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4. ENTRE CIVILIDADE E MORALIDADE: O SURGIMENTO DA SENSIBILIDADE DE EMPATIA INTERESPÉCIE

4.2. MODERNIDADE, RACIONALIDADE E CIVILIDADE

4.2.1. Instabilidade nos mecanismos de legitimação

4.2.1.1. A ciência moderna e a classificação dos seres sencientes

Para que haja inibições morais, é preciso que haja uma vítima reconhecida. Esse primeiro requisito dependerá do ordenamento dos seres daquele mundo moral, de maneira

104 A expansão dessa moralidade não implica necessariamente na adesão ao vegetarianismo ou veganismo,

mas no reconhecimento do ordenamento moral vegano como legítimo. Essa é uma tendência perceptível no surgimento de falas de pudor sobre o consumo de produtos de origem animal, especialmente de carne. Nos últimos anos, nos ambientes frequentados pela classe média, especialmente naqueles ligados à intelectualidade, os vegetarianos passaram a ouvir menos piadas e mais confissões como “acho tão bonito ser vegetariano, mas acho que não consigo” ou “eu como mesmo, mas vocês é que estão certos”. Não existem levantamentos significativos sobre o crescimento do número de vegetarianos na RMR, mas um indício interessante sobre isso é o fato de que, entre 2003 (ano em que entrei na graduação) e 2015, o número de restaurantes vegetarianos fixados no entorno do campus saltou de um para cinco, além de haver garantia de opções veganas diariamente no Restaurante Universitário.

que os membros de uma espécie não humana só poderão ser considerados vítimas de uma ação moral se forem reconhecidos como moralmente relevantes.

Para que o ordenamento entre as coisas e pessoas envolvidas em determinada situação seja considerado justo, é preciso que os atores envolvidos considerem o ordenamento proposto consistente com os princípios de valor invocados como base (BOLTANSKI & THÉVENOT, 2006). Assim, as discordâncias sobre ações relativas a cães e gatos podem ocorrer em uma situação de concordância com o princípio valorativo (altruísmo ou empatia, por exemplo) ou em uma situação de discordância com o princípio valorativo. Este último caso, que Boltanski & Thévenot chamam de crítica externa, ocorre nas situações em que os interlocutores apresentam diferentes critérios de justiça.

Um exemplo dessa diferença são os debates sobre a exclusividade humana na comunidade moral. No século XVIII, David Hume atribuiu aos animais a capacidade de raciocinar e afirmou que, assim como eles, a maioria das pessoas também não era guiada pela razão nas reações cotidianas. De forma similar, o médico Erasmus Darwin (avô de Charles Darwin), criticou a ideia de que animais não poderiam ter direitos por serem incapazes de raciocinar e assumir deveres. Em sua argumentação, ele procurava demonstrar, com exemplos, que o ordenamento dos seres, que baseava essa exclusão, estava incorreto:

Não nos convence a observação diária de que eles estabelecem pactos de amizade entre si, [e] com a espécie humana? Quando cãezinhos e gatinhos brincam uns com os outros não é por um acordo tácito de que não se machucarão? E o teu cachorro favorito não espera que lhes dês sua refeição diária, pelos serviços e a atenção que te prestou? (THOMAS, 2010:172).

Bentham, por sua vez, realizou uma crítica externa e, em vez do teste, questionou o princípio de equivalência utilizado, argumentando que o nível intelectual dos animais não é critério relevante para pertencer, ou não, à comunidade moral. Em um extrato consagrado posteriormente, ao ser tomado como referência por Peter Singer (2008), Bentham questiona:

Os franceses descobriram já que a negrura da pele não é razão para um ser humano ser abandonado sem mercê ao capricho de um algoz. Poderá ser que um dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a forma da extremidade do os sacrum são razões igualmente insuficientes para abandonar um ser sensível ao mesmo destino. Que outra coisa poderá determinar a fronteira do insuperável? Será a faculdade da razão, ou talvez a faculdade do discurso? Mas um cavalo ou cão adultos são incomparavelmente mais racionais e comunicativos do que uma criança com um dia ou uma semana ou mesmo um mês de idade. Suponhamos que eram de outra forma –

que diferença faria? A questão não é: Podem eles raciocinar? Nem: Podem eles falar? Mas: Podem eles sofrer? (BENTHAM apud SINGER, 2008:7).

