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O Hilemorfismo Aristotélico

No documento A Norma do Novo_DTP (2) (páginas 107-111)

É com Aristóteles que surge a noção de indução no sentido moderno do termo, isto é, a possibilidade do conhecimento ser atingido através de casos particulares. A abstração elimina os atributos mais particulares e irregulares dos casos mais específicos, e assim chega aos conceitos superiores. Isto é, a abstração implica, sim, uma crescente distância da experiência imediata. Mas estas generalizações limitam-se à descrição do que todas as famílias possuem em comum. São precisamente o contrário dos gêneros platônicos, que se tornam mais plenos e mais ricos quanto mais altos se situam na hierarquia das Ideias.

Para Aristóteles, os casos particulares relacionam-se, como as partes com um todo. Entretanto, apesar de nada existir para os olhos do corpo além das existên- cias individuais, estas existências individuais contêm as essências de seus univer- sais (cath’holou), isto é, o que é sempre, e em todo lugar; a classe de uma espécie. “Quando um particular de uma série logicamente indiscriminável se de- tecta, na alma faz-se presente o universal mais básico: porque embora o ato da percepção dos sentidos centre-se no particular, seu conteúdo é universal, é o Homem, por exemplo, e não um homem chamado Callias”.39

Assim, percebemos sempre nos particulares classes, imutáveis, de coisas, qualidades gerais antes de percebermos o caráter do único. Podemos, assim, e contrariamente à concepção de Platão, obter o universal a partir da visão

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corporal; é a possibilidade de obtenção da sabedoria pelo universale in re, o uni- versal dado no objeto particular mesmo.

Para que surgisse qualquer objeto perceptível, um universal teria que im-

pressionar (moldar, materializar) o meio ou a matéria que em si era informe e

inerte, salvo pela sua qualidade de se permitir ser impressionada.

Este processo de geração pelo qual a forma possível adquiria existência real, Aristóteles chamou de enteléquia, palavra que implicava o aparecimento de um estado de perfeição. Outorgou, assim, nova vitalidade ao status ontológico dos universais, convertendo-os em criadores: “o mundo dos objetos substanciais era gerado como um escultor impõe forma à matéria inerte, e as coisas percep- tíveis continham os universais não somente pela intuição do observador, ou pela doutrina da reminiscência platônica, mas que os incorporavam de fato por causa da nobreza que os gerou”.40

Na concepção platônica, o que se constata é uma existência estática, e rigidamente dicotômica, entre as Ideias transcendentais e a aparência sensível; exatamente como uma relação entre protótipo e imagem, mesmo quando esta imagem seja considerada imperfeita. Na concepção aristotélica, por outro lado, esta rígida relação platônica é transformada em uma conexão genética (orgânica) entre os universais e os particulares, conexão esta que não negou a função e o caráter de imagem da aparência sensível, mas a fez menos desligada da Ideia, menos separada do universal. Para Aristóteles o filho é o produto do pai, não meramente sua esfinge, como seria na interpretação platônica.

Aristóteles estabeleceu o universal como a condição indispensável da exis- tência da coisa individual. As qualidades e características que um objeto pode- ria compartilhar com outros de sua espécie não constituiria uma semelhança incidental, mas sim a essência mesma do objeto. O geral no indivíduo era a forma (e fôrma) que lhe imprimia seu gênero. Esta generalidade não se definia pelo que o indivíduo compartilhava com os outros da mesma espécie, mas pelo que nele materializava, formava, a partir do universal. E as propriedades aciden- tais, as irregularidades, etc. do objeto não eram senão impurezas, a contribuição inevitável do material em bruto. Ao encarnar, a forma (o universal) perde algo de sua pureza; mas estas impurezas resultantes não pertencem ao Ser do objeto, mas sim às características materiais da coisa/produto, da coisa/enformada.

