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Conforme lembramos acima, é pertinente o fato de uma existência da linguagem jurídica que emana do sistema jurídico. E isto haverá de fazer parte do mundo jurídico. Mas mesmo antes de uma compreensão da linguagem jurídica como algo setorizado, comparece já a linguagem humana. O homem, diferentemente das outras categorias animais, cria o seu mundo reconhecido como cultura humana, em cuja evolução conta como pressupostos básicos por um lado a linguagem, e por outro a formação dos conceitos, ambos relacionados253. A linguagem humana existe como uma “propriedade” dos seres humanos, os quais, através das

251 LUHMANN, Niklas. Introdução à Teoria dos Sistemas. op. cit, p. 273. 252 BERGEL, Jean-Louis. Teoria Geral do Direito. op.cit, p. 291.

253 BERTALANFFY, Ludwig Von. Teoria Geral dos Sistemas - Fundamentos, Desenvolvimento e

palavras, comunicam-se entre si manifestando o próprio pensamento254, sendo que as palavras constituem unidades da linguagem. Enquanto a linguagem indica o pensamento, as palavras por seu turno indicam parte dele, isto é, as ideias255. E no contraponto entre linguagem humana e Direito no processo de comunicação entre os homens, devemos nos advertir de início sobre uma delimitação nítida entre ambos, na medida em que a primeira trata com expectativas normativas sobre a forma correta de se escrever, falar, compreender e trocas de perspectivas, regulamentando o como dizer, enquanto que o segundo trata com expectativas sobre o comportamento das pessoas e regulamenta o que dizer256.

Advirta-se que, longe de se apresentar de forma singela como possa parecer num primeiro momento, constitui a linguagem algo complexo quando considerada do ponto de vista conceitual e lógico, no processo de comunicação que é gerada dos seus enunciados. É que a linguagem humana conta com a particularidade da atividade mental donde se constata uma intenção de manifestação. Para este processo, e segundo o linguista alemão Georg Von der Gabelentz, ela apresenta três características básicas. A primeira é ela ser dotada de um prévio propósito claro e definido para a sua manifestação; a segunda é ser dotada de uma

significação permanente para se repetir em situações similares; a terceira é providenciar uma

divisibilidade na representação envolvendo a expressão vocal257. Esta trilogia nos dá uma noção do que a sua compreensão haverá de enfrentar, desde a sua etiologia por uma vocação natural, até os meandros mais elevados da sua organização formal. Dessume-se, pois, uma certa complexidade que a envolve enquanto um fenômeno humano.

A complexidade da linguagem humana, na qual o Direito haverá de encontrar sua vereda, constitui algo que assim se denota diante da própria caminhada evolutiva que ela apresenta ao longo do tempo, desde o seu surgimento até um momento de maturidade mais avançada na sua apresentação comunicativa. Para se ter uma noção desta complexidade basta atinar para o fato das incontáveis ideias que ela procura retratar, e onde a abrangência disto haverá de significar desde os mais peculiares elementos valorativos até a idiossincrasia de um povo na sua significação coletiva. Daí porque a língua pode ser alçada à condição de símbolo nacional de uma determinada Sociedade ou de um determinado Estado. Mas devemos atinar também para os mecanismos que são utilizados pela gramática no sentido de organizar a

254 ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática Metódica da Língua Portuguesa. 46. ed. São Paulo: Saraiva,

2009, p. 17.

255 Ibidem.

256 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. op. cit, p. 120.

257 CAMARA JR., J. Mattoso. Princípios de Lingüística Geral. 4. ed. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica,

comunicação disto, num nível de acerto do ponto de vista da sua sistematização lógica. É que a gramática deve ser compreendida como o estágio mais elevado de uma língua, constituindo o processo da sua reunião e exposição metódica com princípios e normas, podendo ser caracterizada como uma ciência aplicada mediante a utilização dos conceitos da Lógica. A organização gramatical guarda similaridade com a organização jurídica. É bem verdade que a partir do seu surgimento - da linguagem - enquanto grunhidos e gestos - aqui pode-se dizer de uma linguagem corporal apenas -, ainda num momento incipiente dominado somente pelo concretismo da sensibilidade física, para depois se assumir por um mecanismo comunicativo de conceitos abstratos tão necessários ao processo civilizatório, longe foi o tempo desta sua caminhada transformadora.

