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HUMANIDADE, ANIMALIDADE E A EXCLUSIVIDADE MORAL DA ESPÉCIE HUMANA: CONSIDERAÇÕES INICIAIS

1. IMPULSOS CIVILIZADORES NAS RELAÇÕES COM CÃES E GATOS

1.2. HUMANIDADE, ANIMALIDADE E A EXCLUSIVIDADE MORAL DA ESPÉCIE HUMANA: CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Para que se tenha a dimensão da transformação pela qual passaram as relações humanas com animais de estimação, é importante descrever um pouco do tratamento conferido até o século XVI às espécies atualmente queridas na maioria dos países do Ocidente. Na Inglaterra, por exemplo, os cães costumavam ser enforcados ou afogados quando deixavam de ter utilidade e poderiam ser postumamente aproveitados para fazer banha; os cavalos eram cavalgados até a morte e, quando adoeciam ou envelheciam, eram abandonados à beira da estrada ou mortos para que se vendesse a carne; os gatos eram usados como alvo nas brincadeiras de tiro de feiras campestres e queimados vivos como diversão ou, ainda, para dar efeito dramático a procissões (DARNTON, 1986; THOMAS, 2010).

A compreensão do contraste entre a sensibilidade atual e essa forma de lidar com cães e gatos passa pela investigação das raízes históricas das relações com os animais não humanos no Ocidente e pelo surgimento dos animais de estimação. Quando esta categoria surgiu, por volta do século XVI, já havia se estabelecido uma percepção dicotômica das diferenças entre humanos e animais, sendo estes o contraponto identitário da humanidade17.

17 Procurando se afastar da tendência de romantizar culturas indígenas, que percebe em antropólogos e

ambientalistas, Noske (2008) aponta que, em diversas etnografias sobre sociedades de caçadores/coletores é perceptível a existência de crenças e práticas antropocêntricas, além de rituais que envolvem intenso sofrimento, como sangrar o animal lentamente até a morte. Apesar disso, tanto ela quanto outros antropólogos apontam que as categorias em que diferentes espécies são percebidas nessas sociedades não costumam ser dicotômicas e também não costumam resultar em objetificação, pois os animais são entendidos como dotados de vida mental, espiritual e de poderes sobrenaturais. Em sociedades indígenas e aborígenes, as distinções fundamentais são feitas entre mortos e vivos, entre seres dotados de maior ou menor capacidade de comunicação e, ainda entre os que possuem costumes mais ou menos semelhantes às do grupo que empreende a classificação. São recorrentes as histórias sobre pessoas que assumem a forma de animais e vice-versa, de ancestrais não humanos e sistemas totêmicos em que humanos e animais são reunidos em um só grupo, podendo haver mais proximidade de algumas pessoas em relação a essas espécies que em relação a humanos de outro grupo (CASTRO & CASTRO, 2012; DESCOLA, 1998; LIMA, 1999; NOSKE, 2008). São encontrados, ainda, gestos que indicam tentativas de reconciliação com os animais mortos, entendidos como capazes de se vingar e, portanto, percebidos de forma menos díspar em relação aos humanos. É o caso, por exemplo, de regras como não atacá-los pelas costas, não desperdiçar caça, esperar gestos de consentimento dos animais antes de caçá-los e, por fim, realizar rituais de purificação e/ou pedir desculpas ao animal (DESCOLA, 1998; INGOLD, 1995). Noske (2008) ressalta que nenhuma dessas atitudes de proximidade ou respeito elimina o fato de que, em nome dos interesses e dos sistemas simbólicos humanos, os animais sejam mortos e/ou submetidos a intenso sofrimento, mas esses exemplos

Essa representação consolidou-se na Modernidade, período no qual se aprofundaram o distanciamento físico em relação aos animais e a diferenciação nos modos, com o refinamento da conduta e do controle das emoções – características do processo civilizador (THOMAS, 2010). Submetidos a esse processo de longo prazo e incorporando padrões de conduta que lhes pareciam naturais, os grupos “civilizados” eram tomados pela impressão de superioridade natural, enquanto os incivis, com seus modos e gostos “rudimentares”, eram comparados justamente aos animais.

(...) a estória que nós contamos no Ocidente sobre a exploração humana e a domesticação final dos animais é parte de uma estória mais abrangente sobre como os humanos se elevaram sobre e buscaram controlar um mundo natural que inclui sua própria animalidade (INGOLD, 1995:1).