Em 1975, ao publicar “Libertação Animal”, Peter Singer recorreu a Bentham para questionar a fronteira moral estabelecida entre os humanos e as demais espécies. Opondo- se a essa proposta, alguns filósofos argumentaram que, para ter direitos, seria preciso ser um sujeito autônomo, membro de uma comunidade, ter a capacidade de respeitar os direitos dos outros ou ter senso de justiça (SINGER, 2008:8). Todos esses questionamentos têm por base uma moralidade em que só os humanos são moralmente relevantes. Em resposta, o filósofo realiza uma crítica externa semelhante à de Bentham, demonstrando a semelhança entre a natureza injusta do ordenamento dos seres realizado pelo racismo, pelo sexismo e pelo especismo. Levantando-se contra o racismo e o sexismo, muitas pessoas tentaram provar que havia um problema na realização dos testes que estabeleciam os ordenamentos, pois nada pode ser inferido sobre capacidades morais ou intelectuais do fato de uma pessoa ser negra ou mulher. Esse tipo de debate, afirma Singer, não é adequado, pois abre brecha para outros preconceitos, como um que se baseie em questões “objetivas”, a exemplo do QI ou de pesquisas que apontem diferenças genéticas entre os grupos. Singer argumenta, portanto:

A igualdade é uma ideia moral, e não a afirmação de um facto. Não existe nenhuma razão obrigatória do ponto de vista lógico para uma diferença factual de capacidade entre duas pessoas justificar qualquer diferença na consideração que damos às suas necessidades e interesses (...) Como implicação desse princípio de igualdade, a nossa preocupação pelos outros e nossa prontidão em considerar os seus interesses não deverão depender do seu aspecto ou das capacidades que possuam (...) Mas o elemento básico – tomar em consideração os interesses do ser, sejam estes quais forem – deve, segundo o princípio da igualdade, ser ampliado a todos os seres, negros ou brancos, masculinos ou femininos, humanos ou não humanos (SINGER, 2006:5).

Nos termos de Boltanki & Thévenot (2006), a crítica de Singer se direciona não ao teste aplicado, e sim ao princípio que lhe serve de base. O princípio da igualdade, proposto por Singer, circunscreve-se aos seres sencientes pelo fato de que a capacidade de sentir é tomada como condição necessária e suficiente para a existência de interesses, a começar pelo interesse básico de não sofrer, compartilhado por todos os seres que possuem essa capacidade. O critério da senciência, proposto por Bentham e difundido por

Singer, é adotado pelas diferentes correntes da Defesa Animal e é em torno dele que surge o princípio da não exploração, norteador da moralidade vegana.105

Visto que a exploração dos animais é uma atividade lucrativa que envolve o Estado, as empresas e os consumidores, a moralidade vegana responsabiliza o sistema econômico e a cultura antropocêntrica pelo sofrimento dos animais, apelando principalmente para uma tomada de posição por parte dos indivíduos. Para que o caráter moral da ação de escolher o que consumir se torne visível, as consequências dessas escolhas precisam ser expostas. Do ponto de vista da moralidade vegana, as principais consequências identificadas são a imposição de sofrimento e morte e, consequentemente, a privação desnecessária de prazer, integridade física e vida. Duas situações recentes foram aproveitadas pelo ativismo vegano para atacar os mecanismos de supressão da empatia pelas espécies “comestíveis”. A primeira delas aconteceu em setembro de 2015, quando uma carreta que levava 110 porcos para um frigorífico tombou na Avenida Rodoanel, em São Paulo. A partir de um telefonema inicial, uma rede de ativistas veganos formou-se em torno dos animais, que ficaram presos no caminhão durante 15 horas, passando por um segundo impacto numa tentativa frustrada de desvirar o veículo, feita pela Companhia de Concessões Rodoviárias (que administra a Rodoanel). Durante esse tempo, ativistas davam água na boca dos porcos, postavam-se junto a eles, em uma tentativa de confortá-los, mobilizavam-se para que não fossem dali para o abate e divulgavam tudo nas redes sociais (Facebook, WhatsApp e Youtube). Durante todo o dia, minha linha do tempo no facebook ficou cheia de fotografias que focavam nos olhos dos animais ou nas quais os ativistas e os porcos se olhavam nos olhos, em um gesto remetendo a carinho e confiança. No final do dia, os porcos sobreviventes foram cedidos pelo frigorífico e levados para um santuário e, em menos de 24h, o projeto de crowdfunding (financiamento através de doações) para viabilizar o tratamento e manutenção dos porcos resgatados em um santuário arrecadou R$150 mil. Em matéria no dia posterior ao acidente, no Portal Vista-se, site de ativismo vegano, o editor da Agência de Notícias de Direito Animal, sublinhou que “muitas pessoas têm declarado que vão

