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Motivação Valorativa Anteposta para a (e na) Norma Jurídica, e para o (e no) Sistema

4.2 SISTEMA JURÍDICO E VALOR JURÍDICO

4.2.3 Motivação Valorativa Anteposta para a (e na) Norma Jurídica, e para o (e no) Sistema

Não podemos olvidar do fato de que tanto a norma jurídica como o sistema jurídico sejam preenchidos de um juízo de valor não só existente neles, mas que também pode ser produzido e extraído em razão deles, conforme veremos nos tópicos adiante deste nosso estudo. Para isto e como anteposto, numa acepção geral do ponto de vista normativo, devemos nos referir e lembrar que comparece primeiramente como um estímulo tanto a ideia de justiça, como também a ideia de um normativismo ético (ética normativa).

No primeiro caso - ideia de justiça - o que temos é a ideia do justo das normas ou nas normas, ao que podemos denominar de justo legal, este que não se confunde com o justo

filosófico. O justo legal é a justiça formalizada na conformidade do sistema jurídico, aquele que emana de um positivismo normativo onde a norma positiva deve ser compreendida como o balanceamento dos condicionantes para a sua existência, ou seja, daqueles componentes objetivos que a experiência jurídica permite e retrata. O justo legal não foge desta lógica.

Nesse contexto o justo é o próprio Direito, onde o justo e o Direito são a mesma coisa, podendo concretizar-se o primeiro através das regras jurídicas e das regras contratuais, afastando-se com isto a ideia de justiça como utopia201. Dessarte, pelo que determina a experiência jurídica o que sobressai é o papel da legalidade, por força dos problemas de complexidade e de contingências, os quais necessitam de uma resolução202. Já o justo filosófico é aquele que numa discussão filosófica ele chama para si a pertinência de que algo é justo ou não, numa tratativa de natureza crítica inclusive para questionar a própria norma em aceitá-la ou não. Conforme veremos, a nossa propensão é perseguir o justo legal.

No segundo caso - ética normativa - o que temos num primeiro momento é a ideia de que as normas existem para serem cumpridas, donde se extrai a noção de dever. Assim, o mundo normativo em geral (jurídico, moral, religioso, lúdico, esportivo, etc) imbuído da ideia de que as normas existem para serem cumpridas, previne um comportamento ético, aquele que emana da norma, e que impõe um caráter quanto à sua observância. Com este comprometimento a norma jurídica, diante das demais naturezas normativas, não é diferente em relação a este comportamento ético. E isto deve ser admitido tanto na ambiência da norma jurídica em si, como na ambiência do sistema jurídico na sua composição plena enquanto arcabouço, e sempre como ética normativa.

Ao tratarmos com a ética normativa contamos ainda com o reconhecimento de componentes valorativos antepostos e admitidos como de justiça e de moralidade social, donde, no primeiro caso - justiça -, comparecem as teorias teleológicas, aquelas que julgam as ações para se chegar a uma meta ou a um fim valioso, enquanto que no segundo caso - moralidade social - podemos destacar determinadas teorias reconhecidas como teorias deontológicas, estas últimas que dão prioridade às ações que são reconhecidas como moralmente corretas por suas qualidades intrínsecas, e que por isso se tornam objeto de direitos e deveres203. É que hodiernamente a interpretação balizada pelo sistema não haverá de se restringir a um simples processo de causa e efeito, mas sim se referir a categorias morais, e onde o pensamento vai estar envolto com uma seletividade de ética prática204. Com esta provocação iniciadora, com vistas a uma motivação de valoração jurídica, queremos alinhar à ideia de ética normativa tanto o que podemos compreender por um lado como justo legal, mas

201 HERVADA, Javier. O que é o Direito? - A Moderna Resposta do Realismo Jurídico. 1. ed. Trad. de

Sandra Martha Dolinsky. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 11 – 12.

202 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. op. cit, p. 170.

