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SISTEMA JURÍDICO E MODALIDADES VALORATIVAS JURÍDICAS: JUSTIÇA,

E DEFINITIVIDADE NAS SOLUÇÕES JURÍDICAS

Tivemos a oportunidade de considerar em linhas pretéritas como a noção de unidade deve compor e acompanhar a própria ideia de Direito (tópico 3.1.1), uma constatação que providencia também a visão que devemos ter acerca da ideia de Sistema Jurídico. Isto é algo indispensável numa tratativa de afirmação científica do Direito porque se quisermos reconhecer uma metodologia nele é fundamental tratar com o fato de que uma metodologia jurídica deve funcionar, nos seus postulados, com a existência de uma unidade. Esta unidade responsável por uma significação global, tem como componentes na sua metodologia algo que não é desprovido de valor ou de valores215. Com a unidade, os valores, mesmo que singulares, estarão conexos. Dessarte, o papel dos valores é algo que deve ser considerado no que compete à unidade, com um desengate na própria metodologia compreensiva do Direito enquanto fenômeno na dimensão positiva. Com uma constatação assim, ao mesmo tempo em que do sistema jurídico é possível se extrair uma unidade no Direito (ordem jurídica), conforme procuramos demonstrar nos tópicos anteriores, também dele se extrai uma realização quanto a uma “adequação valorativa” na vida intestina da ordem jurídica216.

214 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. 3. ed. Trad. de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

Prefácio, p. 586.

215 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. op. cit,

p. 16.

Com a adequação valorativa se reconhece a presença das modalidades valorativas jurídicas em espécie, que comparecem como vigas de sustentação da ordem jurídica. É que, como ensina Canaris, tanto a ordem interior como a unidade do Direito, antes mesmo de qualquer outra providência, elas pertencem a “exigências ético-jurídicas” como é, por exemplo, a ideia de justiça, a qual comparece no entendimento deste jusfilósofo como um pressuposto tanto para a função legislativa como para a função jurisdicional, e no sentido de buscar tratar o igual como igual e o desigual como desigual, tendo neste último caso a medida da desigualdade. Para isto, e segundo ele, os agentes haverão de agir “com adequação”. E esta adequação, ainda segundo Canaris, acontece de forma racional no sistema, cuja regra de adequação valorativa pelo princípio da igualdade, “constitui a primeira indicação decisiva para a aplicação do pensamento sistemático na Ciência do Direito”217. Esta abrangência dos valores no interior do sistema, como modalidades valorativas destacadas, não passou despercebida também para o jusfilósofo espanhol Jose Luis Villar Palasi. Para Palasi o sistema jurídico é uma construção de princípios e normas que emerge do modo de se observar a realidade, numa inter-relação unitária de conjunto, e culminando numa estrutura ordenada em cuja base dos seus princípios próprios estão valores como justiça, segurança e igualdade218.

Assim, com a ideia de justiça verificamos uma motivação valorativa, motivação esta que não fora estranha já no passado longínquo quando da caracterização das virtudes maiores, conforme se percebe com os filósofos gregos Platão (427 - 347) e Aristóteles (384 - 322). Com Platão a justiça constitui algo personificado pela divindade, sendo que o deus ao conduzir-se para a sua meta, nisto acompanha-o sempre a justiça219. Aristóteles por seu turno procurou tratar a ideia de justiça por duas naturezas básicas, ou seja, a justiça distributiva e a justiça comutativa, sendo que no primeiro caso verifica-se uma distribuição das honrarias e recursos observando-se igualdade e desigualdade, enquanto que no segundo caso verifica-se uma correção de adequação nas transações entre as pessoas220. O que motiva estas preocupações são razões valorativas, algo que enseja um desengate no mundo jurídico, e por isso não haverá de passar de forma indiferente ao sistema jurídico, o qual, pelo seu acerto racional providencia não só o processo da sua assunção, mas também o processo da sua

217 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. op.

cit., p. p. 18 - 19.

