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A Autocriação no Direito por Norberto Bobbio

3.1 SISTEMA JURÍDICO E AUTONOMIA JURÍDICA OS ASPECTOS PONTUAIS DA

3.1.3 O Sistema Jurídico (Direito) pela sua Autocriação (Autoprodução ou

3.1.3.3 A Autocriação no Direito por Norberto Bobbio

Quando focalizamos o fenômeno da autocriação jurídica, e como o sistema jurídico se comporta com relação a isto, não mesmo importante é também o trabalho do jusfilósofo italiano Norberto Bobbio (1909 - 2004). Na profusão constitutiva das suas elaborações teóricas de forma mais elástica, Bobbio quando comparado com Kelsen procura ir às raízes mais distantes para uma explicação do problema, partindo dos conceitos jurídicos os mais elementares possíveis, demonstrando uma exaustiva vocação analítica ao desnudar o problema. A sua incursão quanto ao problema estrutural e de autoprodução no Direito ficou bem demarcada na obra Teoria do Ordenamento Jurídico (1960) que haveria de complementar o seu trabalho anterior Teoria da Norma Jurídica (1958). Na sua Teoria do Ordenamento é possível se verificar de forma bem demarcada uma preocupação sistêmica do Direito com um desengate lúcido em relação aos mecanismos próprios da autocriação jurídica. Neste incurso o autor focaliza aspectos pontuais desde a conceituação da norma jurídica e do Direito, suas fontes, estrutura escalonada do ordenamento com suas implicações, limites formais e materiais, sistema estático e sistema dinâmico, norma fundamental, coerência no ordenamento jurídico, antinomia, etc., donde é possível se identificar neste conjunto composicional as vigas para uma sustentação da autocriação no Direito.

A forma vinculativa e intensa do Direito a um sistema jurídico fica bem demarcada nas ideias de Bobbio. Para ele o ordenamento jurídico é um sistema - sistema jurídico -, este que é “uma totalidade ordenada, um conjunto de entes entre os quais existe uma certa ordem”. Ademais, para que haja esta ordem “é necessário que os entes que a constituem não estejam somente em relação com o todo, mas também num relacionamento de coerência entre

153 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 4. ed. Trad. de João Baptista Machado. Coimbra, Portugal:

si”154. Não há dúvida, pois, que como ponto de partida toda sua convicção é no sentido imprescindível da organização sistêmica para o Direito, com todas as implicações necessárias, entre as quais devemos colocar também o problema da autoprodução jurídica. E isto se afirma ainda mais quando o autor vincula tanto o conceito jurídico de norma jurídica como o próprio conceito de Direito sob uma tutela vinculativa ao ordenamento jurídico. Para ele norma jurídica é a norma assim definida na medida em pertence ou faz parte de um ordenamento jurídico, enquanto que o próprio Direito será assim definido apenas no âmbito da teoria do ordenamento jurídico155.

Da mesma forma que o Autor vincula a definição de norma jurídica e a definição do Direito numa relação direta com ordenamento jurídico, também é da sua lavra a caracterização jurídica da ideia de sanção, validade e eficácia, aspectos jurídicos que encontram força no conjunto do ordenamento.

Após lembrar a categorização clássica das normas jurídicas que pelo seu alcance deôntico são classificadas em normas proibitivas, permissivas e obrigatórias (Von Wright), oportunamente Bobbio faz referência a um caldeamento das normas jurídicas - em geral - em normas de conduta, e em normas de estrutura ou de competência (fixa as condições e os procedimentos para a elaboração de normas validades de conduta), uma consideração providencial e oportuna para uma discussão acerca não só da unidade do ordenamento jurídico, mas que desemboca também na hierarquia e nas antinomias das normas, além da completude normativa do ordenamento jurídico.

