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1. IMPULSOS CIVILIZADORES NAS RELAÇÕES COM CÃES E GATOS

1.5. IMPULSOS CIVILIZADORES NAS RELAÇÕES COM OS ANIMAIS NÃO-HUMANOS: INDÍCIOS DE UMA TENDÊNCIA

1.5.1. Dos cães de guarda aos cães de companhia

Embora os cruzamentos de cães sejam prática antiga, foi a partir do século XIX , com a criação do primeiro Kennel Club, na Inglaterra, que essa atividade passou a ser realizada de maneira permanente, sistemática e submetida a avaliação, registro e premiação. Esses cruzamentos eram realizados com objetivos variados, que iam desde o aperfeiçoamento de cães para o trabalho até o desenvolvimento das raças pequenas para fazer companhia às damas da alta sociedade. Neste último caso, eram selecionados para os “exemplares” menores e mais dóceis, bem como aqueles que apresentassem padrões de cor e pelos diferenciados. Os cães das damas, tanto quanto os dos cavalheiros das classes altas, são classificados por Thomas como inúteis, porque não possuíam características úteis para o trabalho, como força para tração e habilidade para o pastoreio.

(...) em geral esses cães trabalhadores parecem ter sido considerados sem maiores sentimentos; e normalmente eram enforcados ou afogados quando deixavam de ter utilidade. “Meu velho cão Quon foi morto”, escreveu um agricultor de Dorset em 1608, “e o cozinhamos para fazer banha, que rendeu cinco quilos”. Não eram esses animais necessários, mas os desnecessários, sabujos [farejadores/caçadores] e cãezinhos de estimação em particular, que mereciam real afeto e condição mais elevada (THOMAS, 2010:144).

Entre os cães “inúteis”, as raças “femininas” eram as que se adequavam à vida reclusa, como a das mulheres da época, enquanto as raças “masculinas” eram aquelas adequadas a atividades externas de lazer realizadas pelos fidalgos. Os cães para homens eram de dois tipos: havia os cães selecionados para terem porte atlético e velocidade, adequados à caça e ao convívio com os cavalos, como o Foxhound Inglês e o dálmata, e havia os cães selecionados pelo faro para encontrar animais entocados durante a caça, mesmo que não possuíssem estrutura física para participar de corridas e cercos, como o dachshund, o basset hound, o beagle e o grupo dos terrier. Como destaca Thomas (2010), esse grupo de cães “especiais”, mantidos por bastante tempo como exclusividade da aristocracia, eram considerados muito diferentes dos outros cães, tanto quanto os próprios aristocratas em relação aos outros homens.

Mesmo hoje, ao cão de trabalho do agricultor se proíbe entrar em casa, enquanto os cães de estimação são tratados de forma mais favorável; assim

como os funcionários que excluíam os cachorros da corte de Henrique VIII faziam uma exceção aos spaniels das damas (THOMAS 2010:159)32.

Do século XX em diante, com a mudança no tipo de lazer desfrutado pelas classes altas, a caça se tornou um passatempo raro, os esportes praticados com cães passaram a ser corridas e agility33, as raças de médio e grande porte valorizadas passaram a ser aquelas adequadas à guarda e as raças de companhia tornaram-se mais populares também entre os homens e em todas as classes sociais. Diante dessas transformações, muitas raças inicialmente desenvolvidas para o trabalho foram sendo adaptadas para a função de companhia, com a seleção para a cruza a partir de características estéticas, para exposição. O faro, a agilidade e a resistência física foram sendo reduzidos, enquanto o tamanho dos animais (cada vez menores), a pelagem e as cores tornaram-se mais importantes.

Para além de toda a contextualização, necessária para que se entenda o surgimento dos animais de estimação e de seu status especial junto aos humanos, é preciso analisar, em suas especificidades, a maneira como, em cada local, os animais de estimação foram atingidos pelos impulsos civilizadores até aqui apresentados. Em países como Inglaterra e França, o desenvolvimento das raças caninas para companhia levou esses animais aos espaços de convívio da família, no interior dos domicílios. Além disso, face à melancolia das relações com a natureza que se desenvolveu nas grandes cidades europeias, os animais de estimação tornaram-se uma espécie de refúgio, uma fonte de conforto que extrapolava a função prática de guarda, alerta ou controle de pragas.