Ao lado dessa constatação da linguagem num limbo de complexidade, podemos dizê- la como um enigma no processo da sua constitutividade em função de fatores geográficos, culturais, e temporais, os quais iriam envolver todos os povos, tanto com relação à linguagem falada como com relação à linguagem escrita. A consequência disso é que “cada língua encontrou e/ ou se adaptou à escrita que melhor se encaixa em sua fonologia. As escritas (...) são propositalmente modificadas por agentes humanos para melhorar a qualidade da reprodução da fala (som) e transmissão semântica (sentido)”258. Estes acertamentos objetivos para a linguagem, enquanto expressão verbal exterior, faz dela um processo de comunicação que serve a todos os incontáveis propósitos humanos, visto que as palavras são utilizadas “não somente para descrever a realidade ou informar acerca dos fatos; também são utilizadas para expressar emoções, para provocá-las e para influir na conduta”259. E se a compreendermos como um fenômeno cultural, é oportuna a definição de E. Tylor que afirma ser ela “uma criação do homem na base das suas faculdades humanas, tanto com outros produtos, quer materiais (habitação, indumentária, instrumentos de pesca etc), quer mentais (religião, direito, organização familiar etc)”260.

258 FISCHER, Steven Roger. Uma Breve História da Linguagem – Introdução à Origem das Línguas. Trad.

de Flávia Coimbra. Osasco: Novo Século, 2009, p. 135.

259 OLIVECRONA, Karl. Lenguage Jurídico y Realidad. Trad. para o Castelhano de Ernesto Garzón Valdés.

Buenos Aires: Centro Editor de América Latina S.A., 1968, p. 33.

Então, com um alcance assim amplo e geral, não podemos negligenciar e fechar os olhos para o fato de que o que temos é um indicativo da linguagem na sua abrangência também com relação ao Direito, propiciando a este o papel a ser desempenhado na sua missão jurídica. Ainda mais porque as palavras, como unidades da linguagem, possibilitam ir além da realidade na medida em que se desprendem do objeto (ou dos objetos) que lhe deu causa261. Nisto há um processo de abstração, ou seja, a possibilidade inclusive dos conceitos abstratos. O Direito por sua vez congrega e é uma resultante disto tudo, cuja abrangência é no sentido de significar conceitos concretos, mas também conceitos abstratos, sobretudo quando o enxergamos pela sua índole peculiar que é retratada mediante a ideia de dever ser. Com uma visão desta natureza temos o primeiro passo no qual é possível se estabelecer uma conexão entre linguagem humana e Direito, embora não devamos confundi-lo com uma linguagem comum conforme veremos. Com isto o que se sedimenta é a linguagem jurídica como uma linguagem objetiva. E para a caracterização disto advirta-se que no universo da linguagem podemos reconhecer duas categorias básicas de linguagem. A linguagem subjetiva e a linguagem objetiva. No primeiro caso tratamos com uma linguagem que reflete as impressões subjetivas que são manifestadas pelo sujeito, na flexibilidade que ela possa apresentar. Assim, por exemplo, temos a linguagem poética e a linguagem romanceada. A linguagem objetiva por seu turno trata com situações fora da subjetividade, e busca retratar o mundo com suas impressões e marcas de objetividade, e nesta categoria ao lado da linguagem informativa temos a linguagem jurídica. Então, numa visão geral a linguagem jurídica é uma linguagem objetiva que se verifica tanto numa construção positiva em que o Direito se apresenta (Direito Positivo), como também numa prática epistemológica envolvendo a sua explicação filosófica ou científica.

Ao procurarmos uma conexão entre linguagem humana e Direito percebe-se que ela é possível ser encontrada nas mais variadas hipóteses. Basta atinar, apenas para exemplificação, aquilo que acontece com o conceito de discrição na forma como faz Ronald Dworkin. Segundo ele, os positivistas pegaram o conceito de discrição da linguagem comum, mas para compreendê-lo na sua significação devemos colocá-lo no seu contexto originário. Como sabemos, na linguagem comum a ideia de discrição pode significar prudência, sensatez, discernimento, aspectos conceituais que bem se equacionam também com o caráter ontológico da norma jurídica. Então, da ideia de discrição comum podemos chegar à ideia de discrição jurídica. Neste último caso a discrição significa uma adequação à norma jurídica.

