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As dificuldades verbais nesta exposição

A NATUREZA HUMANA EA ANTROPOLOGIA DA NEUROSE

8. As dificuldades verbais nesta exposição

É instrutivo perceber como, ao discutir esse tema, começam a surgir dificuldades verbais: “homem”, “pessoa”, “s e lf\ “indivíduo”, “animal hu­ mano”, “organismo” são às vezes intercambiáveis e às vezes é necessário distingui-los. Por exemplo, é enganoso pensar os “indivíduos” como sendo primitivos e estando combinados nas relações sociais, porque não há dúvi­ da de que a existência de “indivíduos” surge como conseqüência de uma sociedade muito complexa. Por sua vez, já que é significativo dizer que é por meio da auto-regulação organísmica que imitamos, simpatizamos e nos tornamos “independentes”, e podemos aprender as artes e as ciências, a ex­ pressão contato “animal” não pode significar “meramente” contato animal. Além disso, as “pessoas” são reflexos de um todo interpessoal, e a melhor maneira de considerar a “personalidade” é como uma formação àoself por uma atitude social compartilhada. No entanto, num sentido importante, o

self, como o sistema de excitamento, orientação, manipulação e várias iden­

tificações e alienações, é sempre original e criativo.

Essas dificuldades podem ser naturalmente evitadas de modo parcial por uma definição cuidadosa e um emprego consistentes — e tentamos ser tão consistentes quanto podemos. Contudo, elas são parcialmente inerentes ao tema“Homem”, que cria a si próprio de diferentes maneiras. Por exemplo, os primeiros antropólogos filosóficos dos tempos modernos, nos séculos XVII e XVIII, falavam geralmente de indivíduos condensando a sociedade; seguindo Rousseau, os sociólogos do século XIX voltaram à sociedade como sendo primordial; e tem sido um grande mérito da psicanálise recuperar esses conceitos distintos para uma interação dinâmica. Se a teoria é freqüentemente confusa e ambígua, é provável que a natureza também o seja.

9. Símbolos

Continuamos agora nossa história nos últimos milhares de anos, des­ de a invenção da escrita e da leitura. Adaptando-se à vasta acumulação de cultura, tanto de conhecimentos como de técnicas, o homem é educado em meio a abstrações muito elevadas. Abstrações de orientação, distantes da percepção sentida e plena de interesse: as ciências e os sistemas de ciência. Abstrações de manipulação distantes da participação muscular: sistemas de produção, troca e governo. Ele vive num mundo de símbolos. Orienta-se simbolicamente como um símbolo em relação a outros símbolos, e mani­ pula simbolicamente outros símbolos. Onde havia métodos, agora também há metodologia: tudo se torna objeto de hipóteses e experimentos, com uma determinada distância do comprometimento. Isto inclui a sociedade, os ta­ bus, o supra-sensório, as alucinações religiosas, a ciência e a própria metodologia, bem como o próprio Homem.Tudo isso proporcionou um enor­ me aumento na amplitude de ação e poder, porque a habilidade de fixar de modo simbólico aquilo em que estávamos totalmente envolvidos permite uma certa indiferença criativa.

Os perigos disso não são, infelizmente, potenciais, mas manifestos. As estruturas simbólicas— por exemplo, dinheiro ou prestígio, ou a paz pública, ou o progresso do saber — tornam-se o objetivo exclusivo de toda ativida­ de, na qual não há nenhuma satisfação animal e pode até não haver nenhu­ ma satisfação pessoal; e contudo, fora do interesse animal ou pelo menos pessoal, não pode haver nenhuma medida intrínseca estável, mas somente o desnorteamento e padrões que nunca podemos alcançar. Desse modo, economicamente, está em operação um mecanismo amplo que não produz necessariamente produtos de subsistência suficientes e poderia, de fato, como Percival e Paul Goodamn salientaram em Communitas, continuar funcio­ nando numa velocidade quase tão alta sem produzir absolutamente nenhum meio de subsistência; só que os produtores e consumidores estariam todos mortos. Um trabalhador se enquadra, de maneira hábil ou grosseira, neste símbolo mecânico de fartura, mas seu trabalho dentro dele não deriva de nenhum prazer da habilidade ou da vocação. Pode ser que não entenda o que está produzindo, nem de que maneira e nem para quem. Uma energia enorme se exaure na manipulação de marcas sobre o papel; recompensas são dadas em tipos de papel, e o prestígio acompanha a posses de papéis. Politicamente, em estruturas constitucionais simbólicas, representantes sim­ bólicos indicam a vontade do povo da maneira como foi expressa em votos simbólicos; quase ninguém entende mais o que significa exercer afinidade política ou chegar a um acordo comum. Emocionalmente, alguns artistas apreendem , a partir da experiência concreta, sím bolos de paixão e excitamento sensório; esses símbolos são abstraídos e estereotipados por

imitadores comerciais; e as pessoas fazem amor ou se aventuram de acordo com essas normas de glamour. Os médicos cientistas e os assistentes soci­ ais fornecem outros símbolos de emoção e segurança, e as pessoas fazem amor, desfrutam o lazer e assim por diante, de acordo com uma receita. Na engenharia, o controle do tempo, do espaço e da força se obtém simbolica­ mente tomando mais fácil ir a lugares menos interessantes e mais fácil ob­ ter mercadorias menos desejáveis. Na ciência pura, a awareness focaliza- se em cada detalhe, menos no medo psicossomático e na autoconquista da própria atividade, de modo que, por exemplo, quando se trata de produzir certas armas letais, a questão debatida é se a necessidade de um país obter superioridade com relação ao inimigo é mais importante do que o dever de um cientista de tomar públicas suas descobertas; mas as reações mais sim­ ples de compaixão, fuga, desafio não são em absoluto operativas.

Nessas condições, não é de surpreender que as pessoas brinquem com o sadomasoquismo das ditaduras e das guerras, onde há, pelo menos, o con­ trole do homem pelo homem em lugar de pelos símbolos, e onde há sofri­ mento da carne.