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3.1 SISTEMA JURÍDICO E AUTONOMIA JURÍDICA OS ASPECTOS PONTUAIS DA

3.1.3 O Sistema Jurídico (Direito) pela sua Autocriação (Autoprodução ou

3.1.3.2 A Autocriação no Direito por Hans Kelsen

Aquilo que estamos tratando como critério formal, próprio do sistema jurídico, Hans Kelsen (1881 - 1973) retratou como Dinâmica Jurídica, onde numa relação entre normas - superior e inferior - o que se verifica é um mecanismo de elaboração normativa - construção normativa - estabelecida pelo próprio sistema jurídico positivo, onde num fundamento de validade sob uma relação de implicação a norma inferior extrai sua habilitação da norma superior, até culminar na ideia de Norma Fundamental pressuposta (Grundnorm). Pela dinâmica e na salvaguarda da validade o que se faz é cuidar e focalizar a forma como as normas foram criadas. Este processo de relação donde se verifica o fundamento de validade das normas se espraia tanto num plano jurídico-positivo (norma posta) como num plano

lógico-jurídico (norma pressuposta). Por outro lado, aquilo que estamos tratando como critério material, o mesmo Hans Kelsen retratou como Estática Jurídica, onde numa relação entre normas - superior e inferior - o que se verifica é um mecanismo no qual é possível se estabelecer uma relação de conteúdo.

Ao tratar da dinâmica jurídica Kelsen deixa entrever os aspectos pontuais que ensejam o processo da autocriaçâo no Direito em que ele busca desde o fundamento de validade das normas, passando pela unidade do Direito, além de definir a atuação dos órgãos criadores do direito tanto numa dimensão de uma norma geral como na dimensão de uma norma individual, ao mesmo tempo em que aparta o ato criador do Direito do ato aplicador do Direito. Neste último caso, implicitamente faz referência ao papel produtivo do Estado através das funções estatais. Toda sua preocupação - e que podemos relacionar com a um critério formal da produção jurídica -, pode ser extraída nos seus contornos gerais ao tratar da Dinâmica Jurídica encartada na Teoria Pura do Direito.

Segundo Kelsen ao compreendermos o Direito como um sistema de normas, há que se verificar em primeiro momento o que é que fundamenta a unidade da pluralidade das normas - isto fazendo parte de uma ordem - e também porque uma determinada norma vale (validade), ou seja, verificar qual o seu fundamento de validade. Este é o ponto de partida donde segue o jusfilósofo. Kelsen afirma que o fundamento de validade de uma norma pode apenas ser a validade de uma outra norma, ou seja, uma norma superior. Nisto podemos encontrar um silogismo onde o dever ser da norma superior vai implicar, por fundamentar, o dever ser da norma inferior. Um primeiro ponto para isto é exatamente reconhecer que apenas uma autoridade competente pode estabelecer normas válidas, e onde a competência é também oriunda de normas que conferem poder para isso. Frise-se que um sequenciamento de

validade na norma superior não pode “perder-se no interminável”, sendo que o fundamento de validade abica naquilo que Kelsen chama de “norma fundamental (Grundnorm)”147. A norma fundamental constitui algo lógico, pressuposto, visto que não pode ser posta por uma autoridade e vai constituir a fonte comum de validade de todas as normas pertencentes a uma mesma ordem.

Segundo Kelsen, quanto ao fundamento de validade são dois os tipos de sistema de normas: estático e dinâmico. No primeiro caso a conduta é considerada como devida por força de um conteúdo reconduzido às outras normas do ordenamento em geral, por uma operação lógica de conclusão do geral para o particular (partindo da norma fundamental). Esta dedução de uma norma fundamental como pressuposta é um sistema estático de normas, e o seu princípio é um princípio estático. Não há que se observar a ideia de uma norma imediatamente evidente, que pressupõe um conceito de razão prática (uma razão legislativa). Ao tratarmos do conteúdo de validade das normas fundadas na norma fundamental, essas normas não constituem um sistema dinâmico de normas, cujo princípio é um princípio dinâmico. É que este sistema providencia a instituição de um fato produtor de normas, com atribuição de poder a uma autoridade legislativa, ou seja, uma regra como devem ser criadas as normas gerais e individuais do ordenamento fundado na norma fundamental, que fornece o fundamento de validade e não o conteúdo das normas do sistema, ligando-se isto à ideia de autoridade competente. Com isto o princípio dinâmico confere poder à autoridade para expedir normas.

