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2. O CAMPO DE PESQUISA E O PERCURSO METODOLÓGICO

2.2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

2.2.3. Observação participante

As diferentes modalidades de pesquisa participante são ricas para a compreensão das lógicas internas de grupos, especialmente sobre aquilo que não é explicado nas falas cotidianas ou entrevistas por parecer óbvio demais para os membros. Ao optar por essa estratégia, meu interesse era me aproximar ainda mais das relações de tutoria travadas por outras pessoas e usar a proteção animal como ponte para o estabelecimento de diálogos sobre animais de estimação. Resolvi, portanto, aproveitar a imersão no contexto pesquisado, aproximando-me do que Jaccoud & Mayer (2008:262) caracterizam como “modelo da impregnação”, no qual o pesquisador se integra ao meio estudado, buscando aproximar-se ao máximo daquilo que os atores pesquisados vivenciam, sentem e assumem como preocupação.

A realização desse objetivo só foi possível devido à minha intensa participação no mundo pesquisado, que possibilitou acessar dimensões pouco exploradas nos estudos sobre relações sociais com cães e gatos. No Brasil, os estudos antropológicos de maior importância nessa área são marcados por um distanciamento considerável dos pesquisadores em relação ao mundo da tutoria e/ou da proteção animal. Segata (2012) confessou seu incômodo com o ambiente da clínica veterinária, com “aquele cheiro de rações e pulgas”; Matos (2012) relatou medo dos cães e incapacidade de diferenciar latidos amistosos de latidos agressivos ao conhecer a “favela de cães” em que fez pesquisa; Osório (2011 e 2012) realiza etnografia virtual, sem contato face a face com os sujeitos; Lewgoy & Sordi (2012) não se propõem a realizar etnografias. O distanciamento não reduz a validade ou o mérito desses estudos, que são aqui tomados como referências, mas impõe uma barreira em relação aos aspectos subjetivos e emocionais implicados nessas relações.

Optei pela observação participante como ferramenta metodológica central desta pesquisa por entender que os dados gerados dessa maneira me permitiriam compreender do ponto de vista nativo a experiência moral das relações com cães e gatos em um contexto civilizatório. Foi com essa intenção que, entre 2013 e 2014, mergulhei sem restrições na proteção animal, assumindo a observação participante como ferramenta metodológica fundamental para acessar a experiência de tutores que vivenciavam a experiência de tutoria em um contexto de civilização das relações. Por já fazer parte do Adote um Vira-Lata, a inserção no campo não seria um problema, mas alguns desafios teriam que ser enfrentados. Primeiramente, havia o risco transformar a tese em uma pesquisa sobre a proteção animal, e não uma pesquisa sobre a experiência moral nas relações com cães e gatos que tomasse a proteção animal como ponto de partida. Em segundo lugar, havia um problema ético envolvido, pois, mesmo que utilize nomes fictícios, os protetores citados neste trabalho são capazes de reconhecer uns aos outros, de modo que, se estivessem focados nas relações entre os protetores, meus relatos teriam o potencial de gerar conflitos comigo e entre eles. Para resolver esses dois problemas, optei por focar os registros de campo nas minhas interações com os tutores, entendendo a mim mesma como representante de posturas e contradições típicas da proteção animal. Dado que, no período delimitado para a observação, participei de 20 eventos de adoção47

47 A cada ano, são realizados 11 eventos de adoção. O último evento do ano ocorre no mês de novembro,

e 14 mutirões de castração, o número de interações travadas com tutores foi tão grande que nem eu mesma seria capaz de identificar hoje seus nomes ou rostos.

A partir das atividades que realizei como participante, travei contato com tutores de perfis diversos e deparei-me tanto com lógicas cotidianas não questionadas nas relações quanto com tensões entre garantir e tolher a animalidade dos cães e gatos, ansiedade diante das diversas e contraditórias reivindicações sobre essa relação, entre outras questões. A proteção animal foi, portanto, uma ponte para chegar aos tutores e analisar de que maneira eles se colocavam nas interações de ajuste e negociação em que seu comportamento em relação a cães e/ou gatos era submetido a avaliação e crítica por parte de outros tutores ou dos protetores.

