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1, Social, interpessoal e pessoal

3. A verbalização e a poesia

Quando é divorciada de seu emprego como instrumento numa situa­ ção social ulterior, ou ainda de suas próprias regras como uma atividade poética vital, a fala reflete facilmente toda e qualquer experiência. É fácil para uma pessoa se iludir de que está sentindo ou mesmo fazendo algo se ela fala ou “pensa” em senti-lo e fazê-lo. Desse modo, a verbalização serve facilmente como um substituto para a vida; é um meio disponível a uma personalidade alheia introjetada, com suas convicções e atitudes, poder vi­ ver no lugar de nós mesmos. (O único inconveniente é que a refeição, o en­ contro etc. verbalizados não proporcionam alimento, prazer sexual etc.) Assim, voltando a uma discussão anterior, a maior parte da reminiscência ou do planejamento aparentes não é realmente memória ou antecipação em absoluto, as quais são formas da imaginação, mas são algo que o nosso con­ ceito de nós mesmos está nos dizendo; e a indignação e o raciocínio, em sua maior parte, têm pouco a ver com a raiva sentida ou com a medida racional, mas são um exercício das vozes de mamãe e papai.

Não se trata do fato de que o verbalizador fale, mas de como ele fala. Com relação às três pessoas gramaticais, Eu, Tu e Isso, ele manifesta uma rigidez, uma fixação ou estereótipo que abstrai da situação concreta apenas uma porção escassa das possibilidades desta, o suficiente para manter a reputação social e evitar a ansiedade e o constrangimento do silêncio, da revelação ou da auto-afirmação; e também o suficiente para exaurir a ener­ gia da fala de modo que não ouçamos as cenas subvocais inacabadas que de outro modo poderiam se tornar clamorosas. Isto é, em lugar de ser um meio de comunicação ou expressão, a verbalização protege nosso isolamento tanto do ambiente como do organismo.

A falta de contato com o Eu pode ser muitas vezes observada de ma­ neira espetacular na divisão do corpo em uma boca sonora com lábios ligei­ ros e rígidos, uma língua e um vocalism o sem ressonância, sem o envolvimento de todo o resto do corpo que é mantido a distância; ou, às ve­ zes, os olhos e alguns gestos dos pulsos ou dos cotovelos se juntam à boca verbalizante; ou, às vezes, um único olho, enquanto o outro está sem ex­ pressão, vagando ou desaprovando o falatório; ou então o rosto está dividi­ do em duas metades. As palavras brotam aos borbotões, sem ligação com a respiração, e o tom é monótono. Na fala poética, por outro lado, o ritmo é dado pelas pulsações da respiração (os versos), pelas maneiras de locomo­ ção e dança (a métrica), pelo silogismo, antítese ou outras cadências do pensamento (as estrofes e os parágrafos), e pela intensificação orgástica do sentimento (o clímax), que, em seguida, se silencia gradativãmente. A va­ riedade de som e a riqueza de seus matizes são a potencialidade de soar nos clamores primitivos no momento em que surge uma oportunidade. O verbalizador raramente ouve sua própria voz; quando a escuta se surpreen­ de; contudo, o poeta presta atenção aos murmúrios e sussurros subvocais, torna-os audíveis, critica o som e repassa-o. (Existe um caráter intermediá­ rio, uma espécie de ator interpretativo sem poeta, que não percebe nada a não ser o som de sua voz, que modula o tom e saboreia as palavras; presumivelmente, ele está obtendo disso uma satisfação oral genuína, sen­ do o centro das atenções enquanto a platéia sai de fininho.)

