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O ANTI-SOCIAL E A AGRESSÃO

3. Progresso desigual e reação social

Consideremos duas mudanças recentes nos costumes, bastante espe­ taculares, nas quais a psicanálise desempenhou um papel capital: a atitude afirmativa com relação ao prazer sexual e a atitude permissiva nos cuidados com a criança. Essas mudanças estão agora tão difundidas que deveriam ser cumulativas: isto é, deveria haver satisfação concreta e auto-regulação su­ ficientes (em certas esferas) de maneira bastante difundida para diminuir o ressentimento público e aquela projeção de bichos-papões; portanto, os tabus deveriam se tomar ainda menos impostos, e deveria haver ainda mais satisfação e auto-regulação, e assim por diante.Especialmente no caso das crianças, a permissão para chupar o dedo, os padrões mais auto-regulado- res de alimentação, a permissão para masturbar-se, o relaxamento do trei­ namento para a toilete, o reconhecimento da necessidade de contato corporal e do aleitamento, a supressão do castigo corporal, tudo isso deveria frutifi­ car na felicidade da geração que surge. Contudo, investiguemos o caso de modo mais minucioso.

Temos aqui um exemplo interessante de desenvolvimento desigual, o progresso sob alguns aspectos em direção à auto-regulação, ao mesmo tempo

em que se mantém e até mesmo se intensifica uma deliberação neurótica sob outros aspectos. Como é que a sociedade se ajusta para alcançar um novo equilíbrio dentro do desenvolvimento desigual, para impedir o dinamismo revolucionário latente em toda nova liberdade? Porque se esperaria que toda liberdade liberasse energia e conduzisse a uma luta intensificada. O esforço da sociedade é no sentido de isolar, compartimentalizar e arrancar as garras da ameaça “que vem de baixo”.

Desse modo, o aumento da quantidade de sexualidade razoavelmente não reprimida foi acompanhado de uma diminuição no excitamento e pro­ fundidade do prazer. O que isto significa? Argumentou-se que a privação como tal é necessária para a acumulação de tensão; mas a auto-regulação organísmica deveria ser suficiente para marcar as horas de apetite e descar­ ga sem intervenções externas. Diz-se que a imitação da moda e o “excesso de indulgência” depreciam o prazer sexual; isto é verdadeiro, mas se hou­ vesse mais satisfações, mais contato e amor, haveria menos indulgência compulsiva e automática; e a questão que estamos colocando é por que há menos satisfação etc. ? É mais sensato considerar essa dessensibilização es­ pecífica como de tipo semelhante ao restante das dessensibilizações, falta de contato e falta de afeto que são presentemente epidêmicas. Elas são con­ seqüência da ansiedade e do choque. No desenvolvimento desigual, a libe­ ração da sexualidade deparou com o bloqueio do que não está liberado; a ansiedade é despertada; os atos são executados, mas se retiram deles o sig­ nificado e o sentimento. Como não foram plenamente completados, os atos se repetem. A culpabilidade é gerada pela ansiedade e pela falta de satisfa­ ção, e assim por diante.

Um bloqueio essencial, argumentaremos em breve, é a inibição dí agressão. O que é óbvio, a julgar pelo fato de que a exploração comercial da sexualidade nos filmes, romances, histórias em quadrinhos etc. (como de­ monstrou Legman-Keith) concentra-se no sadismo e no assassinato. (O es­ tilo desse tipo de sonho comercializado é sempre um índice infalível do que está acontecendo, porque não há outro critério a não ser atender à demanda e vender.)

Um mecanismo social importante para isolar a sexualidade é, parado­ xalmente, a atitude saudável, sã e científica da educação sexual por parte de educadores e pais progressistas. Essa atitude esteriliza e toma oficial, auto­ rizado e quase obrigatório o que por sua natureza é caprichoso, não-racional e psicologicamente explosivo (embora seja organicamente autolimitante). A sexualidade é sem dúvida organicamente periódica, mas não amamos porque nos receitaram isso. Rank advertiu contra esse isolamento quando disse que o lugar de aprender os fatos da vida era a sarjeta, onde seu misté­ rio era respeitado e blasfemado — de maneira como somente os crentes verdadeiros blasfemam. Agora se ensina que a sexualidade é bela e extática,

e não é “suja”; mas claro que ela é literalmente suja, entre urina e fezes; e

ensinar que é extática (em lugar de deixar que isto seja a surpresa de um

momento) só pode causar decepção na grande maioria das pessoas, cujas agressões estão bloqueadas e, portanto, não podem, elas próprias, ceder e nem destruir a resistência nos outros, e levá-las a perguntar: “O quê, é só isso?” E muito melhor, permitindo-se tudo, que não se diga absolutamente nada. Mas a assim chamada atitude saudável, que torna um ato da vida uma prática de higiene, é um meio de controle e compartimentalização.

