• Nenhum resultado encontrado

A CATEGORIA “ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO”: REPRESENTAÇÕES AMBÍGUAS

1. IMPULSOS CIVILIZADORES NAS RELAÇÕES COM CÃES E GATOS

1.3. A CATEGORIA “ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO”: REPRESENTAÇÕES AMBÍGUAS

Na Idade Média, de maneira geral, os gatos eram tratados apenas como instrumento para o controle de ratos e os cães eram referidos em documentos governamentais, diários, provérbios e sermões como seres bestiais e inconvenientes (THOMAS, 2010). Os textos religiosos referiam-se ao demônio como dragão ou cobra e as representações do mal em pinturas sacras e textos literários costumam apresentar a bestialidade como algo que se assemelha aos animais não-humanos. Além disso, a população europeia associava a espreita de espíritos malignos ou feiticeiras à presença de certos animais, entre os quais cães, gatos e ratos (OSÓRIO, 2011; THOMAS, 2010).

A imagem oriental dos cães como imundos devoradores de carniça foi transmitida pela Bíblia à Inglaterra medieval, e era ainda bastante forte no correr do século XVI (…) Nos provérbios populares, não havia sugestão de que o cão pudesse ser leal e afetuoso; ao contrário, temos 'ganancioso como um cão', 'intratável como um cão de açougueiro' e 'vida de cão'. As damas finas (...) detestavam piolhos 'ainda mais que cachorros e víboras', o cão era um 'ser impuro e imundo que procria em público e de modo promíscuo'. Os cães eram animais sujos, bestiais, desordeiros (…) Em 1662 o pregador Thomas Brooks os classificava entre os 'animais daninhos' e na imagem setecentista o cão continuava muitas vezes a simbolizar as mais vis facetas humanas: representava a gula, a lascívia, as funções corporais ordinárias e a desagregação (THOMAS, 2010:149).

Entretanto, Thomas afirma que a visão antropocêntrica sustentada pela teologia dos séculos XVI e XVII contrastava, em grande medida, com a experiência cotidiana nas granjas e nas casas da Inglaterra.

(...) a experiência real dos homens com os bichos, nas granjas e nas casas, entrou em conflito com as ortodoxias teológicas da época e, em última instância, estimulou os intelectuais a desenvolverem uma visão completamente diferente das relações do homem com outras espécies (THOMAS, 2010:130).

Até o século XIX, ainda era possível encontrar aves, cães e cavalos dentro das residências, bem como porcos soltos nas cidades, inclusive na Europa continental.

Os livros de civilidade dos fins da Idade Média recordavam ao pajem que, antes de seu amo ir para a cama, ele deveria tirar os cachorros e gatos do quarto; e advertiam os convidados a banquetes para não chutarem gatos e cães enquanto sentados à mesa (THOMAS, 2010:147).

Esses bichos domésticos geralmente eram adornados com sinos e fitas e outros enfeites. Também era comum que se falasse com eles, pois seus donos,

ao contrário dos intelectuais cartesianos, nunca os consideravam incapazes de entender (THOMAS, 2010:135).

Essa convivência afetuosa e de grande proximidade física (que incluía quarto e mesa) demonstra que já havia, naquele período, uma série de contradições entre as representações e as atitudes em relação aos animais, sendo as espécies de estimação as maiores representantes desses contrastes.

No século XVI, enquanto os colonizadores descobriam e estranhavam o fato de alguns grupos indígenas criarem animais na aldeia sem o objetivo aparente de consumi- los, a criação de animais na Europa era quase totalmente voltada para o consumo. Em meados do século XVI, explica Saez (2010):

(...) os europeus dependiam muito mais do que agora de uma série de animais domesticados, basicamente os mesmos que exploramos até hoje. Eles eram os responsáveis por boa parte dos bens alimentícios, do vestuário, das matérias-primas e da força mecânica para a indústria e o transporte. Mas os bichos de estimação eram relativamente raros: só havia os cães pequenos das madames mais abastadas e os pássaros engaiolados. Com o começo das expedições a outros continentes, os muito ricos passaram a colecionar papagaios, macacos e até leões ou leopardos, que eram exibidos como curiosidades, frequentemente acorrentados (SAEZ, 2010, s/d).

