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3. OS IMPULSOS CIVILIZADORES E A POSIÇÃO AMBÍGUA DOS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO NO BRASIL

3.2. ANIMAIS DE DENTRO, ANIMAIS DE FORA E A CARROCINHA

3.2.3. Animais na rua e o pânico da raiva

O temor em relação aos animais “de rua” foi certamente estimulado pelas representações sociais sobre a raiva, associada aos gatos e, principalmente, aos cães errantes. Essa doença, pouco conhecida e muito temida, foi objeto de histórias fantásticas de terror. Lembro-me de ser alertada para nunca me aproximar de um cão que estivesse espumando e de ouvir que, nesses casos, era preciso que um adulto matasse o cão, pois ele atacaria todas as pessoas que avistasse e elas ficariam exatamente como ele. Em minhas fantasias de infância, desenvolvi estratégias de fuga para as duas situações que me pareciam possíveis e igualmente assustadoras: deparar-me com um cão espumando na rua e deparar-me com um tubarão no mar. Por volta dos 7 anos de idade, em 1993, uma mulher adulta contou-me que soubera de um homem contaminado com raiva, que ficara com olhos vermelhos, babando e pedindo para que o mantivessem enjaulado, porque não conseguia controlar a vontade de atacar e morder outras pessoas. Aquela história assombrosa da raiva como uma espécie de transformação em lobisomem esteve presente em meus pesadelos por muitos anos.

O pânico gerado por esse tipo de relato não era algo isolado. Enquanto a população se apavorava diante de um animal em situação de rua, os profissionais responsáveis pelo combate à raiva expressavam um pânico semelhante, mas, em vez de anedotas, citavam dados científicos que, por várias, décadas, foram considerados inquestionáveis. Como exemplo, é possível citar uma carta de leitor, enviada à revista Cães e Companhia como resposta às denúncias realizadas na revista a respeito da atuação da carrocinha em São Paulo. Apresentando-se como acadêmico de Medicina Veterinária e Zootécnico da Universidade de São Paulo, o leitor afirmou ter estagiado na Divisão de Controle de Zoonoses da Secretaria de Saúde do município. Estabelecido o lugar de fala, questionou a matéria, que, afirma, apresentou “visões unilaterais”, deixando de considerar os serviços prestados à comunidade:

Por que não há no artigo depoimentos de médicos veterinários que trabalham nesta Divisão? (...) Por que não abordar os aspectos epidemiológicos da doença? E aqui respondo a uma pergunta contida no artigo: por que não se permite a adoção de animais apreendidos? Porque não se sabe a origem do animal, porque o vírus da raiva pode apresentar uma fase assintomática de até dois anos. Conclui-se, portanto, que seria uma atitude leviana entregar um animal a uma família, expondo-a a contrair tão grave doença. Por que não publicar, juntamente com as fotos da captura dos cães, fotos dos animais acometidos de raiva ou então, para ser mais sensacionalista, as fotos de seres humanos morrendo com o vírus da raiva? A conclusão que posso tirar de tudo

isso é que não foi o artigo escrito de forma a esclarecer o público e sim que este tivesse uma visão unilateral, a antiga história do mocinho e do bandido. Não há mocinhos, não há bandidos. Há um grande problema a ser resolvido, o de preservar a saúde de 10 milhões de pessoas e que os senhores, com seu artigo, não contribuíram em nada (CÃES & CIA, 1983 Nº 51:11).

Em resposta à carta, os editores começam afirmando: “já publicamos uma matéria sobre as atividades e os serviços prestados pela carrocinha” e, após o restabelecimento da importância da captura e morte, ponderam que “independentemente de se tratar de um serviço de utilidade pública, não há necessidade de a Divisão de Controle de Zoonoses proceder à captura de maneira tão brutal”. Naquele início da década de 1980, a carrocinha tinha sua atuação legitimada, mas havia uma demanda para que o recolhimento dos cães (os gatos não são citados) fosse realizado de forma civilizada.

De maneira geral, as rondas da carrocinha eram feitas em horários de pouca circulação de pessoas nas ruas, havendo apenas a constatação posterior de sua passagem, a partir do desaparecimento dos “animais vadios” que frequentavam o local. Essa atuação discreta certamente não era sempre possível nas regiões periféricas, onde a circulação de pessoas nas ruas é maior. Além disso, o costume de manter os animais dentro de casa, sem acesso livre à rua, começou a ser desenvolvido nas classes médias e alta, sendo mais fácil a carrocinha capturar um animal tutorado nas regiões periféricas, visto que, nessas áreas, cães e gatos são criados soltos. Também nessas áreas, o desconhecimento e a sensação de impotência diante do Estado são maiores, de maneira que alguns relatos apontam tutores que não sabiam da possibilidade de recuperar seus animais indo até o CVA ou CCZ. Por fim, a circulação da carrocinha nas periferias certamente era maior, pelo fato de ser mais elevado, nessas áreas, o quantitativo de animais soltos nas ruas (tanto por ficarem soltos, quanto por haver uma maior concentração de habitações).