Ao tratar da unidade do ordenamento jurídico Bobbio não deixa de reconhecer a sua complexidade em função da multiplicidade das fontes normativas, que numa visão de estrutura escalonada ao se descer na hierarquia aumenta-se o número e a especificidade normativa, e ao se subir nesta mesma hierarquia diminui-se o número e o caráter genérico das normas até culminar numa referência geral. Esta referência geral constitui um poder originário que justifica o ordenamento jurídico e que é responsável por sua unidade. A este poder originário o Autor caracteriza como a “fonte das fontes”, reconhecendo as fontes em geral como “fatos ou atos dos quais o ordenamento jurídico faz depender a produção de normas jurídicas”. Assim, na visão do jusfilósofo a produção jurídica levada a efeito pelo ordenamento jurídico está diretamente ligada às fontes, sendo que pertence ao primeiro - ordenamento jurídico - regulamentar tanto o comportamento ou a conduta das pessoas como

154 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10. ed. Trad. de Maria Celeste Cordeiro Leite dos

Santos. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 71.

também regulamentar a forma ou modo de produção das normas - regras - jurídicas156, que neste último caso sobressaem as normas de estrutura, denominada também por Bobbio de normas de segunda instância. Aqui o ordenamento jurídico é o próprio sistema jurídico, a quem compete estabelecer a autocriação jurídica regulando a própria produção normativa.

Após atinar para o fato da própria produção jurídica como uma imanência do sistema, Bobbio já neste contexto faz questão de lembrar a pertinência de uma estrutura escalonada e ao mesmo tempo hierarquizada, própria do âmbito do ordenamento jurídico, e cuja unidade é assegurada por uma norma especial na base do sistema que é a norma fundamental, esta que se caracteriza como uma norma jurídica e que providencia por colocar todas as demais normas do sistema num conjunto unitário, como também faz Kelsen. Frise-se que nesta estrutura escalonada do sistema jurídico Bobbio amadurece um ponto teórico fundamental. É que daí é possível se assistir, segundo ele, tanto os processos de produção normativa como os processos de execução normativa157, sendo que ambos os casos não se confundem naquilo que constituem os compromissos básicos do sistema jurídico. No primeiro caso identifica-se o fenômeno - produção normativa - numa relação direta com uma consideração hierárquica de cima para baixo, e no segundo caso identifica-se o fenômeno - execução normativa - numa consideração hierárquica de baixo para cima.

No desenvolvimento de uma concepção onde é possível se afirmar a realidade de uma autocriação (autoprodução) no Direito, vamos deparar com pontos derradeiros quanto a isto quando Bobbio assinala tanto os limites formais como os limites materiais, estes que vão envolver o poder normativo que é atribuído aos órgãos encarregados tanto da produção como da execução jurídica. Estes limites são oriundos do próprio sistema jurídico e Bobbio define o primeiro - limite formal - como aquele que estabelece o processo, a forma ou o modo que deve ser observado pelo órgão competente na expedição da norma inferior, e o segundo - limite material - como aquele que estabelece o conteúdo que deve ser observado pelo órgão competente também quando da expedição a norma inferior. Estes limites deverão ser observados em concomitância quando da produção normativa158. Dessarte, a produção jurídica como imposta pelo sistema jurídico deverá cuidar de ambos os limites sob pena de inconstitucionalidade - em se tratando de norma geral como no caso de ato legislativo com a produção de uma lei ordinária -, e mesmo de ilegalidade - em se tratando de norma individual,

156 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10. ed. Trad. de Maria Celeste Cordeiro Leite dos

Santos. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 45.

157 Ibidem, p. 51. 158 Ibidem, p. 54.

como no caso de uma sentença na jurisdição em que o conteúdo da decisão deve observar o conteúdo da lei. A observância e o cuidado quanto a esses limites vai implicar na validade normativa que é dirigida tanto aos cidadãos no âmbito da conduta como aos órgãos no âmbito da produção e respectiva execução da norma, visto que pela sua validade a norma produzida será reconhecida como pertencente ao ordenamento jurídico.