218 PALASI, Jose Luis Villar. La Interpretacion y los Apotegmas Juridico-Logicos. Op. cit, p. 47 - 48. 219 PLATÃO. As Leis. op. cit, p. 189.

aplicação, uma providência que em ambos os casos tende para uma generalização no Direito. Dessarte, se não devemos confundir a ideia de Direito com a ideia de justiça - esta enquanto um valor -, sobretudo numa dimensão de positivação jurídica, não podemos, todavia, deixar de reconhecer o fato de que em determinado momento eles se tocam. É que a ideia de justiça está no campo da valoração, enquanto que o Direito está no campo da normatização (dos preceitos lógicos). Compete à primeira servir de inspiração ao segundo que aceitará, ou não, o que se lhe inspira, não se deixando de lado o fato que o caráter ontológico do Direito tem a ver com sua realidade normativa, enquanto Direito posto. Neste contexto a justiça como um valor ou um princípio atua como uma ancila ao Direito, e adquire relevância jurídica apenas porque vai ao encontro à essência ou à função do Direito221, uma realidade que se concretiza na ideia do justo legal conforme procuramos retratar anteriormente. Assim, a justiça enquanto um valor inspira o Direito, e este por seu turno caminha na liberalidade quanto à assunção dos seus pressupostos. Ao final prevalecerá a ideia de justiça naquilo que o Direito manifestar como algo posto. Nisto é o sistema jurídico que desempenha a função relevante para a condução do processo de materialização e mesmo de legitimação do papel da justiça.

Quando verificamos o sistema jurídico, ao lado da ideia de justiça como um valor é fundamental também a ideia de segurança, uma providência valorativa que promana do Direito na sua significação plena, e que nisto se afirma como segurança jurídica. Pode-se dizer que numa abordagem formal a segurança jurídica domina no sistema jurídico, pela importância que desempenha como uma extensão da vontade do poder público222. Um Direito que não se fundamenta na ideia de segurança aos direcionados da norma jurídica tem vício de origem já na sua motivação valorativa. Presumivelmente o que alimenta a existência do Direito como um ente próprio na sua configuração ontológica é o fato de que dele extraímos segurança aos indivíduos. Neste contexto, segurança é um valor que se afirma como um valor jurídico, algo que comparece como precioso e que é perseguido na consciência das pessoas, algo que compete ao Direito preservar como razão etiológica, sob pena de não o fazendo o Direito anular-se numa contrariedade lógica. É que inexiste Direito sem um compromisso neste sentido. Neste fenômeno, ao mesmo tempo em que assistimos a ocorrência de uma etiologia jurídica, assistimos também a ocorrência de uma teleologia jurídica. Assim, se a segurança jurídica enquanto um valor é motivo para a existência do Direito, também ela torna-se objeto da sua missão em concretizá-la. Esta circularidade convive no sistema

221 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. op. cit, p. 223. 222 BERGEL, Jean-Louis. Teoria Geral do Direito. op. cit, p. XXV.

jurídico, e onde os mecanismos na sua aplicação prática providenciam meios para a sua concretização. Daí porque, se procuramos em um momento compreender didaticamente o Direito nos seus ramos jurídicos subdividindo-os - Direito Público com seus sub-ramos e Direito Privado com seus sub-ramos -, isto não se verifica quando de uma prática aplicativa, face a realidade do Direito como uma ordem jurídica dando-o de forma una e indivisível. É que, neste último caso, sempre que uma situação de conflito pede uma solução jurídica, todos os seus ramos colocam-se concomitante e imediatamente à disposição para uma solução do problema. E isto acontece em razão da ideia em se providenciar um estado de segurança. Este valor na sua aplicação pragmática é levado a efeito mediante um critério teleológico- finalístico, com vistas à sua aplicabilidade jurídica. Pode-se dizer que a segurança jurídica transcende de um valor jurídico para se colocar por trás e na afirmação de todo o sistema jurídico, o qual, num processo lógico haverá de também atuar no sentido da sua preservação. E ela só existirá se o sistema jurídico exercer o papel de dizer o que é Direito e o que não é Direito de forma independente do que se considera como estrato social ou oportunidade política223. Sem segurança jurídica o Direito não existe como Direito. O Direito seria um nada, visto que uma eficácia niilista neste caso seria determinante para a própria inexistência das regras jurídicas. Isto é perfeitamente percebível no sistema jurídico através de mecanismos como prescrição, decadência, observância das regras no período da sua vigência, etc., manifestações que indicam a necessidade de uma estabilidade jurídica no Direito, esta que tem no seu pressuposto uma valoração de segurança jurídica. Com isto a segurança jurídica traz consequências positivas porque não só previne a previsibilidade para a prática dos atos jurídicos em geral, mas também porque propicia a estabilidade jurídica nas providências de caráter jurídico na generalidade.

