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Contenção da violência contra animais não humanos e a persistência das dicotomias

4. ENTRE CIVILIDADE E MORALIDADE: O SURGIMENTO DA SENSIBILIDADE DE EMPATIA INTERESPÉCIE

4.2. MODERNIDADE, RACIONALIDADE E CIVILIDADE

4.2.4. Contenção da violência contra animais não humanos e a persistência das dicotomias

A proteção à sensibilidade civilizada é o essencial nas mudanças jurídicas até aqui ocorridas, por isso, no caso dos animais de produção, a legislação se limita a conter algumas práticas - e o faz apenas quando surgem expressões numerosas de choque por parte da população. Exemplo disso foi a recente proibição de testes cosméticos em

animais nos estado de São Paulo, em janeiro de 2014, e na cidade de Porto Alegre, em setembro de 2015. As respectivas leis, assim como o projeto em tramitação no Congresso Nacional, foram aprovadas após a repercussão causada pela invasão do Instituto Royal, em São Roque (SP), que gerou visibilização dos procedimentos realizados nos laboratórios e das alternativas disponíveis, além d e fortes reações emocionais do público às imagens de cães machucados e das pequenas instalações em que eram mantidos. Por outro lado, a exposição rotineira dos animais utilizados na indústria de alimentos não gera condenação por maus tratos e a ideia de proibir a criação e o abate desses animais é tomada como impropério, pois implicações econômicas dessas atividades são muito mais expressivas.

Além das dificuldades geradas por uma estrutura econômica assentada na exploração de animais não humanos, o ativismo vegano enfrenta a dificuldade de engajar uma população emocionalmente desconectada dessas espécies, conforme abordado por Joy. Assim, mesmo para que coelhos e camundongos fossem libertos dos testes de cosméticos, foi necessário que houvesse uma comoção em torno dos cães de raça beagle utilizados com o mesmo objetivo – ainda que os testes realizados nas outras duas espécies sejam ainda mais agressivos e o número de camundongos e coelhos utilizados seja muito mais expressivo que o número de cães110.

O desenvolvimento de uma sensibilidade de empatia interespécie, que privilegia as espécies de estimação, esteve na base também da primeira onda de movimento antivivisseccionista e de combate aos maus tratos, que teve lugar na área urbana da Inglaterra do século XIX. De acordo com o relato autobiográfico da ativista Frances Cobbe, citado por Carvalho & Waizbort (2012), o pontapé inicial para sua primeira publicação contra os abusos da vivissecção foram denúncias de crueldades cometidas em uma escola veterinária contra cavalos que, na Inglaterra, são considerados animais de estimação. Nos escritos dessa líder do movimento antiviviseccionista, nenhuma especial atenção foi direcionada a sapos, aves e mesmo mamíferos, como coelhos e preás. Enquanto isso, cães, macacos e gatos, que gozavam do status de “animais sensíveis”, eram referidos frequentemente nos manifestos. Nos periódicos do movimento, contribuíam para a criação de um clima receptivo a utilização de narrativas sentimentais e anedotas de “mitologização” das mascotes de família, que circulavam na Inglaterra Vitoriana, na forma de relatos orais, pinturas, poemas e narrativas – inclusive histórias

110 Para outras informações sobre os testes padrão utilizados nas indústrias de cosméticos, produtos de

contadas, na primeira pessoa, do ponto de vista dos animais (CARVALHO & WAIZBORT, 2012).

A cruzada moral antiviviseccionista não alcançou seus objetivos na Inglaterra Vitoriana, mas foi reeditada na Europa do século XXI e, em 2012, gerou uma ação que serviu como inspiração àquela realizada no Instituto Royal, no Brasil. Nesta manifestação, cerca de mil ativistas marcharam até o criadouro Green Hill, que fornecia animais para testes em laboratórios de todo o mundo, invadiram o local e resgataram 40 cães da raça beagle. O caso (e as prisões realizadas na ocasião) gerou manifestações de rua, abaixo assinados e, por fim, investigação policial das instalações do Green Hill, em que 2.500 cães foram apreendidos e posteriormente encaminhados para adoção (BARRETO et al, 2014). Nessa segundo onda de cruzada moral antiviviseccionista, os ativistas estavam munidos não apenas do reconhecimento moral das vítimas, como também de questionamentos técnicos à legitimidade/normalidade da prática, posto que propunham métodos substitutivos aos testes com animais e dispunham de um arcabouço científico para fazê-lo. A partir daí, a questão que se coloca, de acordo com os ativistas, não é escolher entre a ciência e os animais, e sim entre uma forma tradicional e ineficaz de produzir conhecimento e uma forma ética e eficaz de fazê-lo. Para embasar esse argumento, citam dados sobre o desperdício de dinheiro e trabalho envolvido nos testes em animais, dos quais menos de 10% resultam efetivamente em medicamentos válidos para os humanos (FRANCIONE, 2013). Em apresentação no V Congresso Vegetariano Brasileiro, realizado em setembro de 2015, em Recife, o neurocientista Phillip Low destacou justamente esse argumento111. “100 milhões de animais são mortos por ano e 40 bilhões de dólares são gastos em pesquisas usando animais”, destacou o cientista, que, em seguida, passou a apresentar as potencialidades de suas pesquisas, realizadas “sem derramar nenhuma gota de sangue”. O exemplo da nova cruzada moral antiviviseccionista, que começa a gerar frutos no Brasil, ajuda a perceber como os movimentos que têm alcançado algum sucesso são aqueles que atacam, em conjunto, a invisibilidade do sistema de exploração aos animais (e as questões morais decorrentes), a normalização da violência e a reificação dos animais a ela expostos.

