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O ANTI-SOCIAL E A AGRESSÃO

2. Mudanças no anti-social

Ao considerar o anti-social, diferenciemos primeiro o que o neurótico julga anti-social do que é anti-social.

Tememos que sejam anti-sociais todos os instintos ou objetivos que temos mas que não aceitamos como nossos, que mantemos inconscientes ou projetamos nos outros. Obviamente, os inibimos e os expulsamos da

awareness porque não combinavam com uma imagem aceitável de nós pró­

prios, e essa imagem de nós próprios era uma identificação com aquelas autoridades com as quais convivemos em primeiro lugar, e uma imitação delas. Mas, quando o instinto é liberado e aceito como parte de nós mes­ mos, resulta ser muito menos anti-social; de repente, percebemos que isto não é incomum, que é mais ou menos aceito em nossa sociedade adulta — e a intensidade destrutiva que lhe atribuímos é menor do que temíamos. Um impulso que sentíamos vagamente ser diabólico ou homicida resulta ser um simples desejo de evitar ou rejeitar alguma coisa, e ninguém se importa se a rejeitamos ou não. Não obstante, foi a própria repressão que a) tomou a idéia uma ameaça persistente, b) obscureceu sua intenção limitada e fez com que não víssemos a realidade social, c) pintou-a com as cores vividas do proibi­ do e d) criou ela mesma a idéia de destrutividade, porque a repressão é uma agressão contra o selfz essa agressão foi atribuída ao instinto. (Para citar o exemplo clássico: em 1895, Freud pensou que a masturbação causava neurastenia; posteriormente ele descobriu que era a masturbação culpada, a tentativa de reprimir a masturbação e a inibição do prazer orgástico que causavam a neurastenia. Desse modo, era o próprio medo do dano e uma

medicina equivocada que apoiava o tabu sexual que causavam o dano.) Desde que Freud escreveu pela primeira vez, os “conteúdos do id” tornaram-se menos diabólicos, mais tratáveis. Provavelmente agora ele não teria se sen­ tido exortado a empregar o lema

Flectere si nequeo superos, Acheronta movebo*

— o que teria sido uma pena.

Mas a avaliação neurótica também está correta. Os teóricos exageraram em sua demonstração de que os instintos latentes são “bons” e “sociais”; es­ forçaram-se demais para ficar do lado dos anjos. O que de fato aconteceu foi que nos últimos cinqüenta anos houve uma revolução extraordinária nos cos­ tumes e avaliações sociais, de modo que muita coisa que era considerada per­ versa não o é mais. Não se trata de que determinado comportamento seja agora aceitável porque é visto como bom, social ou inócuo, mas de que será consi­ derado bom etc. porque agora é uma parte aceita da imagem da humanidade. O homem não se esforça para ser bom, mas é humano esforçar-se para conse­ guir o que é bom. Expressando isso de outra maneira, determinados “conteú­ dos do id” eram diabólicos não somente porque a repressão os fazia assim, das quatros maneiras mencionadas anteriormente, mas também porque con­ tinham um resíduo que era realmente destruidor das normas sociais de então, eram uma tentação ou vício genuínos — e era uma pressão social concreta, transmitida pelas primeiras autoridades, que levava à repressão neurótica.

No entanto, em circunstâncias em que a tentação reprimida estava pre­ sente de maneira bastante universal, assim que esta se revelava como sendo geral e de certo modo aceita, vinha a público com uma rapidez surpreenden­ te; e ao tomar-se pública e mais ou menos satisfeita, perdia seus aspectos dia­ bólicos; e no espaço de uma geração a norma social se modificava. Narealidade, é digna de nota a unanimidade com a qual a sociedade chega a uma nova ima­ gem de si própria como um todo; seria de se esperar que partes do código moral fossem mais tenazmente conservativas (mas, naturalmente, houve a coope­ ração de todo tipo de fator social: a economia modificada, a urbanização, a comunicação internacional, a elevação do padrão de vida etc.). Somente quando se visita uma comunidade muito provinciana, quando se toma em mãos um manual de cuidados infantis de 1890 ou um ensaio sobre “Cristianismo e o Teatro”, é que percebemos a intensidade da mudança. E o que é fundamen­ tal é isto: a atitude mais antiga não é necessariamente espantosa, exagerada, nem particularmente ignorante; mais exatamente, muitas vezes é uma opi-

*”Se eu não puder dobrar os deuses do alto, moverei o Aqueronte”, diz Juno a Júpiter. Virgílio. Eneida, canto VII, verso 312, trad. Tássilo Orpheu Spalding.

nião sensata e bem refletida de que algo é desaconselhável ou destrutivo, algo que agora sustentamos ser útil ou salutar. Por exemplo, costumava-se compreender com perfeita clareza que o treino rigoroso para a toilete era útil na formação de um caráter disciplinado; isto não é de maneira alguma ignorância, é provavelmente verdade. E portanto, eles diziam, faça o trei­ namento; e nós dizemos, não o faça. Uma razão para a mudança, por exemplo, é que em nossa economia e tecnologa atuais o padrão antigo de intimidade, diligência e dever seria socialmente prejudicial.

Freud levou a sério esse resíduo hostil, aquilo que era de fato so­ cialmente destrutivo. Ficou advertindo sobre a resistência social à psi­ canálise. Se nossos higienistas mentais modernos julgam o que liberam como invariavelmente bom e não anti-social, e portanto não têm de en­ frentar resistência entre os liberais e tolerantes, é simplesmente porque estão travando batalhas que já foram essencialmente ganhas, e estão empenhados numa operação de limpeza sem dúvida necessária. Mas a psicoterapia eficiente é inevitavelmente um risco social. Isto deveria ser óbvio, porque as pressões sociais não deform am a auto-regulação organísmica que é “boa” e “não anti-social”, quando esta é compreendi­ da de maneira adequada e expressa com palavras aceitáveis; a socieda­ de proíbe o que lhe é destrutivo. Não existe aqui um erro semântico, mas um conflito genuíno.