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A auto-regulação neurótica e a concepção do terapeuta

REALIDADE, EMERGÊNCIA E AVALIAÇÃO

7. A auto-regulação neurótica e a concepção do terapeuta

Entretanto, qualquer um que examine com simpatia as diferentes es­ colas e métodos de psicoterapia, como estamos fazendo, embora superfi­ cialmente, descobre uma nova noção: a natureza humana básica é em parte dada, como eles pressupõem, mas em parte, ajustando-se às diferentes tera­ pias, cria a si própria; e esse ajustamento criativo em circunstâncias favo­ ráveis é em si mesmo uma característica fundamental da natureza humana básica. Trata-se da mesma força essencial que está à primeira vista evidente em qualquer experiência humana de valor. O problema da psicoterapia é arregimentar o poder de ajustamento criativo do paciente sem forçá-lo a encaixar-se no estereótipo da concepção científica do terapeuta.

Desse modo chegamos ao problema da relação entre a auto-regulação contínua do neurótico e a concepção do terapeuta de qual natureza humana deve ser “recuperada”. Porque o paciente, de modo geral, realmente se autocriará de acordo com a concepção do terapeuta; no entanto, sem dúvi­ da, outros rumos também lhe são possíveis. Portanto podemos entender a importância da já citada advertência de Lewin, no sentido de não analisar a estrutura da situação concreta em termos de um todo demasiado extenso.

Considere, por um momento, a questão da seguinte maneira: a “natu­ reza humana” universal (qualquer que seja a concepção) é um compartilhar não somente de fatores animais mas também de fatores culturais; e os fato­ res culturais, especialmente na nossa sociedade, são muito divergentes — a coexistência de divergências talvez seja a propriedade definidora de nossa cultura. Além disso, há arranjos excêntricos, sem dúvida originais, de in­

divíduos e famílias. E, o que é mais importante ainda, a autocriação, o ajusta­ mento criativo em circunstâncias diversas, tem ocorrido desde o começo, não completamente como um “condicionamento” extrínseco que pode ser “descondicionado”, mas principalmente como crescimento verdadeiro. Da­ dos todos esses fatores de variação e excentricidade no paciente, é obviamen­ te desejável ter uma terapia que estabeleça o menos possível uma norma, e tente retirar o máximo possível da estrutura da situação concreta, aqui e agora.

Deve-se dizer que freqüentemente o terapeuta tenta impor seu padrão de saúde ao paciente, e quando não consegue fazê-lo vocifera: “Auto-regu- le-se, seu desgraçado. Eu estou dizendo a você o que é a auto-regulação!” O paciente se esforça e não consegue fazê-lo e então não escapa da reprimenda “Você está morto” ou “Você não quer”, dita em parte como uma técnica terapêutica e em parte como irritação ostensiva (provavelmente a irritação é melhor do que a técnica).

A situação usual é a seguinte: o terapeuta está empregando sua con­ cepção científica como plano geral do tratamento e adaptando-a a cada paciente. Por meio dessa concepção ele escolhe a tarefa, observa que resistências existem e quando investigá-las ou ignorá-las; e, de acordo com sua concepção, o andamento lhe dá esperança ou o desespera. Bem, todo plano assim é naturalmente uma abstração da situação concreta, e o terapeuta necessariamente põe fé nessa abstração. Por exemplo, se seu fator dinâmi­ co é a energia-vegetativa e seu método é o fisiológico, ele tem esperança quando vê os desprendimentos musculares e o fluxo de movimentos, e de­ sespera se o paciente não puder ou não quiser fazer o exercício. Os movi­ mentos devem — ele acredita — indicar um progresso. Contudo, para um observador de outra escola, a situação poderia ser vista da seguinte ma­ neira: o paciente de fato mudou no contexto em que se deita e submete seu corpo à manipulação de um terapeuta, ou em que manipula a si mesmo sob ordens; mas no contexto de“ser ele mesmo” fora do consultório, apren­ deu apenas uma nova defesa contra as“ameaças que vêm de baixo”, ou, pior ainda, somente aprendeu a colocar entre parênteses a “ele próprio” e a agir como se estivesse sempre no consultório. O próprio paciente, é claro, passa a acreditar logo na mesma abstração que seu terapeuta, qualquer que seja ela. Em sua capacidade de observador dos acontecimentos, percebe que eventos excitantes realmente ocorrem. Isto dá uma dimensão inteiramente nova à sua vida, e vale o dinheiro que ele paga. E a longo prazo alguma coisa funciona um pouco.

Estamos dizendo isso de modo irônico; entretanto, todos estão na mes­ ma canoa, talvez inevitavelmente. Ainda assim, é bom chamar as coisas pelo seu nome.

8. "Investigando as resistências" e "interpretando

o gue surge"

Expressemos a questão novamente, no âmbito da controvérsia clássi­ ca entre o arcaico “interpretar o que quer que seja” e o posterior “investigar as resistências” (em última instância, “análise de caráter”), que estão, con­ tudo, relacionados de maneira inextricável.

Geralmente se começa a partir “do que surge” — o que o paciente traz espontaneamente quando entra, seja um pesadelo, uma atitude desonesta, um discurso sem vida ou um maxilar rígido, ou seja lá o que for que nos impressione. Mesmo aqui, no entanto, trata-se de uma situação (à qual, em geral, se faz vista grossa) em que o simples fato de ele entrar no consultório é em parte uma “defesa” contra seu próprio ajustamento criativo, uma resistên­ cia contra seu próprio crescimento, assim como um apelo vigoroso por ajuda.3 De qualquer modo, o terapeuta principia a partir do que o paciente traz. Mas a opinião geral é que se ele continuar a investigar o que o paciente traz por muito tempo, este usará de subterfúgios e andará em círculos. Portanto, as­ sim que se perceber uma resistência crucial (de acordo com nossa concep­ ção) , “malhamos” nisso. Contudo, enquanto a malhação prossegue, o paciente está diligentemente isolando o ponto perigoso e levantando uma outra defesa. Em seguida, surge o problema de atacar ambas as defesas de uma vez, para que uma não possa substituir a outra. Contudo, isto não eqüi­ vale a investigar o que surge, o que o paciente traz? Mas é claro que a nova situação tem grandes vantagens: o terapeuta agora entende melhor, pois está envolvido numa situação que ele próprio, em parte, criou: as reações que ocorrem confirmam suas conjecturas ou as alteram em determinado senti­ do; o próprio terapeuta está crescendo numa situação real, cedendo ao que é trazido e defendendo-se contra os elementos neuróticos da situação. E a esperança é que, um dia, a estrutura dos elementos neuróticos, enfraquecida gradativamente, entre em colapso.

Qual é nosso objetivo ao apresentar esse retrato curiosamente intrica­ do do que acontece? Queremos dizer que “interpretar o que surge” e “inves­ tigar as resistências” estão combinados de maneira inextricável na situação concreta; e que se há algum crescimento, tanto os pronunciamentos espon­ tâneos do paciente e suas resistências neuróticas, como a concepção do terapeuta e suas defesas não-neuróticas contra ser enganado, manipulado etc. são progressivamente destruídos na situação que se desenvolve. Desse modo, é concentrando-se na estrutura concreta da situação real que pode­ mos ter as melhores esperanças de dissolver os elementos neuróticos. E isto

3. E vice-versa: em nossa sociedade, com seu isolamento neurótico e a necessidade de