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A Norma do Novo

Assim, para Aristóteles, o caráter universal é diretamente perceptível à superfície dos objetos ... “A alma jamais pensa sem uma imagem ...”.41

Esta possiblidade de apreensão do universal através dos próprios objetos marcará e influenciará fundamentalmente a inflexão da rígida estética platô- nica pré-escolástica, para uma estética mais clara, mais perceptível, mais lumi- nosa, natural, e direta da estética gótico-escolástica, e do processo de moderni- zação e rompimento da lógica alegórica para uma lógica de identidade conforme veremos em detalhes na Parte II deste livro.

Em síntese, a verdade se dará, portanto, na metafísica clássica, como uma bus- ca/recebimento de um fundamento, de um princípio imutável das coisas e dos entes. O fundamento da verdade se dará, então, como descoberta, desvelamento (ou

Revelação), como exercício da Razão (logos) demonstrativa, e não como criação sub-

jetiva autônoma, como exercício da razão experimental da modernidade.

A verdade se dá, aqui, na metafísica clássica, como contemplação das es- sências imutáveis (os universais), em contraposição ao espaço humano dóxico mutável, contingencial do mundo sublunar; o real é a forma transcendental aristotélica, ou as Ideias platônicas, ou Deus, constitutivos do reino da con- templação, do nous, da fé, e não do nosso mundo fenomenalmente perceptível. O mundo nesta circunstância histórica é e está ontologizado, e existem os universais, os entes e os corpos como substâncias; e o ato reflexivo do pensar se dá como uma busca do Ser do ente, isto é, do fundamento estável do ente; mas este mesmo ente não é colocado como suspeição ao nível ôntico da existência, como será na modernidade, mas sim como suspeição de ser ele próprio a Ver- dade. A suspeição não se dá na sua materialidade substancial, mas sim na sua possibilidade de ser o fundamento de sua própria razão (isto é, de Ser).

Somente neste contexto, onde as coisas são remessas suspeitas e incompletas à sua verdade transcendente, pode o homem experienciar predominantemente uma lógica e um discurso analógico-simbólico, isto é, quando o homem se com- preende (e todas as coisas) como remessa a um todo superior. Suas indagações se- rão sempre liamáticas, referenciais, vinculantes, compreensivas; e não explicativas. Na metafísica clássica a Verdade só pode surgir e se definir, portanto, como descoberta (Alétheia), como divinatio, como desvelamento do Ser do ente;

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como exercício da razão demonstrativa para o homem da Antiguidade clássica, ou como revelação (revelatio), para o homem cristão medieval puro. Em ambos os casos, a realidade e a verdade vêm ao homem, chegam ao homem.

Os universais foram, portanto, o terreno firme onde se edificou o modelo de construção de mundo da metafísica clássica. A postura teorético-contem- plativa firma-se na noção maior dos universais como modelagem dedutiva (a lógica do idêntico nas diferenças). A lógica será basicamente dedutiva, a partir das noções supremas da existência destes universais. Os modelos do homem são construídos, então, a partir da existência e da verdade dos universais: o Cavalo em geral; o Homem em geral; a Beleza em geral, etc. Note-se que este “Homem em geral” não é um homem singular qualquer que exista concretamente no mundo perceptível aos olhos do corpo, mas sim um Ser que habita uma região, no eidos platônico, fora do nosso mundo ambiental perceptível. E a verdade é constituída a partir do universal; daí a importância da atitude privilegiada da

theoria como contemplação. O ideal (o conceito) de Platão das ideias absolutas;

das formas (imutáveis e eternas) de Aristóteles, de Deus para os cristãos cató- licos, etc., tudo isto convive com um mundo de referências transcendentes, e figurações de chaves simbólicas e analógicas para alcançar ou acessar as reali- dades últimas, os universais. Ver capítulo 4 / I a seguir.

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Capítulo 4 / I – A Representação e a

Figuração da Verdade e da Realidade.

Os Limites da Mimese Clássica e

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