No século XVI, enquanto os europeus passavam pelo processo de criação de raças para companhia, eram os cães de trabalho que chegavam ao Brasil, com os colonizadores, com o objetivo de promover segurança, caçar e farejar. Não à toa, as raças brasileiras de cães são de trabalho: fila brasileiro (cão de guarda), terrier brasileiro, também conhecido como fox paulistinha (cão de guarda e alarme), ovelheiro gaúcho, dogue brasileiro e veadeiro pampeano. Entre esses, o único largamente utilizado para companhia é o terrier. Não há consenso sobre a origem das raças mas as hipóteses levantadas são interessantes para esta análise. Sobre o fila brasileiro, a ideia mais difundida aponta para o cruzamento

32 O reinado de Henrique VIII durou de 1509 a 1547. Os Spaniels, por sua vez, remontam ao século XIV e

foram originalmente utilizados na caça, pelo faro apurado para encontrar animais em armadilhas. A partir do século XIX, a linhagem foi desmembrada oficialmente em duas raças pelo Kennel Club: Cocker Spaniel (pequeno porte) e Springer Spaniel (porte médio).

33 Criado em 1978, na Inglaterra, o agility é uma prova de habilidade em que o cão deve percorrer um

circuito de obstáculos, conduzido por um treinador. Inicialmente, a modalidade foi criada para distrair os visitantes das exposições de cães, mas atualmente figura como uma das atrações nesses eventos e tem sido procurada por tutores como uma espécie de esporte canino, para proporcionar atividade física aos animais.

de três raças inglesas: mastiffs (cães de pastoreio), bloodhounds (cães farejadores) e bulldog (cão de pastoreio), enquanto outras apostam na modificação de raças como o fila de terceira ou bulldog português (cão de pastoreio) ou o Engelsen Doggen (cão de pastoreio holandês). Quanto ao veadeiro pampeano, sua origem é atribuída a cães primitivos trazidos por colonizadores portugueses para o Sul do Brasil e para o Uruguai. A origem do Terrier Brasileiro (fox paulistinha) é a mais controversa, pois há quem atribua seu surgimento à chegada de terriers utilizados como caçadores de ratos em navios mercantes no século XIX, mas a Confederação Brasileira de Cinofilia (CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE CINOFILIA (CBKC), [s.d.]) declara que sejam descendentes de raças utilizadas como companhia na Europa dos séculos XIX e XX, trazidas para o Brasil com as esposas dos filhos de fazendeiros que, após períodos na Europa, retornavam ao Brasil trazendo cães de companhia que se misturaram aos cães das fazendas, dando origem a uma nova raça, modificada posteriormente com a migração dessas famílias para os centros urbanos. Independentemente de estarem corretas, essas teorias demonstram que raças foram trazidas para o Brasil no período colonial, com predomínio dos cães de trabalho, e a presença de cães de companhia a partir do século XIX, como exclusividade das moças de famílias abastadas.

Os primeiros cães trazidos por portugueses, espanhóis e holandeses – antes do Descobrimento, esses animais não existiam no Brasil – tinham a denominação genérica de “onceiros” e eram usados para guardar as propriedades e o gado, afastando os predadores, principalmente as onças. Eram quase todos mestiços de foxhounds e possuíam características que facilitavam sua tarefa, como o bom faro, a coragem e a pele solta do corpo, o que os protegia das garras dos felinos. Já nas cidades, os cães de menor porte e temperamento calmo eram os preferidos para o convívio com as famílias (GODINHO, 2010,s/p).

A Confederação Brasileira de Cinofilia (CBKC) foi fundada em 1922, no Rio de Janeiro (à época, chamava-se Confederação do Brasil Kennel Clube) e, 25 anos depois, foi fundado o Kennel Club do Estado de Pernambuco (KCEP), em novembro de 1947.

Até o final do século XX, as raças valorizadas no Brasil eram aquelas voltadas para guarda, como dobermann, rotweiller, pastor alemão e fila brasileiro. Tanto no ambiente rural quanto no urbano, o padrão era manter os animais nas áreas externas da casa e alimentá-los com restos de refeições.

No Brasil colonial, o limite entre a casa, seus arredores e a selva foi dado pelo povoamento, pelo avanço das fronteiras agrícolas e urbanas, e dentro das cidades ou das residências. A restrição ao convívio com os animais no Brasil acompanhou a mudança de costumes imposta por acontecimentos como a

chegada da Corte portuguesa em 1808 e outros projetos civilizadores que baniam porcos e galinhas das ruas ou que modificavam o interior das casas e a convivência familiar. Como na Europa, o distanciamento dos animais domésticos e a proximidade com os de estimação – principalmente os cães – davam distinção aos seus donos (HEYNEMANN, 2010).

