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O DIREITO COMO LINGUAGEM JURÍDICA E A CIÊNCIA DO DIREITO COMO

Como tivemos a oportunidade de analisar e afirmar anteriormente, o Direito não pode ser confundido com a Ciência do Direito. Esta demarcação ontológica se sedimenta ainda mais quando a tratativa se conforma com a ideia de Direito Positivo - Positivismo Jurídico. Nesta diferenciação, o Direito como um ente próprio constitui-se no objeto de apreciação da Ciência do Direito, esta que no seu discurso metodológico procura interpretá-lo e descrevê-lo. Mas ambos os contextos dimensionados e diferenciados - Direito e Ciência do Direito -, com suas peculiaridades demarcadas, haverão de apresentar também linguagens diferenciadas, porque são possuidores de linguagens próprias, embora a existência de uma nota comum para ambas envolvendo a característica do jurídico. Daí uma preocupação neste momento em se reconhecer e pormenorizar, na linguagem, o Direito como linguagem jurídica, e a Ciência do Direito como metalinguagem jurídica.

Frise-se que essa diferenciação é necessária pela providência que é levada a efeito por ambas as formas de linguagens. Aqui podemos associar também os conceitos de Bertrand Russel e de Carnap, como fizeram na linguagem geral em linguagem-objeto e em

metalinguagem276, uma noção que não escapou também à apreciação de Hans Kelsen para fins jurídicos277. Assim, com relação à primeira - linguagem jurídica - podemos reconhecê-la como uma linguagem-objeto, a forma através da qual o Direito fala e enuncia as suas prescrições conforme se verifica do sistema normativo. A segunda - metalinguagem jurídica - podemos reconhecê-la como a forma de linguagem na qual se reflete e se retrata sobre a linguagem-objeto, com vistas a sua composição lógica, conceitual e de coerência. É que com a metalinguagem jurídica se fundamenta a necessidade de uma linguagem correta. Como comenta Pierce, “a vida do pensamento e da ciência é inerente a símbolos; assim, é errôneo dizer tão-somente que uma linguagem correta é importante para um pensamento correto; é a essência dele”278.

Frise-se que diferenciar estas duas formas de linguagem é providencial porque uma coisa é a linguagem jurídica na sua função lógica prescritiva; outra coisa é a metalinguagem

276 WARAT, Luis Alberto. O Direito e Sua Linguagem. op. cit, p. 50 e 48. 277 Ibidem, p. 50.

278 PEIRCE, Charles Sanders. Escritos Coligidos - Gramática Especulativa. 3. ed. Trad. de Armando Mora

jurídica na sua função lógica descritiva. E este é o ponto de partida para uma análise e uma compreensão dessas duas formas de linguagens essenciais ao Direito, conforme veremos mais adiante.

5.5.1 A Linguagem Jurídica no Direito

Ao tratarmos o Direito enquanto linguagem - o Direito enquanto norma jurídica diferenciado-o de proposição jurídica como faz Kelsen -, reafirma-se o fato de retratá-lo como linguagem, e daí se admitir que ele é em si também uma linguagem. Para isto é necessário um transporte de uma proposição normativa para uma proposição prescritiva. Então, enquanto função lógica da linguagem, o Direito comparece como uma linguagem prescritiva. E esta função prescritiva, que é própria da linguagem normativa, “consiste em dar comandos, conselhos, recomendações, advertências, influenciar o comportamento alheio e modificá-lo, em suma, no fazer fazer”279. Veja-se que aqui não estamos tratando o Direito enquanto autoridade de comando, de mandamento ou de ordem, que emana de um poder e que é gerador de sanção ou mesmo de coerção pelo seu cumprimento ou descumprimento, mas

