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O DIREITO COMO ORDENAMENTO JURÍDICO OU NORMA JURÍDICA, E O

O Direito considerado como ordenamento jurídico, ou mesmo como norma jurídica apenas, não é algo neutro do ponto de vista valorativo, visto que, como já comentamos alhures, os seus enunciados são portadores de mensagens valorativas. Afora o seu caráter imperativo a norma jurídica é reconhecida também como referencial ou padrão de avaliação das condutas, o que implica numa medida de valor. Como comenta de forma oportuna Joseph Raz, “uma norma serve como um padrão direto de avaliação dos atos apenas dentro de seu alcance imediato”. Assim, se o ato for praticado de conformidade com o alcance da norma este ato tem um valor positivo, e em sentido contrário este ato tem um valor negativo227. Mas a despeito desta consequencialidade, e neste contexto da compreensão, não devemos confundir estes dois entes. Pode-se dizer que a norma enquanto autoridade normativa que preserva uma obrigação ou um dever, remete ambos a um valor. Por isso Ruwen Ogien listou aproximadamente onze critérios para distinguir normas e valores, entre os quais compensa lembrar o critério avaliativo-deontológico. Por este critério os juízos de valor se utilizam de predicados de apreciação ou de depreciação, enquanto que os enunciados das normas se utilizam de elaborações deontológicas (obrigatório, permitido, proibido)228 conforme os modais já comentados no tópico 3.1.1.4.

227 RAZ, Joseph. O Conceito de Sistema Jurídico. 1. ed. Trad. de Maria Cecília Almeida. São Paulo: Martins

Fontes, 2012, p. 164 - 165.

Toda norma jurídica é composta por um discurso, cuja substancialidade é no sentido de preservar determinado valor, embora não devamos confundir o caráter ontológico da norma com o caráter ontológico do valor. A primeira - norma - enquanto uma manifestação de poder significa a existência de uma autoridade, na medida em que, como uma imanência de um determinado órgão com competência para expedi-la o faz no sentido de concretizar um comando ou um direcionamento para a conduta das pessoas. Já o segundo - valor - é um referencial legitimado como valioso, e que é recomendado aos direcionados do Direito para ser sempre seguido. No intercâmbio entre os dois entes, o valor conta com a autoridade da norma da qual se utiliza, mas a recíproca não é no mesmo sentido. Assim, a norma não é o mesmo que valor, podendo subsistir por si mesma, mas afasta a sua neutralidade no sentido valorativo na medida em que assume determinado valor no seu enunciado. Por isso não podemos afirmar categoricamente que uma norma jurídica seja neutra do ponto de vista valorativo. Tanto isto é verdade que nos apontamentos de jusfilósofos como Hans Kelsen e Norberto Bobbio - conforme procuramos demonstrar acima (tópico 4.2.1) -, e pelo significado da norma na vida das pessoas, sobressaem preocupações teóricas no sentido de compreender o papel da eficácia normativa para o processo de sustentação da própria norma jurídica. Para o reconhecimento da eficácia da norma (efetividade), deve esta última ser focalizada por dois aspectos fundamentais. Um aspecto interno que consiste na motivação da sua observância ou aplicação (as pessoas reconhecem reciprocamente algo como norma), e um aspecto externo que consiste na regularidade da sua observação (o comportamento observável)229. Isto é um indicativo da presença valorativa no enunciado da norma. E o critério para o reconhecimento do valor na norma neste caso, e que podemos considerar no âmbito da teoria científica do Direito, é o reconhecimento da existência de sanção acompanhando a norma, tanto pelo seu cumprimento como pelo seu descumprimento. Em caso de cumprimento temos uma sanção positiva, e em caso de descumprimento temos uma sanção negativa.