203 NINO, Carlos Santiago. Introdução à Análise do Direito. 1. ed. Trad. de Elza Maria Gasparotto. São Paulo:

Martins Fontes, 2010, p. 451.

também e por outro o que podemos compreender como moralidade social, ao mesmo tempo em que compreendemos a vinculação de ambos à ideia de dever. Isto nos ditames do que propiciam as teorias deontológicas, ou seja, uma vinculação de um ponto de vista valorativo - e em ambos os casos, justo legal e moralidade social -, àquilo que podemos extrair da ideia de dever, mais precisamente no que diz respeito ao mundo do dever ser, sem se inquietar metodologicamente com o mundo do ser. Nesta providência devemos nos advertir que não podemos confundir o ôntico, o ontológico e o deontológico. O ôntico é o ente (ou ser) em si, independentemente de uma função exercida em determinado momento. O ontológico é este ente com um papel ou uma função atribuída pela lógica humana. O deontológico, superando as duas fases anteriores, é algo que está ligado à ideia de dever ser.

No alinhamento a uma ética normativa, com vistas a uma vinculação à ideia de dever ser e como motivação filosófica, sobressai da Filosofia Geral ou Pura - com consequencialidades jurídicas - a doutrina de Immanuel Kant (1724 - 1804). Isto para um alcance deontológico e ao mesmo tempo com um arranjo de caráter formal (formalista), sempre no sentido do cumprimento de um dever.

A vocação formalista de Kant de um modo geral comparece tanto na explicação acerca do que possa constituir o conhecimento, este que passa pela filtragem que emana das categorias do intelecto (Crítica da Razão Pura), como na própria explicação caracterizadora do que seja algo moral, sedimentando neste último caso uma vinculação à ideia de dever. Para Kant, compreender o que seja moral, com desengate no compromisso de um dever, passa por um critério formal que ele denomina de imperativo categórico. O imperativo categórico, por ser categórico, é diferente de um imperativo hipotético, e por isso não está ligado a casuísmos na condição de condicionantes do que seja moral ou não, ou seja, com vinculação a peculiaridades ou motivações circunstanciais. Trata-se de um imperativo que é único e que estabelece um recurso formal, o qual deverá ser observado para toda e qualquer situação, esta que de acordo com sua conformidade formal será moral ou não será moral. Pode-se dizer que o imperativo categórico seja a medida para todas as coisas. Assim ele é retratado pelo filósofo alemão: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”205. Há neste critério, e ao mesmo tempo, duas consequências básicas. A primeira é um estado de dever, e a segunda é que no cumprimento deste dever se realiza o que seja moral, excluindo o que não é. Ademais, neste último caso a sua caracterização está em função de um caráter universalizável na conformidade com o que é pertinente com a condição

205 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. 2 ed. Trad. de Paulo Quintela. São Paulo:

humana, ou seja, algo que diz respeito ao ser humano em geral com observância à universalidade das leis. Daí porque o filósofo condena a prática do suicídio visto que isto acontece numa contrariedade lógica com a natureza humana, e neste caso o que se caracteriza é uma conduta contrária ao dever206. Assim, a moralidade das ações para Kant vincula-se a um dever, um dever universalizável. Como ele mesmo diz: “Temos que poder querer que uma máxima da nossa ação se transforme em lei universal: é este o cânone pelo qual a julgamos moralmente em geral”207. Então, dever e moralidade caminham juntos, onde o moral está numa dependência do dever. O algo moral neste caso parte de um recurso formal para dirimir se este algo é moral ou não. A sua origem obedece a uma construção de natureza formal, e não de natureza material. Logo, a situação se condiciona à formalidade e não o contrário.

Um sequenciamento do justo legal e da moralidade social pode encontrar eco também no formalismo de John Rawls (1921 - 2002). Neste desiderato Rawls segue a linha de Kant, este que comparece como seu antecessor intelectual com vistas a uma prioridade do justo sobre o bem208. Por isso, como ele mesmo diz, a sua teoria é “de natureza fortemente kantiana”, sem qualquer pretensão de originalidade209. Nesse contexto a sua vocação pende para uma concepção contratualista donde podemos divisar já um formalismo, e no qual a justiça enxergada como a primeira virtude das instituições sociais, é concebida por ele numa concepção razoável como “um sistema fechado, isolado das outras sociedades”210. Há quanto à justiça uma ótica exclusiva. Para isto Rawls sugere uma reunião dos homens, onde os participantes originários se comprometem com princípios dotados de condições formais como: gerais, universais, públicos, completos como ordenação às reivindicações conflitantes, e finais como instância de apelações. Ademais, existe também uma preocupação com a formulação de um contrato social dotado de princípios que componham o princípio de justiça da sociedade, onde cada pessoa deve ter um direito igual com iguais liberdades fundamentais, compatível com um sistema de liberdades para as outras pessoas, e onde as desigualdades sociais e econômicas se estabeleçam em benefício de todos. Para equacionar esta ideia de

