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O AMADURECIMENTO EA REMEMORAÇÃO DA INFÂNCIA

V

1. Passado e futuro na realidade presente

Quando enfatizamos a awareness de si próprio, o experimento, a emer­ gência sentida e o ajustamento criativo, estamos dando menos ênfase à recuperação da memória passada (“rememoração da infância”) ou às antecipações para o futuro (“plano de vida”). No entanto, a memória e a an­ tecipação são atos no presente, e é importante que analisemos seu lugar na estrutura da realidade. Você pode captar experimentalmente o contexto deste capítulo se disser, “Agora, aqui estou relembrando isto e aquilo”, perceber a diferença entre isso e meramente divagar na memória; e também, “Agora,

aqui estou planejando ou prevendo isto e aquilo”.

As memórias e as perspectivas são imaginações atuais. Brincar prazerosam ente com a imaginação em geral não é dissociativo, mas integrativo. Por que pessoas propensas a reminiscências ou projetos estão obviamente em fuga, e não se sentem revigoradas depois, e sim vazias e exaustas? Por que elas não sentem os eventos como sendo delas mesmas, os eventos não as penetram em seu íntimo, não são re-criados e assimilados; o ato de relatar parece sempre interminável, e torna-se cada vez mais árido e verbal (compare isso, por exemplo, com um trabalho de arte, no qual a me-

fliória toma-se viva no manuseio presente do meio). Enquanto isso a reali­ dade é insatisfatória, o passado se perdeu e o futuro ainda não é. Qual é o modo de sentir atual dessa pessoa tagarela? Não é a imaginação ativa e prazerosa, mas o pesar, as reprimendas, a auto-reprimenda, ou a frustração, a culpa por ser inadequada, a tentativa de exercer a vontade; e essas coisas diminuem mais ainda a auto-estima. Pois o sentimento do nosso próprio valor não pode ser dado por explicações escusatórias, e nem por comparação com um padrão extrínseco: “Não foi minha culpa; sou tão bom como qualquer outra pessoa. Não estou bem, mas logo atingirei o alvo”. O sentimento de valor só é dado pela nossa adequação a uma atividade que está sucedendo, ou no relaxamento após uma situação acabada (de modo que não há remor­ so quando a atividade sexual “culpável” foi satisfatória, mas só quando esta foi medíocre). Explicar e comparar são sempre sentidos como uma menti­ ra, seja uma mentira consoladora, seja autopunitiva. Contudo, fazer algo e sermos nós mesmos é uma prova; se autojustifica porque completa a situa­ ção. Desse modo, damos ênfase ä awareness de si mesmo do paciente num experimento que ele próprio está conduzindo e esperamos que crie um tipo de totalidade mais vantajoso.

2. A importância do passado e do futuro na terapia

Geralmente, o problema é que o self que está disponível, que está lá, tem bem pouco conteúdo e também está dividido de várias maneiras. E al­ guma coisa, mas não é o suficiente para proporcionar ao paciente a “sensa­ ção de si próprio” (Alexander); também temos de chegar à “base subjacente” da qual o self não está consciente, para aumentar a força do self. O proble­ ma é de como essa base subjacente se encontra no presente.

Tentando responder a essa pergunta, Freud repetiu categoricamente nos últimos anos de sua vida que nenhum método que não recuperasse a memória infantil poderia ser chamado de psicanálise. Do nosso ponto de vista, com isso ele quis dizer que uma grande parte do self ainda está en­ cenando situações inacabadas antigas. E isto deve ser verdade, porque vivemos pela assimilação da novidade ao que já nos tornamos, e da ma­ neira como nos tornamos.

Algumas escolas parafreudianas, ao contrário, insistem em que a me­ mória infantil não é, em absoluto, necessária; o que é necessário é alcançar uma atitude madura. Isto poderia significar (o que certamente é verdade) que muitas forças de crescimento numa pessoa estão frustradas; ela não conseguiu tornar-se ela própria.

Tentamos mostrar que a distinção “infantil/maduro” é uma divisão falsa e um emprego enganoso da língua. E que, sem essa divisão, a recuperação

da infância e a necessidade de amadurecer surgem sob um aspecto diferen­ te. Neste capítulo tratamos principalmente da memória. (Problemas de pro­ jeto são um tipo de agressão — capítulo VIU.)

