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1, Crítica de uma teoria que torna o self ocioso

4. Compartimentos filosóficos

O método da psicologia foi classicamente o de passar dos objetos da experiência para os atos e para as faculdades, sendo que estas últimas eram

o tema adequado — por exemplo, passar da natureza do visível para a con- cretude da visão e daí para a faculdade de ver como parte do espírito orgâni­ co. Esta é uma seqüência sensata, partindo do observável para o inferido. Mas se acontecer de o processo de experienciação ser neurótico, surge uma dificuldade curiosa: faculdades anormais geram atos distorcidos e estes geram objetos defeituosos, e, então, se partirmos desse mundo experienciado de maneira defeituosa, deduziremos de modo errôneo as faculdades da expe­ riência, e os erros se reforçarão mutuamente, num círculo vicioso.

Vimos no capítulo III como a reação a um estado de emergência crôni­ co de baixo grau epidêmico é a percepção de um mundo de Mente, Corpo e Mundo Externo compartimentalizados. Bem, os objetos de semelhante mundo externo são do tipo que exigem ser manipulados por uma vontade agressiva (em lugar de se interagir com eles dentro de um processo de cres­ cimento), e cognitivamente são estranhos, fragmentados etc., do tipo que pode ser conhecido somente por um raciocínio abstrato elaborado. O self\ deduzido como experienciando semelhantes objetos, seria o ego delibera­ do que estamos descrevendo. Mas essa dedução é reforçada pelo fato de que a hipertonia crônica inconsciente da muscularidade, a percepção excessi­ vamente vigilante e a propriocepção reduzida produzem a sensação de uma consciência desejosa e exagerada: o ^l/essencial sob a forma do ego deli­ berado isolado. Igualmente na relação entre Mente e Corpo: a agressão da autoconquista reprime os apetites e as ansiedades; a observação e a teoria médicas desdobram-se no sentido da invasão por venenos e micróbios ex­ ternos; e a prática médica consiste em higiene estéril, curas químicas e anal­ gésicos. Passa-se por cima dos fatores da depressão, tensão e suscetibilidade. Desse modo, em geral, o comportamento que não conta com a unidade do campo impede o surgimento de evidências contra a teoria corrente. Há pou­ ca criatividade aparente, está faltando contato, a energia parece vir de “den­ tro” e as partes da gestalt parecem estar “na mente”.

Então, dada essa teoria (e sentimento) do ego isolado ativo, considere o problema que confronta um médico. Se a capacidade sintética do ego for considerada seriamente com relação ao funcionamento fisiológico, haverá um limite para a auto-regulação organísmica, pois o ego intervirá em lugar de aceitar e se desenvolver; entretanto, a interferência na auto-regulação produz a doença psicossomática; portanto, teórica e praticamente, na saú­ de relativa, o ego é tratado como ocioso, como um observador. E isto é com­ provado pelo fato de que realmente falta energia ao ego isolado, de que ele, assim, não vale muito. Da mesma maneira, se a capacidade sintética do ego for levada a sério com relação à realidade, teremos o mundo do psicótico, um mundo de projeções, racionalizações e sonhos; portanto, na saúde rela­ tiva uma distinção definitiva é feita entre “meros” pensamentos e o “real”; o ego está fixado nos seus limites.

É interessante notar o que ocorre quando uma parte da comparti- mentalização filosófica se dissolve, e a outra parte não. Tanto em teoria como na terapia, Wilhelm Reich restabeleceu de modo completo a unidade psicossomática; mas a despeito de certas concessões à evidência óbvia, ele ainda considera fundamentalmente o animal como funcionando dentro de sua pele — por exemplo, o orgasmo é comparado com a pulsação numa bexiga; o “organismo” não é considerado como uma abstração do campo existente. O que ocorre então em sua teoria? Na fronteira, as situações-con- tato são vistas como instintos contraditórios, e para encontrar a unidade destes não podemos contar com a síntese criativa do self, mas temos de dei­ xar a superfície sociobiológica e fazer explorações nas profundezas bioló­ gicas; toda energia humana provém “de dentro”. Perde-se cada vez mais a esperança da possibilidade de uma solução criativa das contradições de su­ perfície; por exemplo, na cultura ou na política (mas naturalmente essa de­ sesperança foi uma das causas de se retirar teoricamente da superfície). Na terapia, o método reduz-se finalmente ao mero tentar despertar os oráculos do corpo. O poder criativo do selfé atribuído totalmente à auto-regulação organísmica não-consciente, contra toda a evidência das ciências humanas, a arte, a história etc. Mas, então, de forma secundária, passando por cima da fronteira de contato, a unidade reprimida do campo é projetada de modo abstrato nos céus e em toda a parte, como um poder biofísico, que energiza diretamente (e ataca diretamente) o organismo “a partir de fora”. E essa abstração e projeção — a “teoria do orgônio” — vem acompanhada do positivismo científico obsessivo costumeiro. (Isto não quer dizer que a for­ ça biofísica de Reich seja, necessariamente, uma ilusão, porque muitas pro­ jeções na realidade atingem o alvo; mas o que é uma ilusão é a noção de que

semelhante força, se existir, possa ser diretamente efetiva sem atravessar os canais de assimilação e crescimento humanos usuais.)

Por outro lado, suponha que a compartimentalização do ambiente so­ cial seja dissolvida, mas a unidade psicossomática não é compreendida a não ser da boca para fora. Chegamos então à opinião dos teóricos inter­ pessoais (escola de Washington, Fromm, Horney etc.). Estes reduzem o self ao que denominamos anteriormente de Personalidade, e em seguida— sur­ preendente mas inevitavelmente— nos dizem que grande parte da natureza biológica é neurótica e “infantil”. Contudo, à construção deles falta vitali­ dade e originalidade; e exatamente onde esperaríamos que fossem melho­ res, como iniciadores sociais inventivos e revolucionários, descobrimos que sua filosofia social é um salão de espelhos singular, sem gosto das Persona­ lidades livres mas vazias.