Daí porque Dworkin afirma ainda, já numa dimensão jurídica, que o conceito de discrição “só é adequado em único tipo de contexto: quando alguém está em geral encarregado de tomar decisões sujeitas às normas estabelecidas por uma autoridade determinada”262. Neste exemplo aqui é flagrante o fato de que a linguagem no Direito não destoa, na essência semântica sugerida pelo conceito, da linguagem comum ou ordinária. Apenas o contexto aplicativo é outro, mas que não foge do contexto originário.

Registre-se que numa preocupação filosófica com a linguagem ganham destaque duas correntes básicas. A primeira reconhecida como pensamento neopositivista, ou Positivismo Lógico, e a segunda reconhecida como Filosofia da Linguagem Ordinária.

O Neopositivismo fora oriundo da Escola de Viena, uma reunião de intelectuais para discutir problemas de Filosofia e de Ciência. Na tratativa sobre a linguagem o Círculo de Viena teve como destaque os filósofos alemães Moritz Schlick (1882 - 1936) e Rudolf Carnap (1891 - 1970). Após uma convicção empírico-positiva Moritz lembraria, quando de uma verificabilidade, a possibilidade lógica disto desde que através de uma linguagem peculiar, reconhecendo que um fato ou um processo é logicamente possível na medida em que seja descrito mediante normas da gramática que são estipuladas para a nossa língua263. Por sua vez Carnap procurou trabalhar não só a implicação de uma linguagem referente às entidades abstratas, mas também torná-la compatível com uma concepção empirista voltada para o pensamento científico264.

A Filosofia da Linguagem Ordinária contou com o filósofo Ludwig Wittgenstein (1889 - 1951), que também exercera certa influência sobre o Círculo de Viena. Mas há uma diferenciação substancial entre ambas, e no equacionamento compreensivo entre Linguagem e Direito sobressai a corrente Neopositivista. É que a Filosofia da Linguagem Ordinária prende- se a uma linguagem natural, reconhecendo-se esta como a linguagem correta (Wittgenstein). Segundo Wittgenstein a nossa linguagem “pode ser considerada como uma velha cidade: uma rede de ruelas e praças, casas novas e velhas, e casas construídas em diferentes épocas”265. Diferentemente o Neopositivismo procura a construção de uma linguagem ideal, porque,

262 DWORKIN, Ronald. Los Derechos en Serio. 1. ed. 4. reimpressão. Trad. para o Espanhol de Marta

Guastavino. Barcelona: Editorial Ariel, 1999, p. 83 - 84.

263 SCHLICK, Moritz. Sentido e Verificação. 2. ed. Trad. de Luiz João Baraúna. São Paulo: Abril Cultural,

1985, p. 92.

264 CARNAP, Rudolf. Empirismo, Semântica e Ontologia. 2. ed. Trad. de Pablo Rubén Mariconda. São Paulo:

Abril Cultural, 1985, p. 114.

265 WITTGENSTEIN, Ludwig, Investigações Filosóficas. 3. ed. Trad. de José Carlos Bruni. São Paulo: Abril

segundo entende, a linguagem comum é deficiente, necessitando “da explicitação e supressão dos seus problemas, a partir da elaboração teórica de uma linguagem logicamente perfeita”. Ao lado disso o Neopositivismo busca tratar também com “funções epistêmicas com relação às linguagens da ciência”266. Com o Neopositivismo o que temos é uma tipologia das linguagens, sendo que ao admitir a linguagem técnica ele reconhece nesta a “construção de linguagens especializadas”, nas quais podemos encontrar precisão lógica, além de enunciados proposicionais, excluindo-se da sua organização sistêmica tendências ideológicas e mesmo de emotividade267, o que efetivamente será conveniente com vistas ao desenvolvimento de uma linguagem científica para uma conformidade com o Positivismo Jurídico.

Podemos afirmar que a linguagem humana conduzida na sua compreensão pelos mecanismos de um rigorismo, como compreende o Neopositivismo, é a forma que devemos aproximar do Direito com sua linguagem jurídica, pela sua necessária organização sistêmica e compreensão lógica que devem acompanhar este último.