Outro elemento de tensão na percepção do humano como externo e superior à natureza foi o fato de que, como explica Wouters (2008:87), “quanto mais explorada e controlada era a natureza, mais valorizada era a imagem de uma natureza inexplorada”, com o interesse pelas florestas, montanhas e por esportes que exigiam um alto grau de resistência e ascetismo, como o montanhismo e o alpinismo. Na opinião de Frykman & Lofgren (2005), as escaladas cumprem um ritual básico da nova visão de mundo, pois, ao vencer sozinho uma montanha, o indivíduo estaria domesticando duas naturezas: a sua própria e a externa. Nesse retorno admirado e distanciado em relação à natureza, os animais não-humanos surgiam como, a um só tempo, bestiais e fascinantes para humanidade, que então acreditava ter “domesticado seu animal interno”.

Durante séculos, a aristocracia inglesa teve bases rurais, por ser uma agricultura altamente capitalizada o fundamento de sua riqueza (…) Seus membros tinham santuários; apego aos esportes campestres; mostravam um interesse obsessivo por cães e cavalos; eram, muitas vezes, bons conhecedores de história natural e idearam conscientemente uma paisagem rural que tanto fornecia lucro como recreação (…) Essa afeição pelo campo, real ou imaginária, não se confinava às classes altas, sendo comum a muitos indivíduos da primeira nação industrial (…) À medida que as fábricas se multiplicavam, a nostalgia do morador da cidade refletia-se em seu pequeno jardim, nos animais de estimação, nas férias passadas na Escócia ou no Distrito dos Lagos, no gosto pelas flores silvestres e a observação dos pássaros, e no sonho com um chalé de fim de semana no campo (THOMAS, 2010:14-17).

Assim, o percurso histórico estudado por Thomas resultou, especialmente no meio urbano, em um efeito de romantização da natureza, acompanhado pelo surgimento de questionamentos ao uso indiscriminado dos animais e dos recursos naturais. Essa sensibilidade protoambientalista, no entanto, só surgiu quando a humanidade já havia construído a ideia de natureza como algo externo, submetido ao arbítrio humano.

A natureza, a paisagem recreativa, recebeu qualidades que a tornaram a antítese de tudo que era definido como antinatural na vida da classe média. A natureza passou a significar o mundo autêntico e não afetado, em contraste com o mundo artificial e o ambiente comercializado, feitos pelo homem (FRYKMAN & LÖFGREN, 2005:57).

Diante da melancolia das relações com a natureza que se desenvolveu nas grandes cidades europeias, ao longo dos séculos em que os animais foram afastados da convivência humana civilizada, algumas espécies, cuja companhia parecia interessante, foram mantidas em proximidade e passaram a ocupar um lugar exclusivo de animais de estimação. O costume de criar animais de estimação, inicialmente restrito às elites aristocráticas e clerical, disseminou-se nas classes médias a partir do século XVI. Entre os fatores que impulsionaram essa prática, vários autores apontam o aumento da população urbana, que não dependia dos animais como força de trabalho e passava a percebê-los de outras formas que não apenas o olhar utilitário (CARVALHO & WAIZBORT, 2012).

Esses animais, entre os quais se destacaram o cão, o cavalo e o gato, tornaram-se uma espécie de refúgio, uma fonte de conforto que extrapolava sua função prática de guarda, alerta ou controle de pragas. Segundo Thomas (2010), a categoria animal de estimação implica certas características como ter acesso à casa, receber nomes e não ser utilizado como alimentos19. Na Inglaterra dos séculos XVII e XVIII, fizeram parte dessa categoria pássaros de pequeno e grande porte (como falcões), macacos, cães, porcos, gatos, cavalos, coelhos, esquilos, lontras, tartarugas, cordeiros e, embora menos comuns, são encontrados relatos de camundongos, morcegos e sapos.

