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3.1 SISTEMA JURÍDICO E AUTONOMIA JURÍDICA OS ASPECTOS PONTUAIS DA

3.1.4 O Sistema Jurídico (Direito) pela sua Autointerpretação e Autoaplicação

3.1.4.1 A Interpretação

A interpretação (do latim interpretatio, onis: Expressão explicada por outra expressão) jurídica deve ser entendida como um pressuposto da aplicação jurídica. A interpretação é um instituto que visa a busca dos ocultos como forma de aclarar enunciados vagos ou ambíguos, e que por isso necessitam ser interpretados. Quando o enunciado por si só é claro dispensa-se, por obvio, a interpretação, visto que aquilo que já está claro já está definido e esclarecido, um entendimento já firmado no adágio latino in claris cessat interpretatio, sugerindo que naquilo que está claro a interpretação é dispensada e desnecessária.

Num alcance geral interpretar é providenciar esclarecer dando o sentido de um vocábulo, e também reproduzir com palavras diversas um pensamento, bem como a verdade de uma expressão, providenciando-se com isto não só a intenção mas também e por consequência a própria validade de um determinado ato. Aplicando-se esta providência interpretativa a uma norma jurídica é tentar determinar o pensamento e a intenção nela contidos para sua aplicação, e daí extrair e buscar tudo o que ela possa significar ou o que ela contém163, o que vai permitir compreender a sua função objetiva no sistema jurídico. E devemos entender desta forma em sede de Ciência Jurídica porque esta, compreendida como uma ciência empírica descreve um fato empírico, ou seja, aquilo que de conformidade com uma determinada norma é visto como obrigatório, uma obrigatoriedade atribuída por uma autoridade. A proposição constatada do seu enunciado é verificada de forma empírica, e a significação extraída do enunciado dando a ele uma significação objetiva assume o papel de uma interpretação jurídica, que podemos chamar também de interpretação no Direito. Dessarte, entre uma interpretação subjetiva por parte do agente que interpreta, e uma interpretação objetiva indicando o sentido da experiência jurídica, deve prevalecer esta última. E isto se explica porque é o tipo do texto a ser interpretado que condiciona a interpretação, tendo-se como um princípio inicial de que deve se “aceitar que aquilo que foi escrito realmente faz sentido”164. Esta prática se prende ao fato, como entende Friedrich Schleiermacher (1768 - 1834), que a interpretação levada a efeito pelo intérprete não é um processo criativo e subjetivo, visto que “todo enunciado tem uma relação dupla, com a totalidade da linguagem e com todo o pensamento de seu originador”, vinculando-se com isto

163 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 9. 164 SCHMIDT, Lawrence K. Hermenêutica. 1. ed. Trad. de Fábio Ribeiro. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 15.

a compreensão àquilo que foi manifestado na forma escrita165. Isto é o que culmina por acontecer principalmente se tratamos na dimensão do Direito Positivo onde sobressai o Direito escrito.

Entre as formas interpretativas num trabalho de hermenêutica podem ser sugestivas - como comumente acontece numa discussão doutrinária -, ao lado de uma interpretação sistêmica, também modalidades como interpretação gramatical, semiótica, lógica ou teleológica (finalista). A nossa atenção se prende a uma interpretação sistêmica com vistas ao descortino da teoria científica do Direito, numa relação direta com o sistema jurídico, o qual comparece como um canal imediato com o Direito Positivo e para a apresentação deste último. Portanto a interpretação sistêmica aqui é a via eleita como um método admitido como o mais apropriado na conformidade de uma vocação positivista, na medida em que é através dele que se torna possível aquilatar uma estruturação palpável do arcabouço jurídico reconhecidamente posto. E ao falarmos na ideia de uma interpretação sistêmica o conceito evolui para o reconhecimento da autointerpretação, esta que emana da própria estrutura sistêmica, e onde o Direito se autoriza desenvolver uma interpretação que é só dele e mesmo que seja sobre ele. Esta autointerpretação acontece e se impõe como necessária porque diante das expectativas normativas em sociedades complexas e ricas em alternativas, reduz-se a complexidade com soluções intrínsecas ao próprio sistema pela sua seletividade (do sistema). Com isto há uma opção pela ação do sistema sem se questionar o porquê desta ação, numa providência em que há um equacionamento das subculturas com apoio no quadro jurídico dominante, do qual deriva a autointerpretação166 pautada pelo sistema jurídico. Por isso é exatamente na dimensão sistêmica que podemos enxergar fenomenicamente o ordenamento jurídico. E isto é sintomático até pelas raízes históricas da compreensão jurídica. Já quando foi possível se aquilatar uma ponta de reminiscência com vocação científica entre os romanos, sintomas da interpretação sistêmica compareceram ao se admitir a necessidade de se considerar as partes componentes de uma disposição legal, levando-se em consideração inclusive um princípio. O jurista romano culminaria por afirmar neste contexto, e de forma categórica, que num trabalho interpretativo “não é conveniente julgar ou mesmo responder com base em uma pequena parte proposta da lei, não tendo sido examinada toda a lei”167.

165 SCHMIDT, Lawrence K. Hermenêutica. 1. ed. Trad. de Fábio Ribeiro. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 26 - 27. 166 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. op. cit, p. 141 - 142.

167 JUSTINIANO, Digesto, Livro Primeiro, 2, 1, e Livro Primeiro, 3, 24. 7. ed. Trad. de Hélcio Maciel França

Uma exegese assim, mesmo que longínqua, mas que se aponta uma visão de conjunto, indica o papel do sistema na interpretação.

