mais humildes, a vinda do Anticristo era aguar- dada sempre com crescente ansiedade, pois seria o prelúdio da consumação tão esperada da segunda vinda de Cristo, e a instalação do Reino dos santos (na Terra). O povo encontrava-se, assim, sempre à espera dos sinais que, segundo a tradição profética, deveriam anteceder e acompanhar o último tempo.

Vários movimentos e pessoas reivindicaram para si, durante toda a Idade Média, e principalmente durante a Alta Idade Média, o privilégio de serem os enviados espirituais da herança escatológica.

Por exemplo, em 156 d.C. um homem chamado Montano, declarou na Frígia que era a encarnação do Espírito Santo, do “Espírito da Verdade”, e que, de acordo com o Quarto Evangelho, deveria revelar o futuro. O tema de suas iluminações era a iminente chegada do Reino: a Nova Jerusalém estava a ponto de descer do céu sobre o solo frígio, convertendo-se na morada dos santos. Por isto, os montanistas recomendaram a todos os cristãos que fossem para a Frígia aguardar ali a segunda vinda em jejum, oração e severa penitência. Movimento radicalmente ascético, que ansiava ao sofrimento e martírio, pois diziam as Escrituras que os mártires iriam ressuscitar para serem os escolhidos do Milênio. “E nada melhor para o movimento montanista do que a perseguição cruel e violenta que sofreram”.87

Até mesmo Tertuliano, um dos mais famosos teólogos da Igreja católica de seu tempo, aderiu ao movimento montanista.

S.Gregório, no século VI, cita, em sua Historia Francorum, um pregador livre (anônimo) que, no ano de 591, se autodenominou messias e “Cristo”, profetizando o futuro e fazendo curas; teve vários seguidores e mesmo um pequeno exército.

Um século e meio mais tarde S.Bonifácio encontrou uma figura parecida chamado Aldeberto (Soissons), que se dizia um santo vivo, possuindo poderes sobrenaturais e uma carta de Cristo; sua pregação teve grandes repercussões, sendo mesmo uma séria ameaça à Igreja.

87 COHN, Norman. The Pursuit of the Millenium, 1961; tr.esp. En Pos del Milenio. Revolucionarios

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Quatro séculos mais tarde, um outro “Cristo”, chamado Eudo de Stella ou Eudes de l’Etoile, atuava na Bretanha. Chegou mesmo a organizar uma Igreja e teve também grande influência. Em 1148 foi aprisionado e morto juntamente com seus seguidores.

Ainda, em 1110, um certo Tanchelmo de Amberes se autodenomina “Anjo do Senhor”, apresenta-se como santo, pregando radicalmente contra a Igreja institucional e contra o pagamento do dízimo à Igreja.

No documento A Norma do Novo_DTP (2) (páginas 140-143)