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3.1 SISTEMA JURÍDICO E AUTONOMIA JURÍDICA OS ASPECTOS PONTUAIS DA

3.1.2 A Autorreferencialidade (Autorreferência) no Sistema Jurídico A Contribuição da

3.1.2.1 A Autorreferencialidade no Direito

Registre-se que autorrefencialidade no Direito como um traço diferenciador, que assegure ao Direito Positivo a sua autonomia jurídica, tem sua etiologia demonstrada já no próprio processo de fixação das expectativas normativas. Podemos chamar a isto de autorregulação. Há nisto uma atitude da qual é cioso o Direito no sentido de normatizar as suas normas, de forma que para isto a sua estrutura se assegure quanto à interferência sistêmica alienígena, e daí a necessidade de um isolamento do seu mecanismo. A sua perspectiva será uma perspectiva normativa, cuja interpretação será equacionada e ajustada aos preceitos de natureza jurídica, afastando-se de outras naturezas preceituais. Isto até como forma de se evitar uma transgressão jurídica, cuja resultante neste caso poderá ser uma desnaturação incauta e inadvertida quanto à dimensão do caráter ontológico que deve ser observado ao Direito. Esta cautela haverá de repercutir numa diferenciação e também numa autonomização funcional do Direito, enquanto compreendido como Direito Positivo, o que será possível mediante a “instauração de processos em um sistema jurídico diferenciado”132, ou seja, o que temos é uma formação e geração do próprio Direito mediante decisão de caráter eminentemente jurídico, o que justifica inclusive a sua coerção física133 no âmbito da sua aplicabilidade. Esta é uma qualidade, entre outras, oriunda da sua autopoiese. Daí a oportuna e providencial definição de Gunther Teubner ao afirmar que o Direito “constitui um sistema autopoiético de segundo grau, autonomizando-se em face da sociedade, enquanto sistema autopoiético de primeiro grau, graças à constituição autorreferencial dos seus próprios componentes sistêmicos e à articulação destes num hiperciclo”134, e onde o sistema jurídico como sistema autopoiético haverá de produzir não só os seus elementos, juntamente com suas estruturas e processos, mas também a sua unidade e os seus limites. Assim, considerar o Direito como um sistema autopoiético é considerá-lo como um sistema que determina as próprias operações, mediante estruturas que lhe são próprias e também específicas, ao mesmo tempo em que se torna altamente seletivo com uma sobrevivência peculiar de inclusão e também de exclusão na sua relação com o meio135. Como consequência, a extensão e o alcance do Direito vai muito mais além disso, para então ser erigido à condição instrumental

132 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II. op. cit, p. 18. 133 Ibidem, p. 21.

134 TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. op. cit, p. 53. 135 LUHMANN, Niklas. Introdução à Teoria dos Sistemas, op. cit, p. 274 e 280.

de mudança e implantação da própria realidade em incontáveis pormenores e minudências da vida social136.

Sobre este processo de autonomização do Direito, numa franca compreensão sobre ele moldado pela autorreferencialidade em função de uma natureza sistêmica autopoiética, deveríamos perguntar sobre a nova perspectiva que a autopoiese haveria de trazer e sugerir para uma dimensão teórica envolvendo o fenômeno jurídico. A resposta a esta preocupação é de caráter inovador com os contornos característicos da autopoiese, conforme responde o próprio Gunther Teubner: “sem autorreferência, sem ‘circularidade básica’ e clausura organizacional, a estabilização de sistemas auto-subsistentes torna-se impossível. Apenas a autonomia recursiva de um processo autorreferencial que remete continuamente para si próprio (...) torna possível a reconstrução de todo esse mesmo processo de acordo com regras

imanentes de funcionamento”137. E isto vai incluir subciclos de reação repercutindo numa formulação geral na ideia de um sistema fechado, em que ao lado da autorreferencialidade haverão de comparecer também pontos estruturais como autodescrição, reflexibilidade, auto- organização e autorregulação, com uma evolução compreensiva do fenômeno em que Gerhard Roth houvera já por reconhecer mediante categorias sucessivas originadas a partir da auto- organização, isto é, categorias compreendidas como autoprodução, autossubsistência e autorreferencialidade138. Dessume-se daí a instauração de processos de normatização que dão ao Direito, conforme comentamos acima, a condição de sistema jurídico diferenciado dos demais modelos sistêmicos sociais.

A angústia em equacionar o problema sob uma visão autorreferencial no sistema de forma mais geral e abrangente, levaria Teubner com sua atenção aos mecanismos de circularidade e recursividade, onde uma unidade entra em relação consigo mesma podendo abranger fenômenos como causalidade circular, feedback (retorno), reenvio, autorregulação, autocatálise, referência intradiscursiva, auto-observação, criação espontânea de ordem, autorreprodução, além de relações lógicas circulares envolvendo tautologias, contradições, retornos infinitos e paradoxos. Referindo-se a isto sugere ele um quadro conceitual com tipologia própria para uma ideia de autorreferência, incluindo nisto a auto-observação, a autodescrição, a auto-organização, a autorregulação, a autoprodução, a autorreprodução, e a autossubsistência. Importante frisar que na tipologia da autoprodução, ao considerar o sistema

136 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II. op. cit, p. 11.