A norma fundamental de uma ordem jurídica não é uma norma material. Registre-se que enquanto a Constituição determina por quais órgãos devem ser produzidas as normas gerais da ordem jurídica, a norma fundamental por seu turno é aquela pressuposta, antes da Constituição (que faz esta surgir), quando o costume ou quando o ato constituinte são interpretados como fatos produtores de normas, ou quando a assembleia de indivíduos é considerada como autoridade legislativa. É uma constituição no sentido lógico-jurídico, diferentemente da Constituição no sentido jurídico-positivo. Qualquer norma de uma determinada ordem jurídica tem seu fundamento de validade na norma fundamental desta mesma ordem. Registre-se que neste processo a norma fundamental como pressuposta implica num sentido subjetivo dos fatos, que transmuda-se para um sentido objetivo sempre que esses fatos são geradores de normas postas de conformidade com a Constituição. Disto extrai-se

147 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 4. ed. Trad. de João Baptista Machado. Coimbra, Portugal:

uma proposição fundamental no sentido de que devemos nos conduzir de acordo com a Constituição, ou seja, “como a Constituição prescreve”148.

É bom lembrar que permanece fora de questão o conteúdo que tem a Constituição posta e a ordem jurídica erigida com base nela, não sendo afirmado qualquer valor transcendente de Direito Positivo, e ao se admitir a pressuposição da norma fundamental com um sentido subjetivo do fato constituinte, e dos fatos de acordo com a Constituição como seu sentido objetivo, pode a sua descrição científica ser qualificada como “condição lógico- transcendental desta interpretação”149. A função da norma fundamental é fundamentar a validade objetiva de uma ordem objetiva positiva, isto é, das normas postas por atos de vontade humana, ou seja, interpretar o sentido subjetivo destes atos como seu sentido objetivo. No procedimento geral é possível identificar um subjetivismo com premissa maior, premissa menor e uma conclusão.

A norma fundamental também propicia a unidade da pluralidade das normas do ordenamento, este que pode ser descrito em proposições jurídicas que não se contradizem. Uma contradição entre normas incide como consequência em ausência de validade.

Como imanência da norma fundamental Kelsen lembra também que sobressaem para o sistema dois princípios básicos: o da efetividade e o da legitimidade. Uma Constituição é eficaz se suas regras são globalmente aplicadas e observadas. Como consequência da eficácia da Constituição resulta o governo legítimo do Estado.

Ao tratar da validade e da eficácia das normas Kelsen lembra que a conexão de ambas envolve um dos problemas mais importantes, mas também mais difíceis do positivismo porque envolve “um caso especial da relação entre o dever-ser da norma jurídica e o ser da realidade natural”150.

Na sua preocupação sistêmica Kelsen trata ainda da ideia da constitutividade que surge a partir da construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. Nisto resulta na própria ideia de unidade onde há uma conexão de dependência pela validade oriunda do fato de uma norma ser produzida com base noutra norma. Neste processo a Constituição representa o nível ou escalão do Direito Positivo mais elevado, sendo assim compreendido num sentido material, e sua elaboração por ser por um ato legislativo será por norma consuetudinária. A Constituição será registrada num documento, e daí a Constituição

148 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 4. ed. Trad. de João Baptista Machado. Coimbra, Portugal:

Arménio Amado, 1979, p. 277.

149 Ibidem, p. 279. 150 Ibidem, p. 292.

escrita. Ao lado da Constituição material Kelsen admite também a Constituição formal, aquela que contém normas de produção das normas gerais (legislação), e também normas que se referem a outros assuntos. Registre-se que a Constituição escrita poderá conter procedimento especial de alteração ou revogação das normas constitucionais, mediante condições mais rigorosas do que se verifica na legislação comum.