Tanto no discurso religioso da Idade Média quanto no discurso científico da Idade Moderna, os animais foram posicionados como instrumentos dos quais os humanos poderiam se valer. Ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX, cristalizaram-se discursos e práticas que, sem ter necessariamente teor religioso, restauraram o status diferenciado do humano entre os seres do mundo. No século XIX, a domesticação de nossa “primeira natureza” agressiva, selvagem, passava a ser feita desde a infância, numa tentativa de cortar pela raiz o que se considerava um mal, de substituir esta natureza “animalesca” por uma “segunda natureza”, marcada pelo autocontrole (WOUTERS, 2008). No discurso científico e filosófico da modernidade, “os animais” tornaram-se máquinas sem alma (DESCARTES, 1979), autômatos (HEIDEGGER, 2011), seres desprovidos de mundo simbólico (MEAD, 1967), ou seja, um contraponto ontológico para a percepção do humano; a falta diante da qual nossas potencialidades tornavam-se admiráveis.

Na fantasia ocidental moderna, o ser humano pleno é o cidadão civilizado, que, imagina-se, apagou de si quaisquer traços de animalidade. A civilidade, portanto, é a conduta de uma estrutura de personalidade típica da modernidade ocidental, caracterizada pelo autocontrole e pela demarcação da individualidade. Mais que expressões performáticas, essas duas características são constituintes da subjetividade moderna, posto que, ao longo de gerações, esses traços passaram a ser incorporados desde a

são importantes como contraponto à impressão de que a reificação dos animais não humanos seja uma característica natural e constante em todas as sociedades. Para alguns autores, essa percepção do animal como objeto começa a se desenvolver com a domesticação, pois é nas sociedades pastoris que se encontram as primeiras expressões do animal como propriedade humana (INGOLD, 1995; SERPELL & PAUL, 2003).

primeira infância, estabelecendo, portanto, a moldura a partir da qual os sujeitos, assim socializados, percebem o mundo e a si mesmos. O cidadão civilizado é tido como aquele que “esconde suas vergonhas”, resguarda sua sexualidade, não deixa rastro de excrementos ou lixo por onde passa, fala baixo, mantém seu corpo limpo, alimenta-se sem ânsia e sem se sujar, resolve seus problemas de forma racional, não faz uso de violência, faz planos, constitui família, cria e transmite cultura de geração em geração. Em uma sociedade civilizada, sempre que se afastam desses padrões, os indivíduos são comparados a animais, esses seres impuros que andam nus, copulam em público, não conhecem incesto, urinam, defecam e vomitam em lugares impróprios, soltam urros e grunhidos, são sujos e cheios de doenças, alimentam-se com voracidade, não raciocinam, estão sempre prontos a morder, arranhar ou ameaçar, vivem em bandos desorganizados e, quando morrem, não deixam nada além de um corpo.

O manual de etiqueta de Erasmo, fundamental na análise de Elias (1993), é citado também por Thomas (2010), segundo quem o autor

fizera residir a essência das boas maneiras à mesa na diferenciação do homem frente aos animais, mas do que face aos próprios “rústicos”. Não estale os lábios, como um cavalo, advertia ele; não engula a comida sem mastigá-la, como uma cegonha; não roa os ossos, como um cão; não lamba o prato, como um felino (...) As regras de compostura de Erasmo mostram a mesma preocupação: não mexa os cabelos, como um potro; não relinche ao rir, como um cavalo, ou mostre os dentes, como um cachorro; não balance o corpo inteiro ao falar, como uma lavandisca (THOMAS, 2010:49).

A subjetividade individualizante, desenvolvida na modernidade ocidental, assenta- se na fantasia de uma vida plenamente racional e controlada, sem os “impulsos da animalidade” (ELIAS, 1994, 2001, 2011). É assim que Thomas (2010:54) afirma que o próprio conceito de animalidade foi delineado “como um comentário implícito sobre a natureza humana”. Esse comentário é justamente a negação de nossa animalidade.

No século XVI, o discurso oficial de doutrinadores e teólogos afirmava a necessidade de afastamento de qualquer comportamento que nos aproximasse dos animais, comumente referidos como bestas:

Onde quer que olhemos, na Inglaterra do início do período moderno, encontramos ansiedade, latente ou explícita, quanto a qualquer forma de comportamento ameaçando transgredir os frágeis limites entre o homem e a criação animal. A higiene física era necessária, conforme afirmaria John Stuart Mill, porque a sua falta, “mais do que qualquer outra coisa, torna o homem bestial”. A nudez era bestial, pois as roupas, como o ato de cozinhar, constituíam um atributo humano exclusivo (...) até mesmo nadar era bestial, pois, além de

ser aos olhos de muitos puritanos uma forma perigosa de semissuicídio, representava um método não humano de locomoção (THOMAS, 2010:51).