A associação entre pobreza e doença, já constatada no caso das políticas relacionadas à saúde humana, repete-se no caso dos animais de estimação. Seja por considerar que os cães e gatos de pessoas pobres não serão cuidados, seja pelo hábito cultural das periferias brasileiras de criá-los com acesso livre à rua, esses animais costumam ser mais diretamente relacionados a qualquer doença, mesmo que a transmissão não tenha relação com a higiene do animal, como é o caso da leishmaniose visceral. Essa constatação é feita por Bevilacqua no caso de Minas Gerais dos anos 1990:

As matérias jornalísticas que comentam o aparecimento da leishmaniose visceral no DS Centro-Sul [área nobre] permitem identificar a representação social que a população desta área tem a respeito dessa doença. Para os moradores desses bairros o calazar seria “coisa de cachorro de gente pobre,

sem higiene e sem alimentação adequada”, ou que a “doença fosse um problema restrito às favelas e que só atingisse animais desnutridos e raquíticos”, o que explica a admiração que as pessoas manifestam quando a doença passa a acometer os cães pertencentes a proprietários residentes no distrito (BEVILACQUA et al, 2000:93).

Entretanto, até década de 1990, os animais “de casa” e “de rua”, assim como os animais das classes médias e baixas tinham uma vida parecida muito parecida na maior parte das cidades brasileiras: circulavam sozinhos pelas vias públicas e estavam igualmente desprovidos de cuidados veterinários. A preocupação expressada naquele período, nos projetos de lei e produtos midiáticos, era com o perigo que esses animais poderiam oferecer aos transeuntes. Em 1983, a reportagem de capa da revista Cães & Companhia tratava do tema “O cão na cidade” e relatava conflitos e proibições relativas à manutenção de cães em apartamentos, bem como tentativas de garantir o direito de criar animais em condomínios ou, pelo contrário, de proibir sua circulação nas ruas.

A conservação do asseio nas calçadas tem sido uma preocupação de outros parlamentares, atendendo às reivindicações da comunidade. Há cerca de um ano, o vereador Américo Camargo, do Rio de Janeiro, recebeu uma petição de um grupo de moradores da Zono Sul, propondo a proibição do passeio de cães nas calçadas e praias. Preferindo não se aprofundar no assunto por não se julgar com conhecimentos técnicos suficientes para sustentar a tese em plenário, o vereador achou que o melhor seria arquivar o plano indefinidamente (...) Há cerca de 7 anos atrás, o então deputado estadual Frederico Trota, também do Rio de Janeiro, elaborou um projeto, determinando a constituição de uma comissão para apresentar medidas e sanções com a finalidade de conter a poluição das vias públicas por animais (...) Se aprovado, o projeto praticamente determinaria a impossibilidade de se criar cães na cidade. É sabido que os passeios são indispensáveis ao bom desenvolvimento físico (CÃES &CIA, 1983, nº51:9).

A livre circulação de cães domiciliados pelas ruas fica expressa nas tentativas de ajuste do comportamento dos tutores, alertando para os perigos de deixá-los soltos, especialmente no caso dos “cães de guarda”:

Nem sempre é possível impedir ataques aos que adentram uma propriedade, uma vez que o cão de guarda é condicionado a esse papel. Mas, durante os passeios, convém conduzi-lo na guia para evitar acidentes a terceiros, com os consequentes processos de responsabilização criminal. Embora não existam leis estaduais proibindo a circulação de animais soltos, algumas portarias municipais determinam que os cães sejam levados pela guia (CÃES &CIA, 1983, nº51:10).

Similarmente, já em 1994, uma matéria sobre a raça Husky Siberiano ressalta como uma de suas características a tendência dos cães fugirem quando deixados sozinhos e a qualidade de que tenderiam a retornar. Nas palavras de uma criadora entrevistada “o

Husky não foge, sai (...) mas pode ir longe e se perder”. Mesmo que estimulassem os passeios acompanhados, a naturalidade com que os entrevistados contavam histórias de portões abertos e saída dos cães é algo a ser destacado:

Nem sempre um portão aberto significa fuga. Armando reforça essa ideia lembrando que “uma fêmea saiu e ficou olhando a rua. Minha irmã me avisou. Chamei-a, ela logo entrou”. Maria de Fátima conta que “saíram correndo para a rua 3 Huskys, 1 Dobermann e 1 Schnauzer. Perdi-os de vista. Chovia. Em 10 minutos os Huskys voltaram. Tivemos que ir atrás dos outros” (CÃES & CIA, 1994, nº176:7).

Assim, embora os animais domiciliados frequentemente andassem sozinhos nas ruas, se alimentassem com restos de comida e não costumassem ser levados ao veterinário, o estigma de transmissores de doenças foi imputado fundamentalmente àqueles em situação de rua. Essa dicotomia, que legitimava a captura e morte dos cães e gatos errantes, foi reforçada com a difusão das raças caninas, diante das quais os animais capturados pela carrocinha tornavam-se ainda menos relevantes. A chave para compreender como surgiram as mobilizações contra o extermínio de animais em situação de rua, portanto, precisa ser buscada em algo mais que o reconhecimento da senciência desses animais. Antes que a preocupação moral com os animais exterminados viesse à tona, várias medidas humanitárias foram adotadas como forma de proteger a sensibilidade civilizada das pessoas envolvidas.

3.3. EUTANÁSIA DE ANIMAIS NÃO-HUMANOS: A ÉTICA DISPENSADA