Naturalmente, os pioneiros da educação sexual eram revolucionários; estavam empenhados em desfazer a repressão contemporânea e desmasca­ rar a hipocrisia; portanto, apoderaram-se astutamente de todas as palavras boas e angelicais. Mas essas mesmas palavras são agora um novo tabu — “o sexo é belo, mantenha-o puro” — , são uma defesa social completa. Eis porque a privação e a proibição parecem conduzir a um excitamento sexual mais intenso; não se trata de que o organismo precise desses auxílios extrínsecos, mas de que, no organismo bloqueado, eles impedem a compartimentalização, mantêm desimpedida as conexões com o ressenti­ mento, a raiva e a agressão inconsciente contra a autoridade e, num nível muito profundo, com o ato desesperado do self de arriscar-se. Porque no momento em que se está desafiando o tabu e correndo perigo mortal, é pro­ vável que se tenha um instante de gozo espontâneo.

A atitude permissiva nos cuidados com os filhos, por sua vez, constitui um estudo prazeroso do desenvolvimento desigual e das contradefesas so­ ciais; só um gênio cômico como Aristófanes poderia realmente fazer jus­ tiça a ela. Considere simplesmente que, por um lado, nossa geração aprendeu a desbloquear grande parte da selvageria ruidosa das crianças; e por outro lado enrijecemos a ordem regimentar de todo nosso ambiente físico e social. Te­ mos um mínimo de moradias nas grandes cidades — e playgrounds bem- arrumados onde nenhum garoto que se preze entraria nem morto. Natural­ mente, enquanto isso, os pais ficam oprimidos. As crianças são superesti­ madas de maneira surpreendente em nossa cultura, o que teria desconcerta­ do os gregos ou a pequena nobreza do Renascimento, e que não é nada mais do que a reação à repressão da espontaneidade dos adultos (incluindo o impulso espontâneo de massacrar seus filhos). Ademais, nossa própria in­ ferioridade nos domina, e nos identificamos com as crianças e tentamos proteger seu vigor nativo. Em seguida, à medida que crescem, as crianças têm de fazer um ajustamento cada vez mais deliberado e complicado à civi­ lização da ciência, da técnica e do supergovemo. Desse modo o período de dependência é necessariamente cada vez mais longo. Às crianças se permi­ te que tenham toda liberdade, exceto a liberdade essencial de ter permissão para crescer e exercer iniciativa econômica e doméstica. Nunca terminam de freqüentar a escola.

Os compartimentos contraditórios são evidentes: nos lares e escolas progressistas encorajamos a auto-regulação, a curiosidade intensa, o apren­ der fazendo, a liberdade democrática. E tudo isso é meticulosamente impossível no plano urbano, no âmbito de ganhar a vida, ter uma família e administrar o Estado. Quando o ajustamento prolongado já se completou, não houve qualquer frustração intensa que pudesse despertar uma rebeldia arraigada, mas somente uma pressão modeladora contínua que forma bons cidadãos saudáveis que têm esgotamentos nervosos precoces e se queixam de que“a vida me deixou para trás”. Ou um outro resultado, como veremos, é engajar-se numa guerra boa, bem-comportada, ordenada e infinitamente destrutiva.

A história da própria psicanálise é um estudo de como as garras são suprimidas por meio da respeitabilidade. É uma ilustração perfeita da lei de Max Weber da Burocratização do Profético. Contudo, essa lei não é inevi­ tável; é uma conseqüência do desenvolvimento desigual e da ansiedade re­ sultante, da necessidade do todo de ajustar-se à nova força e ajustar a nova força a ele. O que a psicoterapia tem de fazer para impedir essa respeitabi­ lidade burocratizante? Simplesmente, exercer pressão para que se avance

para a próxima resistência.