como linguagem, uma linguagem que é própria pela função lógica que esta última apresenta. Assim, ao tratarmos no campo da linguagem é providencial deixar claro que uma coisa é o Direito enquanto autoridade que impõe condutas com consequências no seu descumprimento, e outra coisa é o Direito enquanto linguagem que registra e descreve esta imposição de condutas. Neste caso podemos dizer que há uma imanência linguística, cuja geratriz é o Direito positivo consubstanciado na norma jurídica, esta que se revela através de uma linguagem peculiar e que denominamos de linguagem jurídica. Esta linguagem jurídica que é imposta às demais formas de linguagem pelo Direito positivo, se sobrepõe a uma linguagem comum ou geral, ou a qualquer outra forma de linguagem oriunda de outra província cognitiva, quando se trata de colocar em pauta a experiência jurídica ou os fatos jurídicos. Com a linguagem jurídica um fato comum deixa de ser um fato comum para se transmudar num fato jurídico. Com isto toda e qualquer relação jurídica é abrangida por esta forma de linguagem.

279 BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. 4. ed. Trad. de Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno

Quando da imposição de condutas, a função prescritiva da linguagem jurídica haverá de abranger todos os aspectos implicativos do Direito que emergem dos seus registros diretos, e mesmo indiretos, pelos efeitos que daí possam ser colacionados. Em concomitância a linguagem jurídica haverá de cuidar por evitar e ao mesmo tempo eliminar do seu contexto qualquer linguagem meramente descritiva, expressiva ou evocativa, ou ainda com significações de emotividade ou de sentimentos. É que as suas assertivas no seu conjunto registram uma realidade mandamental, cujo condicionante tem como componente básico a experiência jurídica, esta que irá determinar toda a função lógica que deparamos no discurso do Direito.

5.5.2 A Ciência do Direito e a Metalinguagem Jurídica

Conforme comentamos anteriormente a linguagem do Direito não é o mesmo que a linguagem da Ciência do Direito. Para a conformidade disto devemos reconhecer nesta última a condição de uma metalinguagem jurídica, na medida em que ela não se confunde com a linguagem-objeto assumida diretamente pelo sistema normativo, enquanto um sistema jurídico posto. É que não compete à linguagem-objeto desenvolver sobre ela mesma uma verificação analítica, ou mesmo especulativa com relação à sua organização sistêmica, organização lógica e ainda no plano da sua coerência, aspectos estes que devem também ser levados em consideração quando de uma avaliação cientifica acerca do objeto jurídico (Direito). Isto ficará a cargo da metalinguagem jurídica. O que faz a metalinguagem jurídica, na dimensão da Ciência, é analisar a linguagem-objeto. E isto acontece porque, mesmo que não se deseja, o que acontece é o fato de que ao se fazer Ciência Jurídica culmina-se na seara de uma metalinguagem jurídica, ou seja, uma consideração linguística que transcende à linguagem-objeto. Dessarte, se a Ciência Jurídica tem como pressuposto descrever o Direito Positivo, as suas proposições descritivas nesta missão haverão de constituir a metalinguagem jurídica.

Assim, a Ciência Jurídica quando atua o faz mediante uma linguagem reconhecida como metalinguagem, cujo produto é um discurso científico. É que a metalinguagem por ser uma linguagem que não se confunde com a linguagem-objeto - esta que estará sujeita à análise da primeira -, ela se faz necessária para a elaboração de “um outro nível de linguagem, a partir do qual se possa fazer uma investigação problematizadora dos componentes e

estrutura da linguagem que se pretende analisar”280. Ainda mais porque com a metalinguagem que passa a ser própria da Ciência, possibilita-se um controle que é necessário quanto às regras que devem ser observadas quando da operação científica281. Então, a utilização da metalinguagem numa atuação científica é de fundamental importância por propiciar uma observância mediante construções de precisão e certeza na elaboração de uma linguagem, agora científica. É que a função lógica da linguagem científica deve se pautar por uma função descritiva, e não por uma função prescritiva como consideramos anteriormente ao retratar a linguagem normativa. Na sua função descritiva, como se verifica da linguagem científica, a sua atuação é no sentido de informar, transmitir saber, ou mesmo “em fazer conhecer”282.