3. Efeitos passados com o formas fixas no presente

Freud parece ter acreditado que as épocas pretéritas realmente existem psicologicámente dç outra maneira que não em seus efeitos no presente. Na famosa imagem das cidades enterradas sobrepostas, ele sugere que os di­ versos passados e o presente se interpenetram mutuamente, ocupando o mesmo espaço e tendo relações suplementares àquelas da sucessão no tem­ po. Esta é uma suposição convincente.1

Para fins de terapia, contudo, somente a estrutura presente de sensa­ ção, introspecção e comportamento está disponível; e nossa pergunta deve ser que papel o ato de lembrar desempenha nessa estrutura. Consideradas formalmente, as memórias são um dos tipos de formas mais fixadas (imutá­ veis) no processo presente em andamento.

(Já falamos das “abstrações” como sendo tais formas fixadas, torna­ das relativamente estacionárias para que alguma outra coisa possa se movi­ mentar mais eficientemente. As abstrações se afastam da especificidade mais material e sensória da experiência; as memórias, de preferência, são imagi­ nações fixadas, especialmente de pormenores sensórios e materiais, mas abstraem a partir da resposta motora — desse modo o passado é imutável; é o que é experienciado como imutável.2 Os hábitos, por exemplo, as técnicas ou o conhecimento são outras formas fixadas: são assimilações à estrutura orgânica mais conservativa.)

Muitas dessas formas fixadas são saudáveis e podem ser mobilizadas em prol do processo em andamento; por exemplo, um hábito útil, uma arte, uma reminiscência específica que agora serve para a comparação com ou­ tro pormenor para que se produza uma abstração. Algumas formas fixadas são neuróticas, tais como o “caráter”, a repetição compulsiva. Contudo, quer sejam saudáveis ou neuróticas, o passado e toda outra fixidez persistem por

meio de seu funcionamento presente: uma abstração persiste quando é comprovada na fala presente, uma técnica quando é usada, uma caracterís­

tica neurótica quando reage contra um anseio “perigoso” e recorrente.

L De fato, a teoria freudiana dos sonhos, as geometrais não-euclidianas e a física da relatividade são tentativas semelhantes de refutar a concepção kantiana do espaço e do tempo. Seu efeito é limitar a estética transcendental de Kant à experiência presente sensória e introspectiva: mas isso era, sem dúvida, o que ele pretendia.

2. Naturalmente não estamos discutindo aqui a pergunta metafísica: O que é passado? Isto é, se o que é dado na experiência de memória tem ou não existência, e que tipo de existência.

Assim que não tenham mais um emprego presente, o organismo des­ carta os efeitos fixados do passado por meio de sua auto-regulação; o co­ nhecimento inútil é esquecido, o caráter se dissolve. A regra funciona em ambos os sentidos: não épela inércia, maspelafunção que umaformaper­

siste, e não é pela passagem do tempo, mas pela falta de função que uma forma é esquecida.

4. A compulsão à repetição

A compulsão neurótica à repetição é sinal de que uma situação inacabada no passado ainda está inacabada no presente. Todas as vezes que uma tensão suficiente se acumula no organismo para tornar a tarefa domi­ nante, tenta-se novamente encontrar uma solução. Desse ponto de vista, a repetição neurótica não é nem um pouco diferente de qualquer outra tensão acumulada repetida, tal como a fome ou a pulsação sexual; e não é preciso dizer que é por meio dessas outras acumulações repetidas que a repetição neurótica recebe energia. A diferença disto com o que ocorre no estado de saúde é que cada vez que a repetição saudável ocorre, a tarefa é completada, o equilíbrio é restaurado e o organismo se conservou ou cresceu pela assimi­ lação de algo novo. As circunstâncias estão sempre mudando, e o organismo as enfrenta sem o estorvo das sensações fixadas de outras circunstâncias es­ pecíficas (mas somente com os instrumentos flexíveis das abstrações úteis e dos hábitos conservativos); e é a novidade da nova circunstância que é inte­ ressante — não que este filé seja como aquele que comi na semana passada (o que causaria desprazer), mas que seja um filé (algo de que gosto em geral, e que está exalando seu próprio cheiro ímpar).

Contudo, a tensão neurótica não se completa; ainda assim ela é domi­ nante, tem de ser completada antes de se dar atenção a qualquer outra coisa; desse modo o organismo que não cresceu pelo êxito e pela assimilação assu­ me a mesma atitude para fazer o mesmo esforço de novo. Infelizmente, a atitude fixada, que fracassou antes, tornou-se necessariamente mais inepta nas circunstâncias alteradas; assim o completamento é cada vez mais im­ provável. Há aqui uma circularidade lamentável: é somente por meio da as­ similação, do acabamento, que aprendemos algo e estamos preparados para uma nova situação; mas o que não conseguiu se completar é ignorante e não está a par das coisas, e, portanto, torna-se cada vez mais incompleto.