Por assumir minha própria experiência como central, registrei no diário de campo os meus próprios comportamentos, interações e emoções, maximizando a orientação de inserir a si mesmo como sujeito de observação nos relatos (JACCOUD & MAYER, 2008:274). Nesses registros auto-centrados, os demais protetores entraram apenas como coadjuvantes, posto que a centralidade dos registros foram as minhas experiências, os dilemas e os conflitos morais em que me vi colocada e as emoções sentidas por mim nas relações com gatos, cães e humanos em situações como resgate, lar temporário, contatos com possíveis adotantes (inclusive os que são negados), entre outras. Isso não significa que a pesquisa tenha sido sobre mim, e sim que a análise posterior de situações vivenciadas e registradas na perspectiva de participante me permitiram compreender essas experiências em riqueza de detalhes.

Ora focando as expressões dos tutores e protetores (nos registros de minhas interações com eles), ora focando minhas próprias vivências (dilemas morais, emoções vivenciadas e relações com humanos e não-humanos), meu diário de campo serviu como elo entre as minhas experiências e as de outros tutores e protetores e como elemento para reflexão sobre o contexto em que tais vivências ocorrem.

Devido ao foco da pesquisa, concentrei-me, por um lado, nas interações problemáticas entre atores que apresentam moralidades distintas e nas justificações oferecidas pelos atores durante os conflitos e, por outro lado, nas reflexões realizadas pelos tutores e/ou protetores sobre suas próprias relações com cães e gatos, a respeito de questões referentes a bem/mal, justo/injusto, digno/indigno, limpo/sujo, conveniente/inconveniente.

Entre todas as atividades do Adote um Vira-Lata, as mais importantes para esta pesquisa foram os eventos mensais de adoção, que proporcionaram contatos diversos com

tutores de cães e gatos vindos de toda a Região Metropolitana do Recife, por isso essas atividades serão descritas com maiores detalhes. É válido citar, porém, que meu contato com tutores também ocorria ao longo do mês por facebook, telefone e pessoalmente nos cadastros e na realização dos mutirões de castração promovidos para atender animais domiciliados nas áreas socialmente vulneráveis do bairro da Várzea48.

2.2.3.1. Eventos de adoção

Desde novembro de 2011, os eventos de adoção do Adote um Vira-lata ocorrem uma vez por mês, sempre aos sábados, das 9h às 16h. Devido à presença de uma unidade do Expresso Cidadão em frente à área da adoção e ao fato de um cartaz na entrada do parque anunciar o evento para quem passa pela Avenida Caxangá, as visitas não são apenas de pessoas interessadas em adotar, havendo também um grande público de curiosos, somando de 100 a 150 pessoas por mês49. Em todos esses eventos, assumi a

função de recepcionar os visitantes e fazer a sua triagem, por isso participei de uma grande quantidade de diálogos com um público bastante diverso50.

No contato inicial, a partir de um diálogo semi-estruturado51, os visitantes

comentam o que os motivava a buscar (ou a querer doar) um animal, quais os padrões de comportamento esperados e que tipo de contato consideram desejável e/ou normal (estabelecendo fronteiras espaciais na casa e limites para o contato físico).

Como participante, pude fazer registros que dificilmente seriam gerados por entrevistas ou pela observação não participante, em que os sujeitos, sabendo que estão sendo observados por um pesquisador, tendem a aumentar o automonitoramento e deixam de fazer observações que fariam cotidianamente, estive inserida em interações mais

48 Nos mutirões também foram castrados animais errantes do campus da UFPE e das ruas das comunidades

visitadas, mas a maioria dos animais identificados na área eram domiciliados ou semi-domiciliados.

49 Exceção deve ser feita ao mês de novembro, em que, aproveitando a realização da Exposição Nordestina

de Animais, realizamos um evento com duração de uma semana, recebendo um público maior e mais amplo, pois muitas pessoas do interior do estado comparecem a esse evento anual.