137 TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. op. cit, p. 33. 138 Ibidem, p. 36.

jurídico, sobressai o entendimento de que não há como se aceitar a ideia do Direito ser dominado, ou estar sujeito ou mesmo regulado (“condicionado”) por sistemas alienígenas como o político, o econômico ou o social, sendo que os condicionantes daí considerados na forma como repercutem no sistema, e pelo caráter autoprodutivo deste último, haverá de produzir “novas unidades que são depois articuladas seletivamente com os elementos da sua própria estrutura” - do sistema. Há nisto, portanto, um mecanismo de seleção (seletividade) que é levado a efeito pelo próprio sistema jurídico numa providência de filtragem na acomodação daquilo que possa ser admitido, ou não, no bojo da sua conformação (morfologia) sistêmica. Como lembra oportunamente Luhmann, “só se torna direito aquilo que passa pelo filtro de um processo e através dele possa ser reconhecido”139. Assim, dados e informações de sistemas alienígenas (quer político, econômico ou social) deverão passar por um processo de filtragem quando da sua admissão envolvendo futuras unidades e elementos composicionais do sistema jurídico, na medida em que cria novas unidades e novos elementos somente “a partir das unidades já existentes, que então se tornam elementos básicos do sistema”140. Após um esforço de síntese para um alcance conceitual da autopoiesis, Teubner adiciona os aspectos da autoprodução envolvendo seus elementos, estrutura, processos, limites, identidade e imunidade do sistema, juntamente com o ciclo de autoprodução numa produção cíclica (conexão do primeiro ciclo com o segundo ciclo para a condição da própria produção, que pode ser caracterizado como um hiperciclo) no sentido de se alimentar a si mesmo, e que com isso implica na sua automanutenção. Em seguida o autor apresenta um elenco resumido dos principais pontos, reconhecidamente caldeados, e que podemos adjuntar à realidade do sistema jurídico: “a) Autoprodução de todos os componentes do sistema; b) Automanutenção dos ciclos de autoprodução através de uma articulação hipercíclica; e c) Autodescrição como regulação da autorreprodução”141.

Registre-se que com vistas ao asseguramento da autonomia jurídica do Direito, enquanto sistema jurídico como algo próprio pela autorreprodução, oportuna é a concepção de Teubner ao fazer uma afirmação inexorável e ao mesmo tempo categórica neste sentido, e que como forma de sustentação de algo caro para a identidade do Direito merece ser trazida à colação. Para isto há que se atinar em primeiro momento para o fato de que a autopoiese

jurídica - diferentemente da autopoiese biológica - comparece como dotada de propriedades

139 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II. op. cit, p. 19.

140 TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. op. cit, p. 47. 141 Ibidem, p. 38 - 52.

apenas dela - próprias -, ao que ele denomina de “círculos autorreferenciais novos e de diferente tipo”, comprometidas na produção de elementos que não se restringem à ideia de uma comunicação jurídica apenas - como podemos encontrar em Luhmann -, mas a todos os elementos pertencentes ao sistema como sejam as estruturas, os processos, os limites, a própria identidade jurídica, as funções, e também as prestações, etc , onde as agentes jurídicos haverão de desempenhar tanto um papel na construção semântica do sistema jurídico, como também um papel em assegurar a este último uma autopoiese eminentemente do próprio meio jurídico (sistema jurídico). E esta autopoiese jurídica, como novo tipo de autonomia jurídica, acontece em função da “constituição de relações circulares” onde, se houver interdependência entre sistema jurídico e sistema social, esta interdependência haverá de se submeter a uma nova forma de interpretação envolvendo as influências externas. Ademais, as relações circulares culminarão na condição de um hiperciclo, consumando daí a autonomia pela autopoiese jurídica, o que acontece quando os componentes do sistema jurídico se articulam numa composição entre eles mesmos142, o que possibilitará a existência de uma clausura no Direito mediante a constituição dos seus próprios elementos. Para isto é fundamental ainda uma compreensão diferenciadora no fenômeno onde se possa distinguir auto-observação,

autoconstituição e autorreprodução, sendo que numa relação entre estes aspectos do sistema é que vai estar a chave para um reconhecimento autônomo do sistema jurídico. O resultado será o confronto com uma distinção legal/ilegal, separando com isto uma comunicação jurídica de uma mera comunicação social, em que a primeira será responsável por apresentar elementos como a sua estrutura, processos, limites, meio jurídico, identidade própria, operações próprias, etc., providenciando com isto os seus próprios componentes e conduzindo ao que Teubner chama de “círculos autorreferenciais”, os quais compreendem os atos jurídicos, as normas jurídicas, os processos jurídicos e também a dogmática jurídica, o que possibilita ao próprio Direito determinar por si próprio consequencialidades como relevância jurídica acerca de um determinado fato, validade jurídica de uma determinada norma, etc. Ademais disso, o fenômeno da autorreprodução existe quando os componentes reconhecidos como círculos autorreferenciais se apresentem de forma interligada e de forma articulada, envolvendo ato jurídico e norma jurídica, e onde processo jurídico e doutrina jurídica providenciem estas inter-relações143.

142 TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. op. cit., p. 56 e 58. 143 Ibidem, p. 68-71.

Assim, como forma de afirmação da autonomia do Direito (autonomia jurídica), comparece como fenômeno fundamental e norteador disto a feição da circularidade na produção do Direito, não se restringindo o problema a uma questão de relação causal, o que coloca em pauta o problema de uma “interação entre abertura e clausura do sistema jurídico enquanto sistema autopoiético”. Dessarte, ao se alinhavar a ideia de uma abertura isto significa apenas uma abertura cognitiva, e se restringe apenas e tão somente em relatar “significados sociais”. Diferentemente, na vocação daquilo que nos interessa, com vistas a uma autonomia do Direito e na conformidade de um sistema autorreferencial fechado, por força dos seus componentes, isto se resolve mediante uma integração normativa. E isto acontece porque “o conteúdo normativo dos elementos integrados é produzido dentro do próprio sistema por intermédio de normas constitutivas de referência”, e por isso restando sempre às possíveis “incursões sociais” uma sujeição ao mecanismo da “reformulação jurídica”144. Daí que, e a partir daí, o jurídico não será mais apenas o social (sociológico) e com ele deixando de se confundir.