Com a previsibilidade jurídica sobressai o próprio fundamento de obrigatoriedade do Direito mediante a sua prévia informação aos direcionados, e donde se verifica o princípio basilar de que ninguém pode se escusar de cumprir a lei alegando a sua ignorância (nemo jus

ignorare censetur). Com relação à sua estabilidade, o Direito motivado pela ideia de segurança jurídica como um valor (jurídico) estabelece regime jurídico no qual comparece, como viga básica de sustentação (estabilidade) do ordenamento, mecanismos de cautela através dos quais a lei nova não pode prejudicar formas jurídicas como o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e o direito adquirido. Disto verifica-se outra consequencialidade específica. Aquela que está relacionada com a definitividade das soluções jurídicas, estas que não podem

se perder no labirinto de um nada existencial. A ausência da definitividade das soluções jurídicas seria a presença e a constatação da inexistência do Direito na vida das pessoas. Haveria com isto uma contrariedade lógica como um golpe de morte na ontologia jurídica. O entendimento disto não pode ser diferente como nos comprova o instituto da coisa julgada, um mecanismo de essência na caracterização do Direito como um ente que se afirma perante os demais entes na ordem existencial. Com a definitividade das soluções jurídicas percebe-se o sintoma de que o Direito existe, e com ela se extrai uma afirmação valorativa na qual se pede a presença do Estado como forma de racionalizar as soluções. E não há como se fugir disto, visto que se assim não for é o mesmo que retornarmos ao período da vingança privada ou da vingança pública224, num verdadeiro exercício de desvalor jurídico no Direito perante aquilo que já se conquistou na história do pensamento jurídico. A segurança jurídica como um valor (jurídico) está por trás disto tudo.

Uma anunciação das modalidades valorativas jurídicas no sistema jurídico nos coloca de conformidade com a constatação de que a conexão deles propicia a ordenação do Direito Positivo em um sistema. Com isto se providencia afastar tanto a desconexão como também a contradição entre as normas do sistema, e onde o pensamento sistemático se afirma na convicção do Direito “como o conjunto de valores jurídicos mais elevados”225. Com isto sobressai a função do sistema jurídico no sentido de respaldar tanto a adequação valorativa como também a unidade interior da ordem jurídica, ao lado de propiciar uma justificação dos valores jurídicos mais elevados numa consequencialidade onde a experiência jurídica culmina por registrar e manifestar positivamente múltiplas formas reconhecidas como Direitos Fundamentais. Isto é o que plasma de forma sedimentada na índole do Positivismo Jurídico, com uma circularidade do pensamento jurídico sistemático. Por sua vez os argumentos sistemáticos, ao assumirem o perfil do pensamento jurídico sistemático numa dimensão positivista para uma afirmação do Direito, haverão de apresentar, conforme lembra de forma proficiente Claus-Wilhelm Canaris, “apenas a ideia final dos valores da lei, dirigida ao princípio da igualdade” porque “recebeu, simultaneamente, o seu poder convincente da autoridade do Direito positivo e da dignidade da regra da justiça (formal)”. E isto se impõe ainda mais na medida em que “a solução conforme com o sistema é, assim, na dúvida, não só a que vincula de lege lata, mas sendo também de aceitar como a que se justifica sob o império

224 ORRUTEA, Rogério Moreira Orrutea. Curso de Filosofia do Direito. op. cit, p. 242.

225 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. op. cit,

de uma determinada ordem jurídica”226. Veja-se, pois, a conexão que se verifica entre valor jurídico, lei e ordem jurídica, uma conjunção responsável por uma flagrante composição sistêmica no Direito.