A separação entre função lógica descritiva, que é própria da linguagem científica do Direito, e função lógica prescritiva, que é própria da linguagem do Direito em si, tem como um anteposto oportuno uma providencial afirmação de Kelsen ao separar norma jurídica de proposição jurídica. Segundo ele norma jurídica não é o mesmo que proposição jurídica. Enquanto as normas jurídicas são produzidas pelos órgãos jurídicos constituindo mandamentos, comandos, imperativos, permissões e atribuições de competência, as proposições jurídicas são enunciados através dos quais a Ciência Jurídica descreve as relações oriundas desses mandamentos e comandos. As proposições jurídicas chegam a traduzir juízos hipotéticos envolvendo as consequências estabelecidas pelo ordenamento jurídico283, e também podem constituir juízos sobre um objeto dado para se conhecer (conhecimento)284.

Apartar a norma jurídica da proposição jurídica é providencial porque esta última, na seara da ciência, apreende o cabedal de condutas enquanto conteúdo da primeira, mas não assume o papel de providenciar qualquer autoridade mandamental. A sua transposição para a condição de uma metalinguagem acontece por retratar os comportamentos, os quais assumem um sentido objetivo através da norma. Neste caso, a conduta enquanto conduta é descrita no seu conteúdo, e compondo a dimensão jurídica (Direito) é norma objetiva. Como proposição, a proposição jurídica na linguagem é uma proposição descritiva. E esta sua função na linguagem torna-se mais lúcida ao estabelecermos uma diferenciação entre um fato e uma

proposição, como faz Bertrand Russel no seu Atomismo Lógico, com vistas a uma análise lógica na dimensão da Ciência, cuja premissa “será uma proposição tendo grande poder

280 WARAT, Luis Alberto. O Direito e a Sua Linguagem. op. cit, p. 48. 281 Ibidem, p. 49.

282 BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. op. cit, p. 78. 283 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. op. cit, p. 111. 284 Ibidem, p. 124.

dedutivo, grande persuasão e dedução”. Nisto os fatos “são o que são, não importando o que decidimos pensar acerca deles”, significando espécies de coisas que podem gerar proposições verdadeiras ou falsas, visto que uma proposição por seu turno comparece como “uma sentença no indicativo, uma sentença que afirma alguma coisa, não questiona, ordena ou deseja”285. Pode-se dizer que o Direito Positivo encontra-se no mundo das coisas, enquanto que a Ciência Jurídica com sua linguagem está no mundo das proposições que descrevem estas coisas. Neste seu papel teórico deparamos com uma implicação conecta entre conhecimento, conceito e linguagem própria. É que “todo pensar e conhecer teóricos, perfaz- se em certos ‘atos’ que surgem em conexão com a fala em que se exprimem”, sendo que nesses atos vamos encontrar a fonte não só das “unidades de validade”, mas também das “respectivas ideias gerais e puras”286.

Na diferenciação de ambas - norma jurídica e proposição jurídica - percebe-se que as proposições jurídicas estão na dimensão da linguagem que é desenvolvida pela Ciência do Direito, esta que por metodologia própria encontrando-se externa ao ordenamento jurídico, haverá de se conduzir por uma ótica que lhe é própria, e numa tratativa de descrever, conhecer, interpretar e ensinar. Neste caso a linguagem a ser utilizada pela Ciência jurídica deve ser uma linguagem dominada por um rigor sistemático, descontaminada dos efeitos deletérios da politização e mesmo da ideologização partidarizada. Por isto é fundamental reconhecer o papel da metalinguagem jurídica, visto que esta função de descrever, conhecer, interpretar e ensinar, ao mesmo tempo em que não pode se contaminar por esses fatores, também não se revolve mediante uma linguagem que se limita em registrar o Direito em si (linguagem-objeto). É necessária uma linguagem própria para este desiderato.

285 RUSSELL, Bertrand. Lógica e Conhecimento. 2. ed. Trad. de Pablo Rubén Mariconda. São Paulo: Abril

Cultural, 1985, p. 55 - 59.

286 HUSSERL, Edmundo. Investigações Lógicas - Sexta Investigação. 2. ed. Trad. de Zeljko Loparié. São

5.6 A METALINGUAGEM JURÍDICA COMO LINGUAGEM USUAL DOS ESTUDOS