Seguidamente ao escalão constitucional comparecem o escalão legislativo, o processo judicial e o processo administrativo. Na atuação legislativa Kelsen lembra o papel dos indivíduos. Com apenas um indivíduo caracteriza-se a autocracia, e com vários indivíduos (assembleia) o que se caracteriza é a democracia. Ainda neste contexto é fundamental lembrar a ideia de Direito formal e Direito material. No primeiro caso há um compromisso com a produção de normas no sentido geral e individual. No segundo caso há uma observância quanto ao conteúdo criativo desta produção. Daí que a aplicação das normas gerais tem duas funções: a determinação aos órgãos jurisdicionados e administrativos, com observância ao processo da elaboração, e a determinação do conteúdo das normas produzidas. Há que se observar que o Direito formal e o Direito material estão inseparavelmente ligados e nisto pode-se ver uma conexão sistemática, onde o processo haverá de observar a sanção imposta pela norma. A atividade legislativa e a atividade jurisdicional e administrativa estão subordinadas à Constituição, com uma diferença em que as normas gerais gozam de uma extensão quanto ao conteúdo normativo, enquanto que a atividade jurisdicional tem uma margem restrita de atuação.

Frise-se que na criação do Direito sobressai o papel do Estado, e na aplicação é possível se reconhecer tanto a criação (norma individual) como a execução, não se esquecendo que todo ato criador do Direito deve ser um ato aplicador de uma norma jurídica

pré-existente. Há apenas um ato de criação jurídica que não é aplicação jurídica positiva. Aquele que trata da fixação da primeira Constituição histórica, com aplicação da norma fundamental pressuposta151.

Na organização sistêmica Kelsen faz referência à Teoria das Lacunas que no entendimento da doutrina tradicional acontece quando inexiste uma norma específica ao caso concreto. Sobre isto o jusfilósofo a entende como uma teoria errônea porque, segundo ele, não há que se confundir, quando da aplicação, a ordem jurídica com uma norma jurídica singular. Aplica-se, então, a ordem jurídica, eis que a aplicação do Direito não está logicamente excluída. A ocorrência ou admissão de “lacuna” poderá acontecer via ótica do aplicador por

151 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 4. ed. Trad. de João Baptista Machado. Coimbra, Portugal:

questão de política jurídica (ausência de equidade). Frise-se que é possível aos tribunais a criação de normas gerais desde que receba competência para isto, fazendo através da jurisprudência com decisões vinculantes, com generalizações através dos precedentes judiciais, buscando sempre os casos iguais. Ao contrapor a criação do Direito pelo ato legislativo com normas gerais e o ato dos tribunais com normas individuais (qual a fórmula mais apropriada) Kelsen prefere uma equação entre estes dois sistemas, reconhecendo a atuação de ambas as formas, com a convicção de que as normas individuais se desdobram das normas gerais, sendo que a oposição entre ambas se reduz por força do “caso julgado” da decisão judicial.

Ao lado da atuação dos tribunais, Kelsen lembra ainda como desdobramento da ordem jurídica o “negócio jurídico”, reconhecido este como ato produtor de norma, ou a norma produzida pelo ato, tipicamente neste caso o contrato que pode ser bilateral ou plurilateral.

No papel da organização sistêmica Kelsen faz referência também à participação do Estado com suas funções estatais em número de três, ou seja, a administração, a legislação e a jurisdição. Nisto reserva-se ao Estado, com seus “órgãos”, uma função especial que é assegurar a unidade da ordem coercitiva para a comunidade. Um ponto basilar que o Autor ressalta é o fato de que a natureza da administração é em grande parte igual à legislação e à jurisdição, isto é, com a função jurídica de criação e aplicação de normas jurídicas. Na administração ganha destaque o Governo que assegura participação na atividade legislativa, no exercício do poder de concluir tratados internacionais e publicação de ordens administrativas e decretos aos órgãos da administração e aos súditos (criação e aplicação de normas gerais e individuais). Nesta relação entre Estado e administração, Kelsen considera o conceito de Estado num sentido lato e num sentido restrito. No primeiro caso temos a personificação da ordem jurídica total que regula a conduta de todos os indivíduos que vivem no território do Estado, enquanto que no segundo caso temos a personificação da ordem jurídica parcial que regula apenas a função dos indivíduos na condição de funcionário público.