A pergunta que devemos fazer é como conduzir a interpretação sistêmica para que se tenha satisfatoriamente a interpretação jurídica? Como afirmamos anteriormente ela não se confunde com a interpretação gramatical, lógica ou teleológica. Para isto ela deve corresponder aos arranjos e aos fatores que são próprios e funcionais de uma organização sistêmica. Neste caso é salutar lembrar como critério inicial aquilo que Lawrence Schmidt denomina de “círculo hermenêutico”, onde “as partes só podem ser compreendidas a partir de uma compreensão do todo”, ao mesmo tempo em que “o todo só pode ser compreendido a partir de uma compreensão das partes”168, numa demonstração lúcida de circularidade compreensiva e que é imanente à organização sistêmica. Ao lado disto é salutar considerar também que a expressão deve se apartar do uso comum, para que ela apresente o verdadeiro sentido da norma ou do texto preservando-os, e sem modificá-los169, e com isto seguir na conformidade daquilo que o sistema jurídico compreende e sugere. Com esses cuidados comparecem os primeiros condicionantes da sua função interpretativa. Mas registre-se que embora a interpretação sistêmica seja possuidora de um perfil próprio pelos recursos que apresenta, isto não significa todavia que em vários momentos e oportunidades da sua avaliação não leve em consideração também informações oriundas de uma prática gramatical, lógica ou mesmo teleológica. Circunstancialmente estes mecanismos também poderão comparecer. Não há como excluí-los de todo sob uma prática exclusivista, visto que ao lado de se reconhecer aqui uma teoria argumentativa (gramatical e lógica), também as suas conclusões haverão de atingir a uma finalidade (teleologia).

Para corresponder aos arranjos que são próprios da interpretação sistêmica, cuida-se num primeiro momento em se considerar entre as normas jurídicas, juntamente com os institutos ou modelos jurídicos, uma justaposição tanto de coordenação - esta que podemos denominar também de uma relação horizontal -, como de subordinação - esta que podemos denominar também de relação vertical. Dessarte, os elementos da interpretação, porque esta obedece a uma organização sistêmica, deverão ser considerados tanto por um processo de coordenação como por um processo de subordinação.

168 SCHMIDT, Lawrence K. Hermenêutica. op. cit, p. 16.

169 ALCHOURRÓN, Carlos E.; BULYGIN, Eugenio. El Lenguaje Del Derecho - Definiciones Y Normas. 1.

No primeiro caso - coordenação -, ainda sem se estabelecer uma relação de subordinação hierárquica, tanto as normas jurídicas como os institutos do sistema serão colocados lado a lado de forma interativa ente eles, ao mesmo tempo em que são preservados também cada um deles naquilo que são identificados. Neste caso é sintomático se perceber no sistema jurídico algo que constitui uma área própria pertencente a cada um deles na composição geral. É que eles são partes do sistema, mas também exercem o papel de compor o sistema. A isto podemos reconhecer um princípio basilar que é o princípio de reserva institucional. Não há como se descuidar disto quando da interpretação. No mecanismo da coordenação uma norma individualizada (e não isolada) influencia no sistema, mas dele também recebe influência. Assim as menores particularidades haverão de se equacionar com as maiores particularidades o que redunda no caráter coletivo oriundo do sistema. Por isso um artigo de lei não será de forma alguma interpretado de forma isolada dos demais, ou isolado do contexto global imposto pelo sistema. Para se ter uma noção disto basta lembrar, por exemplo, o fato de que se vamos procurar compreender a ideia de um contrato específico como um contrato de locação, venda ou permuta, devemos fazer disto uma inserção no campo das obrigações, além de uma sucessão recorrente de ordem sistêmica caso isto seja necessário.

No segundo caso - subordinação - a interpretação dentro do sistema impõe uma observância a um critério de hierarquia que deverá ser observada entre normas e entre institutos jurídicos. As normas de escalão superior haverão de estabelecer uma observância às normas de escalão inferior. Assim, no campo das normas gerais a expedição da lei observa a Constituição, e no campo das normas individuais (decisão judicial e decisão administrativa) devem estas observar a Constituição e as leis.

Num caldeamento geral pela justaposição que se verifica do arranjo causado pela coordenação e pela subordinação sobressaem sintomas típicos da organização sistêmica, que deverão ser considerados quando da interpretação. Por isso os órgãos com as suas funções diversas, embora reconhecidos com certa autonomia, não existem totalmente separados, operando-se coordenados, e onde um é conhecido e reconhecido, e daí conhecendo-se e compreendendo-se os outros, concorrendo para isto não só um recurso comparativo, mas também uma verificação e constatação de interdependência recíproca. Por isso a interpretação sistemática deixa perceber o Direito não como um ajuntamento caótica de preceitos, mas sob uma unidade em que ele é entendido como um “conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio”170. Na

concretização do procedimento interpretativo é peculiar proceder-se mediante a confrontação entre os preceitos e prescrições positivas que irão fundamentar a relação de origem justificadora da validade das normas, e onde será detectado um nexo entre o que é oriundo do geral para fundamentar o particular, e cujo resultado é um trabalho de síntese171. Nesta avalanche interpretativa leva-se em consideração os preceitos, as normas nos seus alcances extensivos - e também contidas nas exceções -, os institutos jurídicos, os princípios gerais e os princípios especiais. Nisto tudo se verifica e se constata a positivação pelo sistema. Ademais disso, registre-se que numa interpretação convencional que emana do sistema jurídico com uma separação entre a lei genérica e a regulamentação concreta, a participação dos órgãos atuantes acontece mediante decisões - sobre o mesmo Direito - através das quais no primeiro caso o legislador constrói o Direito enquanto que no segundo caso o julgador age na sua aplicação.172