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O (mulher): O que tem que fazer é a onde ela for avistada, apontá-

la,chamar de assassina,louca,imbecil, fazer o bicho pegar! Não dar trégua! Pq se esperar pelas leis,vai tudo acabar em pizza,como tudo nesse país!!

(comentários em publicação sobre o “caso poodle” no facebook)

Diante da sensação de impunidade, duas estratégias são adotadas pelos internautas que comentam as publicações de denúncia no facebook. A primeira é o linchamento moral, com a divulgação das fotos, endereços, telefones e local de trabalho dos agressores. No compartilhamento de publicações com frases como “marque esse rosto”, é possível perceber o desejo de submeter os agressores à vergonha. Essa emoção, afirma Goudbsblom (2008:21), deriva do medo de perder o respeito e o afeto, os dois prêmios mais apreciados na vida social. Ao longo do desenvolvimento social, parte das causas do sentimento de vergonha passaram a ser controladas por instituições como Estado e Igreja, que assumiram a função de favorecer a internalização das normas no habitus dos indivíduos.

Seguindo essa lógica, ambos, Estado e Igreja, reforçaram os processos de formação da consciência. O confessionário e a sala de justiça são os reflexos materiais do esforço para substituir os rituais de vergonha por formas mais racionais de acusação, permitindo às vítimas (sejam “culpadas” ou ‘pecadoras”) a possibilidade de apelar segundo as regras escritas (GOUDSBLOM, 2008:27).

Quando a Igreja e o Estado não são bem sucedidos na tarefa, o controle social pode ser realizado por meio de rituais de vergonha. Nesse sentido, é possível entender a divulgação do rosto de agressores de animais como uma tentativa de puni-los com a vergonha de saber que poderão ser reconhecidos nos mais variados locais, nos quais sofrerão desrespeito e inimizade.

G.G. (homem): Campanha vamos espancar Fabiana Vanacor onde quer que ela vá... vamos esperar ela nos aeroportos, com certeza ela vai querer sair do país... onde ela aparecer, vamos nos juntar e espancar essa vaca até a morte para fazer o filho dela virar um órfão!

(comentários em publicação sobre o “caso poodle” no facebook)

Muito além disso, porém, é possível perceber, nas falas, que gerar a dor social da vergonha não é o bastante, inclusive por não haver garantia de que seja sentida. É possível, então, supor que, além da descrença na punição pela justiça, haja também uma descrença na capacidade dos agressores se envergonharem, sendo necessário causar medo

ou dor física para puni-los. Entre as montagens de denúncia sobre o espancamento da cadela Lana, alguns declaravam, diretamente, a necessidade de punição informal, com violência.

Figura 2 - Cartaz digital relativo à agressão da cadela Lana.

Fonte: Imagem coletada na rede social facebook

Assim, além do objetivo expresso de fazer os autores das agressões passarem vergonha, essas publicações funcionam também como possibilidade dos internautas darem vazão às emoções sentidas em relação ao caso e realizarem rituais imaginários de punição. Em todas as publicações similares que acompanhei, acumulavam-se xingamentos em segunda pessoa, escritos diretamente aos agressores, como se eles, de fato, fossem ler. Outros, ainda, rogavam pragas de punição, pelo destino ou por Deus:

K.B. (mulher): Morra vagabunda, pq nem seus filhos precisam de voce! S.A. (mulher) Sua louca sabe qual vai ser o seu lugar qdo vc morrer, no LIMBO, no MARMORE DO INFERNO, e seu pobre filho tambem coitado, tenho pena de você sua demente . Essa mulhe4r tem que ir pra cadeia e perder definitivamente a guarda do filho, senão ele vai se torna um monstro igual a

ella, e tantos outros que andam soltos por ai, CADEIA NELA!!!! É o minimo que ela merece