Um dos problemas fundamentais da organização sistêmica é exatamente aquele que surge do conflito entre normas. A verificação disso envolve algo relacionado à ocorrência e ao equacionamento das normas, como forma de salvaguardar a unidade do sistema. Kelsen enfrenta o tema ao tratar da decisão judicial “ilegal” e da “inconstitucionalidade da lei”. Para isto há que se reconhecer inicialmente que a ordem jurídica apresenta uma construção escalonada de normas, supra e infra ordenadas, uma em relação às outras, e por isso há uma hierarquia. Na verificação do conflito o problema surge ao se definir quando uma norma não

está em harmonia com a norma que determinou a sua produção. A decisão judicial ilegal se caracteriza pelo fato de que o processo em que foi produzida a norma individual (decisão judicial) não corresponde à norma geral criada por via legislativa, e a questão pode ser decidida pelo próprio tribunal ou por um tribunal superior, e a decisão é anulável através de um processo fixado pela ordem jurídica. Com relação à inconstitucionalidade da lei temos que toda lei válida assim é porque está de conformidade com a Constituição. Lei em contrariedade à Constituição é lei inválida na medida em que não possui, por isso, fundamento de validade. A inconstitucionalidade da lei, segundo Kelsen, pode se verificar tanto num caso concreto - subsistindo a lei neste caso em relação aos demais casos -, mas também pode ser reconhecida para todos os casos, hipótese em que se anula e se exclui a lei da ordem jurídica. Ao se referir tanto à ideia de conteúdo da lei, como à ideia de competência acerca da sua expedição por órgão competente, isto está numa relação direta com o princípio da legitimidade, que é limitado pelo princípio da eficácia.

Um derradeiro ponto que merece ser destacado na visão sistêmica de Kelsen é aquele que está relacionado à ideia de nulidade e de anulabilidade. Frise-se de antemão que a ordem jurídica, na sua vocação, não fixa condições sob as quais algo que se apresenta com a pretensão de ser norma jurídica, tenha de ser considerado a priori como algo nulo. É que tudo o que o Direito se refere assume o caráter de jurídico. Inobstante isso uma norma que não foi posta pelo órgão competente, ou que tenha um conteúdo que a Constituição exclui, deve ser considerada nula a priori, e a verificação disto significa a sua anulação com efeito retroativo, até então considerada válida. Dessarte, dentro de uma ordem jurídica a nulidade “é apenas o grau mais alto da anulabilidade”152.

Se na ótica da dinâmica jurídica o sistema deixa entrever regras e mecanismos de competência e de regulação da produção normativa, na ótica da estática jurídica o que se percebe na avaliação de Kelsen são relações de conteúdo entre normas envolvendo aspectos como sanção, ilícito, dever jurídico, responsabilidade, direito subjetivo, capacidade jurídica, relação jurídica, sujeito jurídico, etc. Embora da sua lavra dessume-se a compreensão de que o sistema normativo se apresenta como uma ordem essencialmente dinâmica, não é menos verdade que o sistema estático, cujas normas estabelecem a conduta dos indivíduos através do conteúdo normativo, não participe também do processo de validade normativa. É que a validade neste caso pode ser “reconduzida a uma norma a cujo conteúdo pode ser subsumido

152 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 4. ed. Trad. de João Baptista Machado. Coimbra, Portugal:

o conteúdo das normas que formam o ordenamento, como o particular ao geral”153. Desta forma a relação de conteúdo leva o fundamento de validade às normas do sistema (sistema estático), aspecto este que por isso não pode também ser negligenciado no mecanismo sistêmico quando da autocriação jurídica.