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e a Primazia da Representação Primeira Aproximação

No documento A Norma do Novo_DTP (2) (páginas 177-181)

“Épossível que estejamos hoje em face de uma situação análoga àquela que viveram os teólogos latinos ocidentais no século XI, quando a apli- cação das regras da gramática e da dialética à palavra de Deus suscitou a grande querela entre o que foi denominado pensamento simbólico e o pen- samento dialético, e que marca os pródromos da escolástica medieval”.150

... em consequência da redução do vivido ao pensado, a imagem conce- bida (o conceito) é, na modernidade, mais real do que a realidade vivida a que se reporta”. (E.Husserl)

A concepção de modernidade comporta inúmeras interpretações, aproxi- mações e definições, compondo mesmo um vasto inventário filosófico.

A) Para Henrique de Lima Vaz (S.J.), por exemplo, em artigo clássico, o entendimento deste complexo termo implica a compreensão de uma verdadeira “revolução na representação do tempo”.151

Vaz esclarece que, etimologicamente, moderno provém do advérbio latino

modo (“há pouco”, “recentemente”), e a utilização do adjetivo modernidade, em

francês medieval, data do século XIV.

Nas pegadas da construção filosófica de Hegel, Henrique Vaz dirá que a moder- nidade é uma categoria de leitura do tempo histórico na conceptualidade filosófica.

Para Hegel, a modernidade significa o estatuto filosófico em que o “tempo passa ser o lugar do conceito”, ou, na concepção deste trabalho, significa a que-

150 LIMA VAZ, H.C. Religião e Modernidade Filosófica, Síntese NF, 1991; p. 54 151 Ibid., p. 53

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da do conceito e do Ser (já previamente objetivados) no tempo e na apreensão do espaço humano de forma segura, certa e evidente.

Para compreendermos então a condição filosófica da modernidade é ne- cessário entendermos que a representação do tempo tenha perdido a estrutura repetitiva, cíclica, recorrente e anamnética própria da simbólica do mito (como visto no capítulo 2/I), “para que o agora ou o atual do tempo possa revestir-se de uma novidade qualitativa e o tempo presente assuma uma dignidade e um valor, como instância crítica, julgadora e objetificadora dos fatos ocorridos no passado, para sua projeção, prospecção e controle de uma trajetória futura pre- visível; isto é, “que imponha espiritualmente uma estrutura axiológica capaz de desqualificar a primazia do antigo e tematizar e questionar a instância nor- mativa de um passado fixado na identidade de uma origem, diante da qual o presente deva abdicar de sua novidade”.152

Isto significa, de certa forma, uma evasão do tempo, e um colocar-se num pon- to privilegiado do próprio tempo - o presente - para olhar o passado como um “lá” ontológico e tematizá-lo com os instrumentos modernos da razão experimental.

Assim, a filosofia situada no presente da reflexão, com vistas à projeção e prospecção analítica ao futuro, confere ao mesmo presente, e ao devir como prospecção desta trajetória histórica, a dignidade de instância de compreensão e julgamento do passado, ou “a dignidade do novo que advém ao tempo como diferenciação qualitativa na identidade de seu monótono fluir”.153

Civilizações não-filosóficas, para Henrique Vaz, não conhecem uma leitura

moderna do seu tempo porque não julgam o seu passado a partir do seu presen- te, e nem projetam este presente para o devir; e, neste sentido, são civilizações

a-históricas, onde “a religião preside a identidade solar de um tempo imóvel”.154

Civilizações não-filosóficas são, portanto, neste sentido, anacrônicas, pois remontam permanentemente à identidade de um tempo originário, à uma gê- nese permanente. (ver Parte I, capítulo 2/I)

Simetricamente, “civilizações filosóficas, como a nossa, são diacrônicas, pois fazem constantemente do modo temporal, do agora (e do devir como pro-

152 LIMA VAZ, H.C. Religião e Modernidade Filosófica, Síntese NF, 1991; p. 149 153 Ibid., p. 149

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jeção deste agora intermitente), o mirante histórico privilegiado para medir e julgar o tempo, bem como os “fatos passados” acontecidos no tempo”.155

É lógico que no processo de renovação da cristandade medieval, a partir dos séculos XII e XIII, a interpretação da temporalidade para a cristandade será transformada, e de certa maneira recuperada de suas origens judaicas mais puras e tradicionais, gravitando, doravante, a nova concepção temporal, na esfera do tempo diacrônico (ascendente). Principalmente, como vimos anteriormente, a partir da escatologia de Joaquim de Fiore e posterior imanentização e seculari- zação do milenarismo cristão, e da difusão das correntes messiânicas judaicas.

Assim, a concepção vaziana de modernidade, como um eco reatualizado da hegeliana, é uma reestruturação modal na representação do tempo (e não só do tempo, como veremos adiante), onde este passa a ser representado como uma

sucessão de modos ou de atualidades. “O tempo é vivido, então, como histórico e

nele alguma coisa acontece que pode ser chamada qualitativamente moderna”.156

A consciência historiadora é, então, por excelência, uma consciência mo- derna. Pensada filosoficamente, a ideia de modernidade é, assim, correlativa à formação de uma consciência histórica, cuja principal característica é o privilé- gio do ato de filosofar na atualidade, de ordenar e julgar o tempo, e no tempo.

