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3. OS IMPULSOS CIVILIZADORES E A POSIÇÃO AMBÍGUA DOS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO NO BRASIL

3.2. ANIMAIS DE DENTRO, ANIMAIS DE FORA E A CARROCINHA

3.2.1. A legitimação da carrocinha

Duas consequências surgem da percepção discrepante entre animais “de casa” e animais “de rua”. A primeira é a naturalização da situação de abandono, presente na própria expressão “animal de rua”, que atribui ao animal a condição de pertencer a esse espaço e, justamente por isso, permite que a presença de cães e gatos vagando pelas vias públicas torne-se parte da paisagem, de maneira aproblemática. A segunda consequência é que, por se imaginar que não saberiam ou não poderiam sair sozinhos, os cães considerados especiais são mantidos dentro de casa, de maneira que a ação da carrocinha não coloca em risco os “proprietários” que criem seus cães em casa. Pelo contrário, serve para proteger a ambos do risco da raiva, que poderia ser trazida por algum cão “de rua”.

De fato, em toda a minha infância e adolescência, a existência da carrocinha não parecia ferir a sensibilidade das pessoas com quem convivi e só nos angustiávamos com essa instituição quando algum animal especial era capturado por acaso (como acontecia com os personagens de desenhos animados, que sempre se livravam no final). De maneira geral, os cães capturados eram anônimos, não possuíam valor e não fariam falta a ninguém, já que não tinham “dono”. O compadecimento, portanto, não era pelo sofrimento ou morte do animal, mas pelo sofrimento do humano que o perdesse.

Diante de tais ameaças, não se poderia contestar totalmente a validade da utilização da “carrocinha”, em prol da saúde pública. O que se questiona, atualmente, é a forma como esse serviço vem atuando, principalmente quando se sabe que não são apenas os cães errantes os visados pelo Setor de Apreensão de Animais, conforme atestam depoimentos como estes (...) Muitas pessoas que já tiveram seus cães capturados pela “carrocinha” lamentam que não sejam poupados nem mesmo aqueles animais com coleira e que, protanto, têm dono (CÃES & COMPANHIA, 1938, nº48:11).

Outro fator importante para suavizar as ideias sobre o extermínio dos animais errantes é a forma de se referir ao fato. Assim como meu uso do termo extermínio está carregado de sentido político, o uso do eufemismo eutanásia também está, pois sugere uma morte sem dor e sem angústia, necessária para o bem do paciente. A afirmação, corrente em minha infância, de que os cães levados pela carrocinha virariam sabão, desviava a atenção sobre o que aconteceria com eles ao serem capturados. Virar sabão era um acontecimento no plano da fantasia, que nos levava a imaginar um processo mágico, pelo qual um cão se transformasse em sabão – o que não parecia implicar em morte, e sim em transmutação. Uma lógica semelhante ocorre com a produção de

alimentos de origem animal, representados sempre em duas etapas pela publicidade: na primeira etapa, são desenhos sorridentes (às vezes dançando de alegria) e, na segunda etapa, aparece o produto final, que não traz em si nenhuma marca identificadora do animal que o originou (DIAS, 2009)88.

Além de todo o eufemismo que havia em torno da ação da carrocinha, os animais por ela sacrificados eram anônimos, vistos apenas de passagem e percebidos como ameaça. Eliminar um animal “de rua” não era comparável a eliminar um animal “de casa” – a própria comparação entre eles soaria absurda.

Ao analisar a política de captura e morte, estabelecida em todos os países atingidos pela raiva, é possível perceber um forte contraste com a imagem genérica a respeito dos cães, comumente apontados pela literatura das ciências sociais como seres sacralizados nas sociedades ocidentais. Um exemplo disso é a análise de Sahlins (2003) sobre as representações e atitudes contrastantes dos norte-americanos em relação a algumas espécies animais. O autor destaca que cães e cavalos não seriam considerados animais comestíveis por estarem num convívio doméstico e relativamente íntimo e afirma:

Cachorros e cavalos participam da sociedade americana na condição de sujeitos, têm nomes próprios e realmente temos o hábito de conversar com eles (...) Portanto, cachorros e cavalos são julgados não-comestíveis porque, como disse a Rainha de Copas, “não é fino mandar cortar alguém a quem você foi apresentado” (SAHLINS, 2003:174).

Se, de acordo com o próprio autor, é o convívio doméstico e relativamente íntimo que enquadra os membros dessa espécie na condição de sujeitos, é possível afirmar que, justamente por não partilharem desse tipo de convívio, os animais “de fora” e os animais “de rua” não alcançam esse status. Essa condição, embora não os torne comestíveis, de alguma maneira torna-os aptos ao “abate”, como, nos últimos trinta anos, vem sendo feito no Brasil, pela carrocinha, e na maioria dos países do mundo – inclusive nos EUA, de onde fala Sahlins (LIMA & SILVA NETTO, 2010). Em todos esses casos, a preocupação

88 Quem exibe ou relata de alguma maneira os acontecimentos intermediários costuma ser considerado cruel

ou nojento. Em 2015, a MC Donald’s estampou no papel das bandejas um desenho de esteira de produção, em que entravam vacas e saíam hambúrgueres. O material foi veiculado no facebook sob protestos. Anteriormente, ressalte-se, imagem semelhante da esteira de produção foi utilizada como denúncia em um documentário do Instituto Nina Rosa, em que os animais são retratados entrando nas engrenagens da esteira de produção e, enquanto são transformados em alimento, ouvem-se berros e urros e sangue escorre das peças. A tentativa de exibir o que ocorre “dentro da máquina” é estratégia recorrente do movimento de ativismo vegetariano Veddas, que exibe vídeos de abate na rua. Enquanto alguns militantes consideram essa a única estratégia eficaz de sensibilizar para o vegetarianismo, outros a consideram agressiva e acreditam que o público seja mais afastado que atraído para dialogar

inicial com a atuação dos Agentes de Controle pode ser comparada à da Rainha de Copas em apenas um aspecto: a preocupação com a fineza.

Assim, a análise de Sahlins sobre os cães é apropriada para pensar os animais “membros da família”, mas não se aplica aos “de rua” e precisa ser pensada com ressalva em relação aos que são “propriedade da família”.

Ademais, é válido ressaltar que animais domiciliados também podem se tornar sacrificáveis por uma associação com perigo, como pode ser exemplificada com os casos em que cachorros e gatos são levados aos Centros de Vigilância Animal pelos próprios responsáveis. Esses casos geralmente são justificados pela ideia de perigo, com afirmações de que o animal atacou alguém da casa ou que está doente. Nessas situações, um cão de raça pode tornar-se um equivalente do cão “de rua”, especialmente quando é abandonado, assumindo esse estigma inclusive no corpo, ao adquirir as doenças89, a magreza e o medo compartilhados entre a maior parte dos animais que vivem nas ruas das grandes cidades. Não é só o vira-lata sem coleira que pode cair na categoria de desimportante e sacrificável. O abate seletivo de cães e gatos “sem importância” resulta menos de uma diferença factual entre os animais “de rua” e “de casa” que da maneira como esses dois grupos são distintamente representados.