Registre-se que a ausência de neutralidade normativa merece ser considerada ainda mais na medida em que compreendemos o Direito como um ente do mundo do dever ser e não um ente do mundo do ser, o que afasta o seu caráter neutro por desejar que uma conduta previamente estabelecida seja de determinada forma e não de outra. Por significar um ente de dever ser a norma jurídica assume o papel de um referencial valorativo para ser seguido, embora contando com a possibilidade de um descumprimento da norma, mas com as consequências daí oriundas (relação de imputação). Isto é uma demonstração da sua

229 ALEXI, Robert. Conceito e Validade do Direito. 1. ed. Trad. de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São

significação como referência, uma referência que segue para uma imposição, e onde o valor até então dotado de um caráter passivo, assume a partir daí um caráter ativo-impositivo. Isto é sugestivo como modelo jurídico na medida em que é possível compreender a ausência de neutralidade da norma em função de um juízo de valor que podemos compreender a partir de uma norma jurídica. Este comprometimento da norma jurídica com o valor não escapou à percepção do jusfilósofo neokantiano Emil Lask (1875 - 1915), da Escola de Baden, ao afirmar que ela torna-se forma, ou material formal da significação jurídica - constituindo-se no objeto da Ciência Jurídica -, e por isso pertencendo não à esfera do ser, mas à “esfera do valer”. É que a significação jurídica - que implica no Direito como um sistema de significações normativas -, segundo o mesmo jusfilósofo, “vale” em direção ao aspecto material ao qual a norma adere230.

Então, se é possível extrair um juízo de valor a partir da norma jurídica não há como se afirmar da sua neutralidade valorativa. E quem explica com suficiência esta questão é Hans Kelsen ao identificar um juízo de valor com base na norma. Segundo ele, “o juízo segundo o qual uma conduta real é tal como deve ser, de acordo com uma norma objetivamente válida, é um juízo de valor, e, neste caso, um juízo de valor positivo”231. Esta compreensão é dirigida para a interpretação da conduta real, ou do fato concreto da conduta, mas o seu ponto de partida não descuida da tipologia hipotética previamente estabelecida pela norma. Neste processo, onde o balanceamento da conduta acontece em função de um juízo de valor emanado da referência da norma jurídica positiva, verifica-se a possibilidade de se caracterizar a conduta real tanto de forma negativa ou má como de forma positiva ou boa. Com isto valora-se o valor da própria conduta real. É que, a norma funcionando como medida de valor, e com base nela (norma), “a conduta que corresponde à norma tem um valor positivo”, enquanto que “a conduta que contraria a norma tem um valor negativo”232. E este papel valorativo da norma se afirma ainda mais na medida em que é possível se distinguir

juízo de valor de juízo de realidade. No primeiro caso - juízo de valor - nós o encontramos no mundo do dever ser, como algo eleito para ser próprio do mundo normativo, enquanto que no segundo caso - juízo de realidade - nós o encontramos no mundo do ser, “como algo que

230 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Conceito de Sistema no Direito. op. cit. 144 - 145. 231 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. op. cit., p. 37.

é”233. Ademais, a norma enquanto fundamento dos juízos de valor, ela acontece como manifestação da vontade humana, cujos valores postos são tidos como arbitrários234.

Essa dimensão da norma em propiciar um juízo de valor, sem se anular ou mesmo afastar o seu caráter imperativo, não escapou também à apreciação do jusfilósofo italiano Norberto Bobbio (1909 - 2004). Para Bobbio o fenômeno jurídico enquanto experiência jurídica no seu contexto geral deve ser compreendido por três critérios básicos e que são critérios de valoração, visto que, segundo ele, “toda norma jurídica pode ser submetida a três valorações distintas, e que estas valorações são independentes umas das outras”. Para isto ele considera uma valoração pela ideia de justiça, uma valoração pela ideia de validade e uma valoração pela ideia de eficácia. No primeiro caso é verificar uma correspondência da norma com os valores que inspiram um determinado ordenamento jurídico. No segundo caso é considerar a existência de uma regra jurídica através de certas operações para este fim, e daí culminando por pertencer a um determinado sistema. No terceiro caso é considerar se a norma é seguida ou não pelas pessoas a quem a norma é dirigida. Por estes três critérios que o jusfilósofo italiano reconhece como três formas de valores distintos e independentes para um alcance composicional do Direito, a experiência jurídica se completa através de “ideais de justiça a realizar, instituições normativas para realizá-los”, juntamente com “ações e reações dos homens frente àqueles ideais e a estas instituições”235. Após lembrar a posição da teoria anti-imperativista no sentido de reconhecer as normas jurídicas como juízos de valor, ou como juízos de valoração, ou mesmo como valorações, ou seja, o ordenamento jurídico como “um conjunto de juízos de valor jurídico”, Bobbio admite a dimensão normativa como proposição prescritiva, onde um juízo de valor se explica pela consequência jurídica surgida com a obrigação. Segundo ele, com a obrigação o fato, como condição, é valorado através da norma. Assim, “dizer que certos fatos têm certas consequências jurídicas significa reconhecer que certos comportamentos, mais do que outros, são obrigatórios enquanto são prescritos”236. Nisto reside um juízo de valor que é extraído da norma positiva, sendo que nesta convivência dual há uma conformidade tranquila entre ambos porque na teoria da norma, embora considerando esta enquanto juízo de valor, todavia com este entendimento não retirou da norma a sua condição de um imperativo237.