D.S. (mulher): Ah... entao foi esta vagabunda barriguda (que desculpem as vagabundas), que anda batendo em cachorro? E ainda por cima ta criando um monstrinho em casa que maltrata os animais. Que maravilha, logo logo o filhinho dela vai fazer com ela o mesmo que fez com o cachorro. É revoltante... vc tem muitas contas para acertar com Deus... pena que nunca vou topar com ela na rua, porque ela poderia dizer adeus ao planeta terra...essa demente (comentários em publicação sobre o “caso poodle” no facebook)

A.C (mulher) - quando sofre e adoece sem solução não sabe por que. É a prova de deus por suas maldades

L.G. (mulher) Malditos desgraçados. Vão ficar velhos tb e serão arremessados pelos filhos que criaram em algum buraco imundo por aí.

N.B. (homem) - Logo estarão implorando por perdão em seus leitos de morte quando a vida lhes trazer a conta de seu pecados... Gente Indecente, imoral e repugnante...

(comentários no facebook – denúncia de abandono em MG)

Por fim, no tribunal informal criado no facebook, os comentários tornam-se também espaços para a expressão de fantasias de punição com requintes de crueldade, alguns aplicados com as próprias mãos.

F.R. (mulher) - Merecem linchamento!

M.A. (mulher) - Marcela Amaral Passa endereço deles tem colocar fogo casa de filhos da puta desses ódio gente assim que pensa vida termina agora na terra R.A (mulher) Tinha que quebrar o carro deles já que está velho também e deixar ele ai no mato da uma surra nessa vagabunda e nesse vagabundo A.D. (mulher) - Mas enfim, eles serão punidos ???

(comentários no facebook – denúncia de abandono em MG)

P.P (mulher) - Tenho fé que será incluso como crime Hediondo, os maus tratos aos animais!

W.T. (mulher) - sem classificaçao e desalmados são os q abandonam um bichinho de Deus. Esse animal abandonado é um filho de Deus. Quem o abandonou, jamais poderá ser considerado filho de Deus, mas de um ser maligno, q não tem amor p dar. Amanha sofrerá o mesmo abandono. A lei tem que ser mais severa e cumprida.

(comentários no Grupo SOS Adoção Recife – post de reflexão sobre abandono)

C.L. (mulher):MONSTRA! Ela merece que alguém faça com ela o mesmo que ela fez com uma criaturinha indefesa!!!

B.B. (homem): tinha que enfia uma vassoura no cú dela até saí pela boca. Alguém ae lincha ela por favor..

K.B. (mulher): vagabunda vc tem que apanhar até desmaiar e depois ser presa por um bom tempo ir para uma sela escura fria umida e ficar sem contato com ninguém pq vc não um ser humano vc é pior do qualquer animal se vc aparece na minha frente vc ia apanhar muito eu te deixava estirada no chão com muitas fraturas pode ter ceteza dissa sua piranha mau amada ..só matando vc é essa minha vontade

(comentários em publicação sobre o “caso poodle” no facebook)

Em todos esses casos, é perceptível uma descrença no judiciário para punir crimes contra animais, ainda que a cobrança ao Estado continue aumentando. Entendidos como

incapazes de incorporar e expressar valores essenciais, os indivíduos que cometem violência contra animais de estimação são moralmente linchados, não parecendo haver nenhuma alternativa a não ser excluí-los do convívio social civilizado.

Nesse ponto, é importante retomar Elias (1993, 1994, 1997) para lembrar que a imposição de controles emocionais durante a socialização primária não significa eliminação da violência, e sim a tendência de redirecioná-la para situações controladas. É possível propor, portanto, que esse papel tenha sido cumprido pelas redes sociais, que se tornaram um locus de livre expressão da agressividade, que não se restringe em absoluto a casos envolvendo animais. Ademais, o processo civilizador não implica em supressão da irracionalidade, pois a estrutura de personalidade civilizada, como nas demais épocas históricas, é moldada em grande medida por processos inconscientes, de associação entre os atos proibidos e a emoção negativa gerada pela punição. Assim, a violência seria evitada por gerar nos indivíduos civilizados emoções negativas, e não por ser racionalmente entendida como problema moral.