105 Mesmo que Regan (2006) proponha a vida psíquica como critério, na prática, os seres por ele abarcados

são os mesmos seres sencientes, ou seja, mamíferos, aves e possivelmente peixes, aos quais é dado o benefício da dúvida. Indo além disso, algumas propostas de ambientalismo vegano defendem a ampliação da consideração moral para os insetos, mas essa perspectiva não anula a priorização dos sencientes, apenas condena a exclusão dos demais. Em todos os casos, o princípio de não prejudicar os outros seres tem como preocupação central evitar a imposição de sofrimento e morte desnecessários. Naturalmente, a noção do que seja necessário ou desnecessário é um ponto polêmico.

parar de consumir alimentos de origem animal para não contribuir mais com sofrimentos como esse” (CHAVES, 2015). A ação em torno dos porcos da Rodoanel gerou, a um só tempo, a afirmação da senciência106 dos animais, a possibilidade de conexão emocional entre humanos e porcos, a visibilização do tratamento conferido aos animais “de produção” e a conexão entre o abate e o consumo. Um relato publicado em um blog vegano, intitulado O Holocausto Animal, resume as conexões traçadas nas publicações sobre o caso:

Era ainda o primeiro caminhão. Eu não sabia que mais três ainda chegariam ao santuário. Estávamos cuidando das primeiras porcas que desciam, apavoradas, gritando, sem saber que ali elas já estavam salvas. Eu e outros voluntários corríamos de um lado para o outro, enchendo garrafinhas de água e dando na boca delas. Elas bebiam desesperadas. Eu estava dando água para uma delas, saí para encher a garrafa novamente, e quando voltei para dar mais, ela já tinha partido. A ativista que estava do meu lado falou: “Querida, ela morreu”. Naquela hora eu desabei. Ela me abraçou forte e ficamos alguns minutos ali, chorando juntas e abraçadas. Quando nos soltamos, estávamos bem mais fortes. E cada uma seguiu seu caminho ali, cuidando de outras dezenas de animais que ainda poderiam ter salvação. Não era hora para amolecer, a gente precisava ser forte. E fomos.

Eu não tenho como voltar atrás e devolver a vida de cada bacon, calabresa, presunto ou salsicha que um dia eu comi. Mas não me recusarei a fazer o mínimo que eu puder pelos que ainda vivem nesse mundo, e aguardam desesperadamente pela nossa compaixão e misericórdia. Tudo o que eu puder, por menor que seja, eu sempre farei. Por eles e para eles, sempre.

Pouco mais de um mês depois, ocorreu em Bacarena (PA) o naufrágio de uma embarcação carregada com 5 mil bois, que chamou atenção no facebook, pela divulgação de vídeos em que os animais tentavam escapar do naufrágio. A notícia foi compartilhada na fanpage da Sociedade Vegetariana Brasileira com um chamado ao “Desafio 21 dias sem carne”, uma campanha que a entidade havia iniciado naquela mesma semana. Os

106 O reconhecimento da senciência é a percepção de algumas espécies animais como dotadas de vida

emocional e mental (sensibilidade e consciência), comumente referida como humanização. Em outra ocasião, procurei trabalhar com este termo, dada a sua recorrência nos estudos sobre relações com animais não humanos (LIMA, 2015). Posteriormente, porém, optei por tratar esse fenômeno como reconhecimento da senciência porque os conceitos de humanização e antropomorfização induzem o leitor a pensar que vida emocional e mental são de fato uma exclusividade humana. A crítica a essa visão já foi detalhadamente trabalhada por autores de diversas disciplinas, da etologia à filosofia, passando pela neurociência, de forma que, aqui, parece-me suficiente frisar que mamíferos e aves, por serem dotados de sistema nervoso central, possuem sensibilidade à dor, capacidade de formar laços afetivos, capacidade de diferenciar indivíduos (e agir de acordo) e sentem pelo menos emoções básicas, como medo, angústia, raiva, ansiedade e alegria (DARWIN, 2009; MASSON & McCARTHY, 2001; SEARLE, 2006 e 2010). Por outro lado, é importante ressaltar que nem o reconhecimento dessas emoções nem as interpretações a respeito delas derivam da natureza dos animais, e sim de fatores sociais. Quando falo em afirmação de senciência, em vez de reconhecimento, refiro-me à ação dos ativistas, no sentido de incentivar esse reconhecimento em outras pessoas.