É possível perceber uma distinção entre animais “propriedade da família” (cães de guarda e alerta e gatos para caçar ratos), mantidos exclusivamente ou preferencialmente nas áreas externas, e os animais que se tornavam “membros da família”, quase sempre cães de raças de pequeno porte, que tinham acesso livre aos espaços íntimos das casas civilizadas34. A tendência de adquirir cães para companhia, explica Godinho, é um fenômeno recente no Brasil, cuja expansão pode ser percebida especialmente a partir do final dos anos 1980:

Os registros das associações de donos de cães provam como a preferência do brasileiro por determinadas raças de cachorro vem mudando ao longo dos anos. Nos últimos 30 anos, houve um aumento dos cães pequenos, considerados “de luxo”, em relação aos de grande porte, mais usados para defender as propriedades (GODINHO, 2010).

Para facilitar a visualização e análise, os dados levantados por Godinho (2010) foram organizados nas tabelas a seguir:

Quadro 1 - Raças caninas registradas mais populosas. Brasil, 1978. RAÇAS REGISTRADAS QUANT.

Dobermann 1.342

Cocker spaniel inglês 1.325

Boxer 1.151

Fila Brasileiro 1.029

TOTAL: 4.847

Fonte: GODINHO, 2010 (Adaptado).

Em 1983, notícia sobre a 1ª Feira de Cães & Cia, que reuniu um público de 117.000 pessoas em São Paulo, destacou a presença de 48 raças de cães, com destaque para a presença da Sociedade Paulista de Cães Pastores Alemães, o Clube Brasileiro do Dálmata e o Clube do Fox Paulistinha. Os dois primeiros, animais de grande porte comumente usados para guarda e o último um animal de pequeno porte utilizado para companhia e para guarda, por ser um cão “de caça e alerta”. É interessante perceber, portanto, como

34 Também nesse sentido, chama atenção a semelhança com a Inglaterra, em que os cães eram proibidos na

os primeiros eventos do mercado pet no Brasil ainda não traziam como destaque as raças de companhia, indicando que essa tendência ainda era minoritária mesmo nas classes mais altas. Em 1988, uma raça de companhia alcançou o topo dos registros pela primeira vez, mas, somados, os cães de guarda superavam facilmente esse número:

Quadro 2 - Raças caninas registradas mais populosas. Brasil, 1988 RAÇAS REGISTRADAS QUANT.

Poodle 7.402 Pastor Alemão 6.072 Fila Brasileiro 4.787 Dobermann 4.310 Outras 35.229 TOTAL 57.800

Fonte: GODINHO, 2010 (Adaptado).

Já em 1998, o quantitativo dos registros se inverte, expressando a expansão da tendência de adquirir cães para companhia. Embora a raça rottweiler ocupe o topo da lista, as três posições seguintes são ocupadas por raças de companhia, que, somadas, superam a primeira posição.

Quadro 3 - Raças caninas registradas mais populosas. Brasil, 1998. RAÇAS REGISTRADAS QUANT.

Rottveiler 21.400

Poodle 12.700

Yorkshire Terrier 7.092

Cocker Spaniel Inglês 5.560 Outras 49.348

TOTAL 96.100

Fonte: GODINHO, 2010 (Adaptado).

Por fim, em 2009, a mudança fica mais clara. Do total de 98.800 cães, as três raças que mais se destacam são de cães de pequeno porte, destinados a servir de companhia, já indicando uma mudança nas raças preferidas, com a saída de poodles e Cocker Spaniels. É interessante ressaltar que a única raça de grande porte na lista, a golden retriever é considerada de companhia, porque os cães dessa raça são tidos como dóceis e bons para crianças.

Quadro 4 – Raças caninas registradas mais populosas. Brasil, 2009. RAÇAS REGISTRADAS ANO

Shi-tzu 14.500 Yorkshire Terrier 13.100 Maltês 6.473 Golden Retriever 4.683 Outras 60.044 TOTAL 98.800

Fonte: GODINHO, 2010 (Adaptado).

Outro indicador interessante do processo aqui traçado é a mudança nas propagandas na revista Cães & Companhia, a começar pelo fato de que, entre a década de 1980 e a década de 1990, os anúncios se tornarem mais bem acabados do ponto de vista estético, indicando a profissionalização e o aumento da competitividade no ramo. Mais ainda, a expansão do mercado é perceptível na multiplicação de itens anunciados, indicando a diversificação do mercado pet, como será abordado no capítulo 6.

2.

O

CAMPO

DE

PESQUISA

E

O

PERCURSO