50 Pessoas que já possuem animais são orientadas sobre castração, têm suas dúvidas esclarecidas e a

conversa termina com a indicação de clínicas que fazem a cirurgia a baixo custo; os interessados em ajudar são esclarecidos sobre o projeto e encaminhados para continuar o diálogo com outro extensionista. Os interessados em adoção, por sua vez, passam por uma entrevista na qual são avaliados e, a partir daí, encaminhados para o preenchimento do termo de adoção ou, caso sejam considerados inaptos à adoção, são aconselhados a repensar ou polidamente rejeitados. Em geral, realizo entrevistas dos interessados em gatos e encaminho os interessados em adotar cães para outra pessoa do programa entrevistar.

51 Perceba-se que não se trata de uma entrevista formal, mas de um contato inicial. As perguntas que o

compõem foram elaboradas por mim como roteiro, com o objetivo de ajudar os protetores a avaliarem o candidato a adoção, mas, no meu caso, possibilita também a identificação de questões pertinentes a essa pesquisa.

espontâneas, como as observações de nojo, medo ou desprezo com que muitos visitantes desavisados dos eventos de adoção se referiam aos animais, especialmente aos gatos. Além disso, por cumprir nos eventos do Adote a função de recepcionar visitantes, fui procurada para resolver problemas que revelam muito das relações travadas com cães e gatos. Pediram minha ajuda pessoas que queriam “dar fim” (nesses termos) a um animal; queriam colocar para adoção animais que estavam sendo ameaçados ou maltratados em suas casas (por cônjuge, pai ou mãe); queriam indicação de um abrigo para deixar animais encontrados na rua; queriam indicação de um abrigo para deixar seus próprios animais; queriam castrar seus animais (em geral as fêmeas); queriam indicações sobre tratamento veterinário; queriam resolver inconvenientes da convivência com cães ou gatos; queriam desabafar sobre a perda de um animal (e mostrar fotos), entre outros casos.

É comum que as pessoas interessadas em adotar compareçam com outras pessoas de casa, especialmente os cônjuges, mas, entre os que vão sozinhos, a maioria são mulheres. No momento de responder ao questionário e assinar o termo de responsabilidade pelo animal, as mulheres também são maioria.

Durante os primeiros eventos nos quais minha participação já estava combinada ao interesse de observação, tentei fazer registros ao longo do dia, após as interações que considerava significativas. Essa estratégia não funcionou porque além de não haver tempo, a condição de participante me fazia esquecer da pesquisa durante as interações. Em geral, eu só lembrava da relevância sociológica de tudo aquilo quando já estava em casa, mas a exaustão física e emocional que se segue a um evento de adoção dificultava a escrita dos diários de campo. Passei, então, a fazer anotações breves de situações e diálogos marcantes – ou por terem me mobilizado emocionalmente ou por terem gerado reações entre os participantes. Em 2014, quando comecei a categorizar essas anotações, percebi recorrências importantes nos diálogos travados em eventos de adoção e, tendo isso em vista, passei a detalhar os registros mais antigos com descrições pormenorizadas.

Outra questão a ressaltar é que em todos os eventos de adoção de que participei, há sempre casos em que os protetores consideram o candidato inapto a adotar o animal escolhido ou a adotar qualquer animal, seja por uma avaliação sobre a segurança do animal na residência (estrutura da casa, tráfego de carros, acesso à rua, conflito com vizinhança, etc), seja por uma avaliação sobre a possibilidade de o candidato se adequar ou não ao que se espera dele como tutor (cuidados e espaço destinados ao animal, disposição em dedicar tempo ou realizar gastos, entre outros). Nesses casos, os protetores procuram convencer o candidato a desistir da adoção ou explicam o motivo pelo qual a

conclusão do processo não será efetuada. Trata-se de uma situação tensa e com grande potencial de gerar conflitos e, justamente por isso, reveladora para os objetivos dessa pesquisa. Por um lado, as rejeições revelam um descompasso entre o que os protetores consideram que deva ser a relação do tutor com um animal de companhia e as concepções apresentadas pelos candidatos; por outro lado, as reações que questionam a necessidade de dar explicações demonstram a persistência da classificação tradicional dos animais de estimação como bens a serem adquiridos sem grandes protocolos. Em outros casos, ainda, os protetores aceitam concluir a adoção, mediante negociações com os candidatos, que se comprometem a realizar ajustes entendidos como necessários à segurança ou ao bem estar do animal. Nesses casos, é interessante observar que aspectos são negociáveis e que ajustes são considerados indispensáveis.