233 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. op. cit. 234 Ibidem, p. 39.

235 BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. op. cit, p. 45 - 47; 53-54. 236 Ibidem, p. 140 - 141.

É oportuno lembrar ainda que na linha de Hans Kelsen, segundo a interpretação de Joseph Raz, ao buscarmos a natureza das normas - em especial as normas jurídicas positivas - com vistas a um padrão de valoração, sobressai a ideia no sentido de não só regulamentar, mas também justificar as condutas, e neste caso reconhecidas as normas como imperativas, sendo elas em razão disso pautadas por quatro ideias principais, quais sejam, que são padrões de avaliação, que regulam a conduta humana, que são amparadas por razões convencionais, e que são criadas por atos humanos238. Sobretudo por causa dos dois derradeiros aspectos pontuais apontados, e de conformidade com Kelsen, são três as consequentes constatações fundamentais, quais sejam, a existência de “normas, padrões de valoração e regulação de conduta”239. A isto adjunta-se ainda o fato de que “para que um padrão de valoração exista, ele deve ser substanciado, isto é, deve haver uma razão convencional”240, e daí a opção da norma por uma determinada conduta diante de outras formas de conduta. Dessarte, o que temos é a existência da norma como um referencial de valor, o que comparece como um condicionante no próprio sistema. Em suma, não se pode afirmar categoricamente que um juízo de valor jurídico não seja uma decorrência do ordenamento jurídico. Por isso devemos nos acostumar com a ideia de que o ordenamento jurídico se constitui no ponto de partida para o desfecho de avaliação valorativa, o que forceja um compromisso em pesquisar e compreender quais os valores que são efetivamente alinhavados e ao mesmo tempo abrigados nos variados e diversificados modelos de sistemas jurídicos.

Frise-se que a assunção de implicação valorativa na norma se compreende também quando se estabelece uma relação entre um objeto ou uma conduta humana, com uma finalidade (um fim), esta que num contexto geral pode assumir um caráter subjetivo ou um caráter objetivo. No caso da norma objetivamente válida o que temos é um fim objetivo, que podemos caracterizar como valor objetivo face o desejo normativo da sua realização, bem como em face da sua correspondência normativa a um fim241. O fim então é um fim objetivo, mas que pode se caracterizar também como valor objetivo, porque ambos - fim objetivo e valor objetivo - emanam da norma. Estes fatores são condicionantes da conduta, esta que numa interpretação valorativa deve ser compreendida como ordenada não porque é boa, mas que é boa em razão da ordenação que surge da norma. Com uma assertiva primacial assim, inauguradora de uma compreensão da norma como valor jurídico, dessume-se o fato de que o

238 RAZ, Joseph. O Conceito de Sistema Jurídico. op. cit, p. 153. 239 Ibidem, p. 169 - 170.

240 Ibidem, p. 167.

ordenamento normativo é um conjunto de valores, mas valores já postos e sedimentados pelo Direito conforme se verifica das suas proposições prescritivas, o que se extrai do seu sistema normativo positivo. Com esta assunção valorativa do ordenamento jurídico o Direito diz o que deve ser. Para se ter uma noção do alcance desta valoração objetiva basta atinar para a caracterização de um exercício regular de um Direito pela teleologia que este estabelece. Assim, se focalizamos a prática de uma lesão corporal com um instrumento contundente, cortante ou perfurante, esta prática é um ilícito. Diferentemente uma incisão com os mesmos instrumentos, mas com a finalidade de sanear a saúde de alguém ou mesmo durante uma prática desportiva devidamente regulamentada, esta prática deixa de ser um ilícito.