19 É válido ressaltar que essas características são apenas um guia, e não uma essência da relação com

animais de estimação. Nas pequenas propriedades rurais, por exemplo, é comum que os animais de criação sejam nomeados (especialmente as vacas) e que alguns adentrem as casas (especialmente as aves), mas sua função primordial continua sendo a fonte de renda e alimento, por isso seu destino final é o consumo. Assim, embora nomeação e acesso à casa sejam relevantes, cabe destacar como principais características dos animais de estimação a sua interdição como alimento e o estabelecimento de laços afetivos.

A despeito do paulatino afastamento em relação aos animais, separados da residência, removidos para áreas específicas nas quais a criação se racionalizava e continha mais manejo e menos contato pessoal, algumas espécies permaneceram bem próximas à sociedade humana e possivelmente tornaram-se ainda mais íntimas. Trata-se do cavalo, do cão e do gato.

Aos poucos, os cães e gatos tornaram-se os preferidos nos países ocidentais, mas as representações sobre essas espécies eram bastante ambíguas. No caso dos cães, por exemplo, essas ambiguidades iam desde a imagem bíblica de seres bestiais devoradores de carniça, que perdurou forte até o século XVI, até a beatificação informal do cão Guinefort, cuja lápide se tornou ponto de visitação em busca de milagres, na Lyon do século XIII. Na convivência, ainda, era possível encontrar, simultaneamente, cães que seriam cozinhados após a morte para fazer banha e cães tratados com regalias pela família real, com destaque para a dinastia Stuart (THOMAS, 2010).

É importante ressaltar que, já no século XVI, os cachorros não eram tratados apenas a partir de uma consideração genérica a respeito da espécie, pois comumente eram classificados de forma contrastante a depender da raça ou, como argumenta Thomas, da conexão entre a raça do cão e a classe social em que estava inserida. Nesse sentido, a gravura que ilustra a edição brasileira de O Processo Civilizador oferece um exemplo interessante. Pintada em 1748, por Thomas Gainsborough, a imagem do casal Robert Andrews apresenta o homem bem vestido, portanto uma carabina utilizada para a caça, acompanhado, de um lado, pela esposa e, de outro, por um cão de coleira que os observa com as orelhas baixas, em gesto de submissão.

Em 1558, a lei inglesa reconheceu o cão como objeto de propriedade, mesmo que não tivesse função produtiva, e arrolou quatro tipos de cães: mastins, sabujos, spaniels e cães acrobatas. Em contraposição a mastins (cães pastores) e mestiços, os cães de caça (sabujos) eram tidos como nobres, sagazes, generosos, inteligentes, fieis e obedientes. Não à toa, apenas aristocratas tinham permissão para criar cães de caça e o prefeito de Liverpool chegou a ordenar, em 1567, que os cães de guarda e os mastins fossem mantidos amarrados para evitar que ferissem cães de fidalgos (THOMAS, 2010:150).

Como observou um autor da primeira metade do sécuo XVIII, as pessoas tendiam a ter cães adequados à sua posição social. O fidalgo rural possuía cães de caça e o esportista aristocrático tinha galgos e setters. Mas o latoeiro ambulante seria seguido por um mestiço, e os “cães uivantes” eram propriedade de “vadios dos becos” (THOMAS, 2010:150).

Os gatos demoraram mais que os cães a subir de status. Na Idade Média, eles eram criados para combater ratos e camundongos, aparecendo apenas ocasionalmente em poemas como objetos de afeição. No início do período dos Stuart (1603 – 1714), porém, já eram numerosos os amigos dos gatos e havia algumas obras em sua homenagem. Segundo Daniel Defoe, eram poucas as famílias que não possuíam um ou mais gatos durante o reinado de Carlos II. Entretanto, esses animais muitas vezes eram apenas objeto para outros esportes. Eles poderiam ser queimados vivos como diversão ou durante as procissões de “queima do papa”, como forma de aumentar o efeito dramático. Podiam, ainda, ser suspensos em cestas para servirem de alvo nas brincadeiras de tiro de feiras campestres (OSÓRIO, 2010; THOMAS, 2010).