A atitude retórica, o Tu do verbalizador, é irrelevante para a cena social concreta, mas o tom que soa mostra que está encenando fixadamente algu­ ma situação subvocal inacabada. Não importa qual seja a ocasião, a voz está reclamando, ou censurando, ou condenando, ou inversamente, está discu­ tindo ou produzindo um álibi ou justificando-se. Na repetição desta cena— talvez desempenhando alternadamente ambos os papéis — o resto do orga­ nismo está rigidamente imobilizado. O poeta, como dissemos, capitaliza a situação subvocal: concentrando-se nela, ele encontra a platéia correta, a platéia ideal da literatura; ele molda plasticamente a linguagem para expressar a necessidade orgânica relevante e chegar a uma descoberta, uma solução, O alheio subvocal é assim assimilado de novo à sua própria personalidade. Muitas vezes se afirma que o trabalho de arte não é nenhum problema ou resolve-o só temporariamente, porque o artista não conhece o conteúdo la­ tente de seu símbolo; se assim fosse, a poesia seria por sua vez um exaurimento obsessivo de energia numa situação que se repete, como a verbalização. Isto é tanto verdadeiro como falso: o problema que o artista não resolve é o que faz dele somente um artista, livre somente na atividade vital do falar, mas incapaz de usar também as palavras instrumentalmente em outros atos livres; e muitos poetas sentem a obsessividade de sua arte nesse sentido — ao terminar uma obra, estão exaustos, e ainda assim não

reconquistaram o paraíso perdido. (Por falar nisso, não se observa que mui­ tas outras atividades — mesmo a psicoterapia — nos propiciem esse paraí­ so perdido.) Entretanto, com relação aos problemas subvocais específicos, eles são realmente resolvidos, um a um; a prova disso é que os trabalhos de arte sucessivos são fundamentalmente diferentes, há um aprofundamento do problema de arte; e, de fato, essa atividade por vezes avança a tal ponto que o poeta finalmente é forçado a confrontar os problemas de vida que não pode resolver somente por meios artísticos.

No conteúdo, o Isso de sua fala, o verbalizador, está num dilema: deve ater-se aos fatos da realidade para não parecer demente ou ser ridículo; e contudo esses fatos não são sua preocupação real, e nem ele se pode permitir percebê-los de maneira demasiado precisa, com a sensação e o sentimento. De outra forma já que toda realidade é dinâmica, eles romperiam seu armistício, destruiriam suas projeções e racionalizações e despertariam ansiedade; a vida real invadiria a vida substituta. O verbalizador é chato porque tem intenção de ser chato, para que o deixem sozinho. A solução conciliatória é falar usando estereótipos, abstrações vagas ou particulari­ dades superficiais, ou outras maneiras de dizer a verdade e não dizer nada em absoluto. (Enquanto isso, é claro, o conteúdo recebe energia de proje­ ções de suas necessidades não percebidas.) O poeta, por sua vez, faz a es­ colha de conteúdo oposta: a verdade concreta é livremente distorcida e transformada em símbolo do interesse subjacente; ele não hesita em men­ tir ou ser irracional; e desenvolve os símbolos de maneira rica com o em­ prego ativo de seus sentidos, percebendo, de forma penetrante, imagens, odores e sons, e entrando em empatia com situações emocionais, proje­ tando a si próprio nelas, em lugar de alienar seus próprios sentimentos e projetá-/6>s.

Por fim, o verbalizador está embaraçado pela própria atividade do fa­ lar. Emprega expressões sem sentido para adquirir confiança, com o“ Você não acha?”, “Você sabe”, “Na minha opinião”, ou então preenche o silên­ cio com grunhidos; a sintaxe o inibe; e cerca sua fala com uma moldura literária antes de aventurar seus próprios comentários, tais como são, como “Poderá ser um exagero, mas parece-me que...” Contudo, para o poeta, o manuseio das palavras é a própria atividade; a forma, por exemplo, o so­ neto, não é uma moldura, mas é parte integral do enredo; ele é responsá­ vel pela função da sintaxe, mas tem liberdade com as formas; e à medida que progride na arte, seu vocabulário torna-se cada vez mais o seu próprio vocabulário mais idiossincrático, caso seus problemas subvocais sejam obscuros e difíceis para ele apreender, mais clássico, caso sejam os pro­ blemas que ele reconhece nos outros.