A indicação de afastamento em relação “às bestas” foi traduzida, ainda, na necessidade de reorganização do espaço físico. Assim, a construção das vilas e cidades implicava no afastamento das feras e, em seguida, na introdução de espécies domésticas, subordinadas aos humanos e que apresentassem alguma utilidade. A partir do século XVI, também as espécies domésticas passaram a ser empurradas para longe do convívio civilizado, de maneira que já não seria bem visto o antigo padrão de “casa ampla” que predominou na Inglaterra até o século XVI. De acordo com Thomas (2010:132), essa era “uma combinação de casa e cocheira, em que homens e gado dormiam sob o mesmo teto, em geral separados por um muro baixo ou um corredor transversal”. Entre os séculos XVI e XVII, a moradia foi se tornando exclusivamente humana e os ingleses passaram a se vangloriar de manterem os animais segregados de sua habitação, fazendo piadas sobre irlandeses, galeses e escoceses, entre os quais muitos homens comiam e dormiam sob o mesmo teto que o gado, demonstrando total falta de civilidade.

No período moderno, portanto, a proximidade com animais já era vista de maneira geral com desconfiança e repulsa, levando ao afastamento, para baias e estábulos, de animais que até então dividiam os espaços da casa, especialmente no inverno. Enquanto isso, entre as classes altas, os animais de estimação tinham sua presença dentro das casas questionada com frequência, especialmente se fossem admitidos no quarto, à mesa e comessem melhor que os servos, pois isso denotaria degeneração moral (THOMAS, 2010:53).

À visão religiosa do ser humano como proprietário da natureza por vontade divina, seguiu-se a ideia laica, popularizada pelo Iluminismo do século XVIII, de que as sociedades humanas resultavam da associação para se defender das feras, seguida de novas etapas de domínio: a caça e a domesticação. Não é à toa, portanto, que os conquistadores europeus tenham associado a civilização dos povos indígenas e africanos ao estímulo para que caçassem animais selvagens e à introdução de animais domésticos nos territórios conquistados (THOMAS, 2010). Numa passagem do discurso religioso ao mecanicismo científico, cientistas e planejadores econômicos do século XVII, a exemplo de Bacon, atribuíam à ciência a missão de restaurar o domínio humano sobre a criação divina, colocando a natureza a serviço da humanidade e destruindo as espécies que incomodassem. Foi com esse propósito que nasceram a botânica, a história natural e a

zoologia. Assim, a Sociedade Zoológica inglesa tinha como objetivo oficial no século XIX aclimatar e desenvolver novas espécies de animais domésticos e o secretário da Sociedade Real, que congregava os principais cientistas da época, chegou a afirmar que “não é questão filosófica de pouca monta saber [...] que animais podem ser domesticados para o benefício humano e que cruzamentos com outros animais podem ser efetuados” (THOMAS, 2010:36). Essa percepção dos animais como naturalmente inferiores e submetidos ao domínio humano sobre a natureza é relevante não apenas por ser um elemento constitutivo da identidade do sujeito moderno, que se julga livre da animalidade, mas também porque guia a maneira como os animais serão tratados.

As raízes subjacentes às visões sociais são complexas, mas em qualquer análise sobre interações humanas com animais há um fator com influência preeminente: a percepção de diferenças entre pessoas e animais. Ainda que filósofos e outros acadêmicos baseiem seus argumentos no conceito de interesses, para a maioria da população a alteridade aparente dos animais não humanos impõe distância entre eles e nós. E, como a história tem demonstrado, onde quer que as diferenças entre dois grupos sejam evidenciadas, um é inevitavelmente considerado superior. A forma como as diferenças entre animais e humanos são interpretadas pela sociedade determina a natureza de suas relações com os animais (LAWRENCE, 1994:177)18.

A relação entre classificação, julgamento e comportamento será retomada com mais detalhes no capítulo 2, a partir de Boltanski & Thévenot (1999, 2006), mas, nesse momento, é cabível destacar que a constituição do indivíduo civilizado na modernidade implicou em um afastamento gradativo em relação aos animais (nos modos, no espaço físico e na constituição excludente de nossa comunidade moral). Diante dessa constatação, é cabível perguntar: o que faz com que essa moralidade de exclusão aos animais não humanos esteja agora submetida a questionamentos morais? E como o aumento dos padrões de conduta civilizada convive com as relações contemporâneas com animais de estimação, trazidos para dentro de casa, chamados de filhos e transformados em alvos de preocupação social e política? Para que essas questões sejam trabalhadas, é preciso perceber, inicialmente, a maneira como as transformações de longo prazo nas relações com animais não humanos geraram uma categoria de animais representados como radicalmente diferente de todos os outros: os animais de estimação.

1.3. A CATEGORIA “ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO”: REPRESENTAÇÕES