argumentos lançados no texto dirigem-se à afirmação da senciência dos animais de produção e à visibilidade do problema moral de consumir carne:

Esta semana, mais uma grande tragédia trouxe a todos os brasileiros uma oportunidade. A oportunidade de refletir sobre a crueldade extrema e em larga escala a que estamos submetendo os animais.

Há apenas pouco mais de um mês, a tragédia dos #PorcosDoRodoanel também nos convocou a despertar, expondo para a sociedade o sofrimento de animais

que são sencientes, inteligentes e merecem todo o nosso respeito - mas que são invisíveis aos olhos dos moradores das cidades brasileiras.

Quantas tragédias mais serão necessárias para que as pessoas despertem?

Quantas imagens chocantes precisaremos ver nos noticiários para perceber que, na verdade, esses horrores nada mais são do que o suplício DIÁRIO de milhões de animais no Brasil e no mundo?

Quando não morrem num acidente de carreta ou num naufrágio, esses animais

sofrem e morrem de maneira igualmente trágica, nas granjas de confinamento intensivo, no transporte torturante e nos matadouros.

Você pode mudar isso. E pode começar hoje. Encare o Desafio

#21DiasSemCarne e não faça mais parte de nada disso <3

www.desafio21diassemcarne.com #pelosanimais

Esses dois exemplos demonstram como a sensibilidade de empatia interespécie pode emergir a partir da desestabilização dos mecanismos de supressão da empatia. Tanto no caso dos porcos da Rodoanel quanto dos bois de Bacarena, a emergência de um problema moral envolveu a afirmação da senciência dos animais (e, portanto, preocupação moral com seu sofrimento e morte)107, a identificação de responsáveis pelo problema (sistema econômico, empresas e consumidores) e a visibilização das consequências das ações morais (sofrimento e morte desnecessários de animais sencientes).

Ainda que ocorram de maneira esporádica, dificultada pela invisibilidade moral da violência especista contra animais “de produção”, episódios como esses demonstram que o choque da sensibilidade civilizada diante do sofrimento pode servir como elemento impulsionador para a sensibilidade de empatia interespécie. Assim, ao contrário do que propõe Bauman em relação ao Holocausto, gostaria de argumentar que a civilidade, no sentido proposto por Elias, favorece a expansão de uma condenação ao sofrimento e à morte. Um exemplo interessante para demonstrar essa conexão é a Declaração Universal dos Direitos Animais, proclamada em assembleia da Organização das Nações Unidas para

107 É possível, ainda, identificar uma preocupação com a dignidade dos animais não humanos. Na

moralidade vegana, por exemplo, esse tema está presente em proposições como a de que nenhum animal deve ser utilizado para fins humanos, mesmo que isso não implique em sofrimento, ou de que os membros de uma espécie, cujo habitat deixou de existir, não devem ser reproduzidos em cativeiro, pois seus descentes não têm perspectiva de vida livre.

a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em janeiro de 1978. Alguns trechos desse documento, do qual o Brasil é signatário, merecem destaque:

Art. 1º - Todos os animais nascem iguais e têm o direito à existência. Art. 2º -

a) Todo animal tem o direito de ser respeitado.

b) O homem, como uma espécie animal, não pode atribuir-se o direito de exterminar os outros animais ou de explorá-los, violando este direito. Ele deve usar sua consciência a serviço dos animais.

c) Todo animal tem o direito a consideração, bom tratamento e proteção por parte do homem.

Art. 3º -

a) Nenhum animal deverá ser submetido a maus tratos ou ações cruéis b) Se a morte de um animal for necessária, ela deve ser instantânea, sem medo ou dor.