Como conceitos ampliados daquilo que é possível reconhecer como limite formal e limite material na produção jurídica, e conduzido por uma ideia de coerência no ordenamento jurídico, Bobbio faz referência ainda a dois sistemas básicos que é o sistema dinâmico e o

sistema estático, cada um deles com implicação funcional e própria nesta missão sistêmica de elaboração normativa. Com estes modelos de sistema ele reafirma o papel reservado ao sistema jurídico - e só a ele - em protagonizar a produção do Direito e no Direito, e com isto conseguir uma noção sistêmica suficiente no mundo jurídico. Há com esta admissão uma ultimação quanto aos sintomas que possam ser identificados no sistema jurídico, envolvendo a autonomia do Direito na condução da produção jurídica e sob uma ação própria. Para isto, e no entendimento do jusfilósofo, o sistema dinâmico é apresentado como aquele que faz com que as normas derivem umas das outras por delegação de poder, como uma espécie de autoridade juridicamente reconhecida. Há, pois, uma ligação formal entre normas, e onde se repassa autoridade normativa de uma escala superior para uma escala inferior. Com isto o sistema se caracteriza como uma racionalização e continuidade sucessiva em cadeia acerca das competências. Nisto o sistema dinâmico como apregoado por Bobbio apresenta certa similaridade com a norma secundária de Herbert Hart (1907 - 1992), que confere no sistema poderes para se criar, modificar ou mesmo ab-rogar obrigações estabelecidas pela norma primária, fazendo-o na estrutura do sistema mediante a regra de reconhecimento, a regra de câmbio e a regra de adjudicação159. Por sua vez o sistema estático como entendido por Bobbio vai identificar uma relação entre normas onde umas são deduzidas de outras levando- se em conta os seus conteúdos160. Se no primeiro caso - sistema dinâmico - nós temos uma relação formal entre normas, no segundo caso - sistema estático - nós temos uma relação material.

159 HART, Herbert. El Concepto de Derecho. 2. ed. Trad. de Genaro R. Carrio. Mexico: Editora Nacional,

1980, p. 121.

As duas formas sistêmicas acima descritas - sistema dinâmico e sistema estático - enfeixam o sistema num sistema geral, suficiente e devidamente equacionado para o enfrentamento das questões jurídicas numa dimensão de positivismo jurídico. Daí porque Bobbio trata ainda, como sequência a esta forma de organização, uma tratativa envolvendo também aspectos pontuais como a ocorrência das antinomias normativas - sempre que se verificar normas contraditórias e incompatíveis, com suas respectivas formas de solução utilizando-se critérios como o cronológico, o hierárquico e o da especialidade -, a completude do sistema - o ordenamento é completo podendo-se encontrar nele qualquer norma para a solução dos casos -, as lacunas - que se resolvem pelo método da auto-integração com a utilização da analogia e dos princípios gerais de Direito, estes últimos reconhecidos por Bobbio como “normas fundamentais e generalíssimas do sistema”-, até culminar ainda mais com as relações entre os vários tipos de ordenamento jurídicos (pluralidade dos sistemas). O que se verifica como uma sintomatologia ampla e plena, mesmo nos embates envolvendo estes aspectos pontuais, é o que se percebe como uma implícita forma de reconhecimento na qual o sistema jurídico no seu todo haverá de se apresentar de forma diferente dos demais modelos sistêmicos em geral, e afirmando-se sempre na condição de uma autonomia satisfatória em resolver não só os problemas jurídicos que comparecem para ser revolvidos - sem se recorrer a uma seara alienígena -, mas também com uma proficiência no campo da autocriação (autoprodução) jurídica. Nada se resolve, portanto, fora de uma dimensão do sistema jurídico, e este é sempre reconhecido e caracterizado com vistas àquilo que é devidamente organizado em sede do Direito Positivo. Assim, tanto o sistema jurídico como o Direito Positivo constituem ambos dois entes que combinados resulta na seara de um referencial para as providências necessárias envolvendo por um lado a produção normativa (jurídica), e também por outro a execução normativa (jurídica).