Assim, se manifestações socialmente indesejáveis de instintos e prazer são repetidamente punidas com medidas que geram desagrado e ansiedade, aos poucos o ato passa a ser associado ao desagrado, e não mais ao prazer que originalmente pode ter gerado (ELIAS, 1994:15).

É justamente nesse encontro com a psicanálise que Elias localiza os efeitos contraditórios do processo civilizador – tanto pelo fato de que o crescimento do autocontrole aumenta os níveis de sofrimento psíquico, quanto pelo fato de que a pacificação das relações dentro de uma sociedade ou grupo convive com expressões violentas em relação aos outsiders, significados como bárbaros, incivis, inferiores e perigosos.

Isso significa dizer que a negação da brutalidade, resultante do processo civilizador é, a um só tempo, uma forma de resguardar a si mesmo e uma forma de sentir diante do que passe a ser considerado brutalidade. Inicialmente, como consequência de uma socialização de repressão à violência, atos agressivos serão sentidos como problemas em si mesmos, por um mecanismo inconsciente de associação de atos violentos à emoção gerada pelas repressões sofridas. O que pode ocorrer a partir daí, no entanto, é a elaboração e a incorporação de julgamentos morais sobre violência e agressividade, bem como valores apresentados como superiores nessa configuração social (paciência, autocontrole, racionalidade, diplomacia, etc). Considerando a associação entre

classificação e julgamento moral, já apontada por Boltanski & Thévenot (1999, 20006), é possível propor que o incômodo diante de atos agressivos será maior ou menor de acordo com as formas de classificação dos seres envolvidos e com os valores implicados na situação.

Seja no caso de um objeto atirado no chão ou de um animal agredido, as críticas realizadas podem assumir a forma de uma simples cobrança de civilidade (“controle-se”, “olhe o exemplo que você está dando”) ou a forma de um julgamento moral (“isso custa dinheiro”, “isso machuca”, “por que não vai brigar com alguém do seu tamanho?”). Sendo assim, é a partir do conteúdo de falas reais sobre carrocinha, maus tratos e padrões de tutoria que se pode afirmar que a sensibilidade de empatia interespécie representa mais que a inserção de cães e gatos na sensibilidade civilizada, sendo possível perceber a formação de moralidades distintas regulando essas relações.

4.3.2. CVA e SEDA: o poder público torna-se alvo de cobrança

Em linhas gerais, a sensibilidade de empatia interespécie tem sido impulsionada, na Região Metropolitana do Recife, pelo aumento da capacidade de organização da proteção animal, pela difusão de seus discursos na mídia e nas redes sociais, pela entrada de pautas da causa animal na agenda política e, ainda, pelo crescimento do mercado pet. Todos esses fenômenos ocorrem simultaneamente e possuem pontos de confluência e conflito, mas, tomadas em conjunto, têm o efeito de inserir os animais de estimação nas zonas de relevância de um número crescente de pessoas.

A criação de leis ou órgãos específicos no aparelho estatal tem ocorrido em vários centros urbanos, desde a segunda metade dos anos 2000 e, quando Recife teve a primeira eleição de um candidato que se afirmava defensor da causa, em 2012, Roberto Tripoli (PV) foi eleito em São Paulo como vereador mais votado, usando, como imagem de campanha, a foto de um cão. A atuação do Estado, nesse sentido, não resulta simplesmente da vontade individual de pessoas engajadas na proteção animal, mas, principalmente, de uma conjuntura que torna certas ações politicamente ou economicamente interessantes.

Assim, ao mesmo tempo em que a distância radical entre cães e gatos “de casa” e “de rua” começa a perder sentido, o próprio poder público, de forma não planejada, passa a sofrer maiores cobranças em relação à forma como conduz as políticas voltadas para os animais, agora avaliadas sob o ponto de vista de uma sensibilidade com patamares mais