Art. 11 -

Toda ação que causa a morte desnecessária de um animal é um crime contra a vida.

Art. 12 -

a) Todo ato que leva à morte de um grande número de animais selvagens, é um genocídio, ou seja, um crime contra a espécie.

b) Poluição e destruição levam à extinção de espécies Art 14 –

b) Os direitos animais devem ser defendidos por lei, assim como são os direitos humanos108

Este documento indica que a ampliação da sensibilidade civilizada, apontada no capítulo 1, sedimentou-se a ponto de gerar um conjunto de regras que têm como ponto em comum a tentativa de reduzir a violência no trato com os animais não humanos. Já no preâmbulo, é feito o destaque de que os animais de que se fala no documento são os sencientes. Nessa declaração, não se faz menção a nenhuma das temáticas que surgem posteriormente como dilemas morais para a moralidade vegana e a moralidade de proteção, a exemplo do consumo de produtos de origem animal, da reificação de animais como mercadoria ou do uso instrumental de animais de estimação. Ainda assim, ela gerou um ambiente favorável à expansão da sensibilidade de empatia interespécie, preocupada não apenas com o sofrimento físico, mas com a vida mental e emocional reconhecida nos animais sencientes.

Mais que um objeto de preocupação, esse processo de civilização das relações com animais não humanos definiu também os responsáveis pelos dilemas morais que emergiram. Já na declaração de 1978, percebe-se que é sobre os seres dotados da capacidade de fazer escolhas morais que recai a responsabilidade pelo bem-estar de todos

108 Tradução minha. Documento original disponível em:

os outros seres. Os humanos devem “usar sua consciência a serviço dos animais” e garantir aos animais o direito de receber proteção e bom tratamento109.

A relação entre civilidade e empatia é perceptível também nos vegetarianos/veganos e nas reações dos carnistas às cenas de sofrimento e abate de animais na indústria de alimentos. Se a moralidade estivesse efetivamente suplantada pela normalidade, como argumenta Bauman (1998), por que, além do choque e do pudor, haveria, nesses momentos, expressões de culpa? Mais ainda, se a civilidade se limitasse a evitar a violência irracional, o bem-estar dos animais “de criação” seria o suficiente para eliminar qualquer problema no consumo de produtos de origem animal, mas essa ideia é rapidamente descartada quando se observa o crescimento do número de vegetarianos e veganos justamente nos países ocidentais que adotam regras rígidas de bem-estar animal. Todos esses indícios levam à conclusão de que quanto maior a sensibilidade de evitação ao sofrimento e à morte, maior a possibilidade de crescimento da sensibilidade de empatia interespécie.

Para muitos indivíduos, a decisão de se tornar vegetariano ou vegano pode ser fruto de uma repulsa civilizada ao sofrimento e à morte de animais sencientes, sem que haja um argumento moral elaborado. Entretanto, como indica Joy (2014), a repulsa é uma emoção social que, nesse caso, indica a presença de empatia. Por muitos anos, minha justificação diante dos questionamentos sobre ser vegetariana resumiu-se a afirmar “descobri que não preciso matar para comer”, uma frase que expressava tão somente o desejo de me afastar de práticas que gerassem morte de animais não humanos, mas não colocava em questão o sofrimento gerado pela indústria de ovos e laticínios, por exemplo. Apenas a partir do momento em que comecei a travar contato com ativistas veganos, ler a respeito e assistir a vídeos sobre a indústria de alimentos, comecei a traçar conexões entre o vegetarianismo e uma crítica mais ampla a um sistema econômico erguido sobre a exploração de pessoas e animais. O que até então me parecia uma postura pessoal tomou, aos poucos, a forma de um conjunto de valores, normas e comportamentos automatizados, como escolher produtos a partir da leitura minuciosa da lista de ingredientes. Esse conjunto, relativamente estável de emoções, comportamentos e zonas de relevância, que denomino “moralidade vegana” é constituído e reforçado para cada indivíduo a partir da inserção em uma rede de contatos, potencializada por ferramentas

109 Embora a noção de que os animais precisem da proteção humana seja alvo de debate entre os ativistas,

é um consenso que, entre as criaturas do reino animal, o ser humano é o único dotado de responsabilidade moral em relação às outras espécies.

como Facebook e What’sApp. E é a partir dessas ferramentas de comunicação que os