O uso instrumental dos gatos aos poucos foi sendo sobrepujado pelo seu posicionamento como animal doméstico a ser mimado e afagado. Na opinião de Thomas, é possível que a elevação do status do gato tenha acompanhado a elevação dos padrões de asseio da população inglesa, que passa a admirar a limpeza e elegância do animal, como atesta um relato de 1809. Também no século XIX, os cruzamentos de raças felinas passam a ser realizados de forma sistemática, tendo a primeira exposição de gatos ocorrido em 1871. Assim como ocorreu com os cães, os ingleses se orgulhavam de afirmar que tinham entre eles as melhores raças da espécie.

Sendo ou não responsável pela admiração aos felinos, o fato é que os padrões de asseio cresceram notadamente ao longo dos séculos analisados por Thomas e Elias. Por outro lado, com o avanço dos patamares de civilidade e dos padrões de asseio, a convivência com os animais de estimação foi diretamente atingida, surgindo para a aristocracia inglesa condenações morais, teológicas e médicas sobre o convívio íntimo com cães e gatos.

Do final do século XVII em diante, já não seria aceitável para a “sociedade educada” apresentar suas casas “com bosta de cachorro e ossos de tutano enfeitando o salão de entrada”, tampouco manter cães no adro frontal das grandes mansões ou nos quartos (THOMAS, 2010: 147). Dessa forma, assim como aconteceu com os animais de criação, que chegaram a dividir os espaços da casa e foram paulatinamente distanciados, os animais de estimação também foram afastados.

Mantidos em várias casas com a função prática de caçar, os gatos eram tratados muitas vezes sem regalias, deixavam de ser alimentados e o contato físico com eles evitado para prevenir doenças. Os perigos apontados nos livros de medicina da Idade Média continuavam presentes nas representações da Modernidade (e, diga-se de

passagem, nas representações atuais também): o contato com felinos seria perigoso para a respiração e poderia desencadear alergias (THOMAS, 2010; OSÓRIO, 2011).

Thomas afirma que os cães eram, sem dúvida, os preferidos de todos os animais e que eles estavam em toda parte na Inglaterra do início dos tempos modernos. Nas biografias, diários e gravuras, há cães por todos os lados, muitos brigando entre si ou perseguindo as pessoas no meio da rua. “A municipalidade fazia o possível para que essas criaturas ficassem trancadas ou amordaçadas durante o dia, mas elas continuavam a ser um risco grave e notório” (THOMAS, 2010:142-143).

Queixas sobre o número excessivo de cães são encontradas por Thomas (2010:148) a partir da década de 1530 e, nos tempos de peste, os cães eram eliminados como medida sanitária, mesmo sob protestos. Em 1796, um imposto sobre cães chegou a ser criado na Inglaterra para tentar conter o crescimento da população canina20.

Esses fatos contrastantes nos ajudam a desnaturalizar a ideia de que cães e gatos são companhias agradáveis e adequadas à convivência íntima na família. As representações de cães e gatos como seres bestiais, perigosos, agressivos, ligados à feitiçaria e transmissores de doenças demonstram o quanto a posição ambígua dos animais de estimação na sociedade ocidental é fruto de um processo permeado por transformações e permanências (BENJAMIN, 2008; MACHADO & PAIXÃO, 2014; OSÓRIO; 2011). Se, por um lado, as experiências com os animais domésticos “forneciam apoio à visão de que os mascotes podiam ser racionais, sensíveis e compreensivos” (THOMAS, 2010:172), por outro lado, as representações de cães e gatos como sinônimos de perigo e sujeira nunca deixaram de permear a convivência com eles. Pelo menos nas últimas décadas do século XX, cães e gatos foram submetidos a uma nova tendência de afastamento do convívio humano, quando as epidemias zoonóticas de raiva e leishmaniose reforçaram os estigmas sobre perigo e doença.

1.4. AFASTAMENTO DOS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO: ZOONOSES,