E assim que uma necessidade presente de uma satisfação/?resente vem a parecer “infantil”. Não é o instinto ou o desejo que são infantis, que não são mais relevantes para o adulto, mas a atitude fixada, suas concepções abstratas e imagens que estão desatualizadas, são inverossímeis, ineficazes. Para citar o exemplo clássico: o desejo de ser acariciado conhece somente a

imagem da mãe como sua linguagem e guia — essa imagem se aviva à me­ dida que o desejo é frustrado mais ainda— , mas a mãe não está presente em parte alguma— e qualquer outro possível fornecedor de carinho é, a priori, decepcionante, ou pelo menos não o procuramos. Nem o desejo,nem a ima­ gem são passado porque a situação está inacabada, mas a imagem é inepta e desatualizada. Finalmente, quando o projeto é sem esperança, e a dor de­ masiado intensa, faz-se uma tentativa de inibir e dessensibilizar o comple­ xo inteiro.

5. A estrutura de uma cena

esquecida e sua recordação

Considere agora uma lembrança que está aparentemente esquecida— não apenas esquecida (como o conhecimento inútil), nem sujeita a ser relembrada por ser uma parte móvel do fundo do presente (como o conheci­ mento útil) — mas reprimida.

Na estrutura, a melhor maneira de encarar isso é como um mau hábito, um esforço ineficaz de aniquilar, tendo o complexo esquecido e não aniquilável como seu centro. O mau hábito é a atual coerção deliberada — uma coerção que é sempre unilateralmente muscular, sensória e emocional (por exemplo, os músculos oculares nos mantêm olhando para a frente e impedem a liberdade de movimento da visão; a retração do desejo impede que determinadas visões se avivem e o que é realmente visto distrai o senti­ mento e o comportamento para a direção contrária). E o que é coagido, o complexo no centro, contém uma cena específica que, sendo específica, não pode reaparecer ou ser útil sob essa forma — para ser útil no presente teria de ser não-aniquilada, mas destruída (desmontada) e atualizada. Obviamente esta é uma fixidez muito durável: um processo de esquecimento continua­ mente renovado com uma força atual, e garantido contra a relembrança pela irrelevância de seu conteúdo.

Como isso se deu? Suponha que havia outrora uma situação presente na qual se estava ciente de um desejo intenso, numa cena com objetos. (Para simplificar, pensemos em um único momento dramático, um “trauma”.) O desejo foi frustrado: havia perigo na satisfação — e a tensão da frustração foi insuportável. Então de modo deliberado inibimos o desejo e a consciên­ cia deste, para não sofrer e para nos manter fora de perigo. O complexo in­ teiro de sentimento, expressão, gesto e a impressão sensória, que é particu­ larmente profunda porque está inacabada de maneira significativa, está agora em desuso; e se gasta continuamente uma energia considerável para mantê-

a cena traumática está inacabada de maneira importante, e deve ser energi­ camente combatida).

Bem, como se dá a relembrança? Suponha que a inibição deliberada

presente seja relaxada, por exemplo, exercitando-se os músculos oculares e

permitindo que a visão aja livremente, imaginando objetos desejáveis, tor­ nando-se insatisfeito com as distrações etc. Imediatamente o sentimento e gestos subjacentes sempre presentes se expressam, e com eles vem a ima­ gem da cena antiga. Não foi a imagem antiga que liberou o sentimento, mas o relaxamento da inibição presente. A cena antiga é revivida porque aconte­

ceu de esta ser o último exercício livre do sentimento e do gesto no ambiente sensorial, na tentativa de completar a situação. A cena antiga é, por assim

dizer, o último símbolo no qual aprendemos a expressar o sentimento. Porque se, de maneira oposta, a imagem surgir primeiro, por acaso, a exemplo de quando um rosto que passa causa uma impressão em alguém, ou mesmo ao final de uma série de associações livres, então podemos sentir de repente uma emoção “alienígena”, uma atração estranha, uma dor anô­ nima. Entretanto, esta não tem sentido, é evanescente, imediatamente refreada pela contínua inibição presente.

Desse modo, na psicanálise clássica, a cena esquecida deve ser “inter­ pretada” para que se efetue a liberação, isto é, deve ser vinculada à atitude e à experiência presentes. Porém a interpretação só funcionará com êxito se chegar ao ponto de alterar a estrutura da atitude presente, do mau hábito.