B) Outra possibilidade de leitura conceitual da modernidade é a ideia do

mecanicismo, tese defendida por vários pensadores. Por exemplo, Robert Leno-

ble, que identifica em Mersenne o pai da ciência moderna, e não propriamente Duns Escoto, Guilherme de Ockham, Cola de Rienzo, Brunelleschi, Copér- nico, Galileu ou Descartes. Lenoble buscará demonstrar que a característica gnosiológico-epistemológica da modernidade é a recusa de conhecer a natureza íntima das coisas, para ater-se apenas ao modus operandi dos fenômenos, forma de conhecimento em que bastam a força e a composição matemático-mecânica dos movimentos. Neste sentido, poderíamos dizer, nesta interpretação, que a indagação científica básica da modernidade seria “como” os fenômenos e os fatos ocorrem, e não propriamente “por que” os fenômenos ou os fatos ocorrem.

C) Uma outra interpretação sobre a modernidade é a compreensão de Georges Gusdorf. Para Gusdorf, a modernidade caracteriza-se pela associação

matemática-experiência, tendo em Galileu, na fase consciente de nossa moderni-

155 Ibid., p. 150 156 Ibid., p. 151

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dade, o nome mais emblemático. Ou seja, para Gusdorf o núcleo gnosiológico- -epistemológico de compreensão da modernidade é a matematização do empíri-

co, a matematização da experiência.157

D) Para Michael Foucault, a hermenêutica da modernidade passa pelo que designou como um “projeto de uma mathesis cum taxinomia”, ou seja, uma ciência universal da ordem e da medida, fundada numa álgebra das representações e num

sistema convencionalista dos signos: (a) mathesis: “Quando se trata de ordenar as na-

turezas simples, recorre-se a uma mathesis cujo método universal é a álgebra”; (b) taxinomia: “Quando se trata de pôr em ordem as naturezas complexas (as repre- sentações em geral, tais como elas são dadas na experiência), é necessário constituir uma taxinomia e para tal instaurar um sistema de signos”.158

E) Na concepção de Martin Heidegger, liderando um enorme conjunto de pensadores, o que viria a caracterizar a modernidade seria o prometeísmo, pondo em relevo ainda a metafísica da subjetividade, cuja origem (consciente) ele atribui a Descartes, e nos convidando a ver no recolhimento do homem no interior de si mesmo não a perda do mundo ou algo puramente negativo - a substituição do mundo

da vida pela imagem pensada de que nos fala Husserl (ver a seguir) - mas a afirmação

do novo modo de ser do homem consoante esses novos tempos: o prometeísmo.159

“Reduzido a si mesmo, o homem dispõe a maneira pela qual ele se vai situar em relação ao ente enquanto objetivo. Aqui começa esta maneira de ser que con- siste em pôr os poderes humanos enquanto espaço de medida e de realização, pelo

senhorio e posse do ente em sua totalidade. A época que se determina a partir deste

acontecimento não é somente, para a contemplação retrospectiva, nova em relação à precedente, mas igualmente ela se põe a si mesma e formalmente como a época dos tempos novos. Ser novo, eis quem pertence ao mundo tornado imagem pensada”.160

F) Para Francis Bacon, por outro lado, a marca distintiva da modernidade é o “otimismo”: “optimism, as confidence in man, in his powers and his natural

goodness, is the signature of modernity”.161

157 Para um aprofundamento ver GUSDORF, Georges. Introduction aux Sciences Humaines: Essai Critique

Sur leurs Origines et leurs Dévelopment, 1974

158 FOUCAULT, Michael. Les Mots et les Choses, 1966; tr.port. As Palavras e as Coisas, 1987; p. 104 159 Ver também DOMINGUES, Ivan. O Grau Zero do Conhecimento, 1991

160 DOMINGUES, Ivan. O Grau Zero do Conhecimento, 1991; p. 54-55 161 Ver Domingues, op.cit., 1991, p. 55

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G) De forma bem mais indicativa para este trabalho, e relativamente próxima da concepção de Foucault visto acima, é a leitura e a concepção de modernidade de E.Husserl, A.Koyré, e outros: o matematismo, conforme entendido a seguir.

Na concepção de Husserl, a característica nuclear da hermenêutica moderna é a substituição do mundo da vida (lebenswelt) pela sombra dos conceitos e das equações, a substituição da carne da existência (os denotata) pelo universo dos seres

da razão das matemáticas (os significantes). Resultado: em consequência da disso-

ciação das qualidades primárias e das qualidades secundárias, tem-se a clivagem do homem e do mundo; em consequência da redução do vivido ao pensado, a imagem

concebida torna-se mais real do que a realidade vivida a que se reporta, dando lugar a

uma inversão de valores cujos ecos ainda hoje estão longe de estar desaparecidos.162

Se pudéssemos unificar as várias concepções acima e expressá-las em um es- paço próprio, onde todas as características estivessem presentes, teríamos consegui- do, talvez, uma bem aproximada caracterização da modernidade. Entretanto, deste espaço próprio gerado teoricamente, as definições de Husserl e de Foucault seriam bem próximas de uma representação sintética, e que aqui utilizamos.

A Representação como Estatuto

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