206 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. 2 ed. Trad. de Paulo Quintela. São Paulo:

Abril Cultural, 1984, p. 130.

207 Ibidem, p. 131.

208 MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito. 1. ed. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins

Fontes: 2006, p. 468.

209 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. 3. ed. Trad. de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

Prefácio, p. XLIV.

justiça Rawls compõe um formalismo, em cuja providência ele reconhece o império da lei na conformidade de um sistema jurídico como sistema legal, a quem compete definir a justiça com regularidade, na medida em que este sistema legal comparece como “uma ordem coercitiva de normas públicas voltada para pessoas racionais, com o propósito de reger sua conduta e prover a estrutura da cooperação social”, comparecendo esta ordem como o ápice ou a autoridade última, a cujo império estão vinculados e associados os preceitos de justiça211.

A partir da ideia de sistema jurídico e sistema legal Rawls consubstancia o que ele reconhece como justiça formal. Esta, que viabiliza uma visão dos princípios da justiça social, tem como objeto a estrutura básica da sociedade bem como a organização das principais instituições sociais, sendo aqueles princípios responsáveis por reger direitos e deveres. Ademais estas instituições sociais são reconhecidas por ele como “uma forma possível de conduta expressa por um sistema de normas”, o que culmina por se efetivar como ato no pensamento e na conduta das pessoas212. No sistema e enquanto fazendo parte do sistema, aqueles princípios assumem o papel da justiça, propiciando direitos e deveres fundamentais mediante normas existentes e definidas pelas instituições. A esta administração de forma coerente das leis, Rawls chama de justiça formal, ou seja, a “adesão ao princípio ou, como dizem alguns, obediência ao sistema”. Esta observância implica em reconhecer também um Estado de Direito, cuja inobservância resulta numa forma de injustiça quando os juízes e as demais autoridades “deixam de aderir às leis e às suas interpretações apropriadas ao tomar decisões”. Daí o jusfilósofo arremata que “mesmo quando as leis e as instituições são injustas, é sempre melhor que sejam aplicadas com constância”213, onde deixa perceber que o justo deve ser compreendido como aquele que emana do sistema legal.

Não é exagero lembrar ainda de forma oportuna como a moralidade social pode e deve ser compreendida na visão de John Rawls. Na sua concepção teórica sobre a justiça os sentimentos morais merecem uma regulação na vida dos indivíduos, onde podemos divisar um papel que é atribuído pelas “condições formais impostas a princípios morais”. As raízes disto se prendem ao aspecto de uma moralidade de associação que leva em consideração o conhecimento dos padrões de justiça, onde as convicções morais, fugindo das circunstâncias acidentais, tem como fundamento aquilo que constitui a “descrição da posição original e sua

211 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. 3. ed. Trad. de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

Prefácio, p. 291 - 292.

212 Ibidem, p. 65 - 66. 213 Ibidem, p. 70 - 71.

interpretação kantiana”214. Assim, a convenção formal inicial posta pelas participantes originários será a base para uma referência de moralidade social.

Como compreendemos, a ética normativa como condicionante do jurídico não foge a essa lógica, uma lógica formalista na qual estão subsumidos tanto o justo legal como a moralidade social. O jurídico será jurídico não em função de uma peculiaridade ou situação, mas em função da abrangência formalizadora que estabelece o sistema jurídico, bem como do cumprimento a este sistema. Pela ideia de ética normativa então tanto o justo legal como a moralidade social vinculam-se ao sistema jurídico.

4.3 SISTEMA JURÍDICO E MODALIDADES VALORATIVAS JURÍDICAS: JUSTIÇA,