111 Low fez parte do grupo de neurocientistas que publicaram a Declaração de Cambridge sobre a

consciência dos animais vertebrados, divulgada em julho de 2012 (LOW et al, 2012). Embora afirme ser um cientista, e não um militante, Low tem sido convidado a participar de conferências de ativistas devido à importância conferida à declaração e ao fato de que, após a conclusão das pesquisas, o neurocientista ter afirmado na mídia que se tornaria vegano (àquela época, Low já era vegetariano).

Apesar da visibilização promovida pelo ativismo vegano, a comoção diante do sofrimento dos animais “comestíveis” tem seus efeitos limitados pela persistente reificação dessas espécies, que contribui para que o seu uso instrumental seja considerado normal (ainda que haja condenação à violência “desnecessária”). A dificuldade de engajar a população na defesa de outras espécies que não as de estimação é fonte de frustração para muitos ativistas veganos, que, situados em um ordenamento moral no qual as espécies mais relevantes são as mais exploradas, tendem a considerar incoerente ou mesmo hipócrita a militância focada na defesa de cães e gatos – especialmente quando os protetores de animais são carnistas. De fato, a dicotomização entre animais de estimação e animais “de produção” é persistente mesmo entre protetores de animais, mas, desde que comecei a atuar nesse meio, em 2009, mudanças importantes aconteceram, como a preocupação em servir alimentos veganos nos eventos da proteção animal, realização de protestos em conjunto e presença de grupos de proteção animal nas ações e eventos promovidos pelos grupos veganos. Ainda assim, é expressivo o número de militantes da proteção animal que consomem produtos de origem animal, sem restrições.

Mais ainda, é perceptível que as mobilizações em defesa de cães e gatos conquistam simpatia com relativa facilidade, tanto pela proximidade física e afetiva em que essas espécies (especialmente a canina) convivem nas áreas urbanas, quanto pelo fato de que as campanhas da proteção animal não atingem a identidade das pessoas externas ao movimento de forma tão profunda quanto as campanhas da militância vegana112.

Para que se entenda a persistência dessa dicotomização, é cabível destacar a tendência de individualizar os grupos conhecidos e tratar os desconhecidos como coletivos homogêneos, desprovidos de características individuais. Essa tendência faz com que cães e gatos, que partilham de um convívio próximo aos humanos (mesmo quando assumidos como propriedade), sejam passíveis de individualização na vida cotidiana, ao contrário do que ocorre com as espécies distanciadas, pensadas sempre como coletivos. Esse distanciamento pode ocorrer por fatores físicos, como no caso dos animais “de produção” e por fatores simbólicos, como no caso de várias espécies sinantrópicas (pombos, ratos, baratas, etc). Dada a importância do mecanismo de desendividualziação

112 O único elemento condenado pela proteção animal que atinge uma quantidade grande de pessoas com

quem os militantes interagem é a prática de compra e venda de animais de estimação, apontada como imoral. Ainda assim, dado o fato de que a maioria das pessoas compra poucos animais ao longo da vida, poucas pessoas se sentem responsáveis pela reificação de cães e gatos como mercadoria. Essa condenação só costuma gerar um abalo realmente forte quando o indivíduo em questão é vegano, pois, nesse caso, a ação é entendida como contradição grave com o valor de não exploração aos animais.

e objetificação no processo de reificação dos animais “comestíveis”, é possível propor que talvez o vegetarianismo crescesse ainda mais se os criadouros (não apenas os matadouros) tivessem paredes de vidro.

Cães e gatos encontram-se em uma posição que dificulta sua reificação porque, além de serem domésticos, partilham de um convívio próximo, sendo frequentemente individualizados. Essas condições são especialmente fortes no ambiente urbano, em que os animais assumem uma função de companhia passam a dividir os ambientes internos da casa e a serem observados em suas características estéticas e comportamentais.

Outro elemento que impulsiona a proteção a cães e gatos, tanto por parte da população quanto pelas instituições do Estado, é a crença de que uma convivência pacífica com os animais de estimação é um indicador de civilidade e uma forma dedespertar nos indivíduos valores positivos como compaixão e responsabilidade (OLIVEIRA, 2006). Essa associação torna compreensível por que os dois casos de agressão de maior repercussão nos últimos anos tenham sido justamente aqueles que vitimaram cães de pequeno porte e foram realizados na presença (ou com a participação) de crianças pequenas113.

O primeiro desses casos aconteceu em Formosa (GO), onde, em dezembro de 2011, uma enfermeira foi filmada por um vizinho enquanto espancava sua cadela yorkshire, na área de serviço do apartamento em que morava. A agressão foi realizada como forma de repreender a cadela por ter urinado e defecado do apartamento durante a ausência da família e resultou na morte do animal, dois dias depois. O vídeo, feito por um vizinho, foi usado para denunciar o caso à polícia e publicado no site youtube, gerando uma repercussão forte nas redes sociais e na mídia impressa e televisiva. As imagens da cadela Lana foi estampada em noticiários impressos e digitais de todo o país e o “caso yorkshire” tornou-se o estopim para a criação, em São Paulo, de um movimento nacional pelo aumento da pena contra maus tratos a animais, com um dia de passeata em várias cidades do país (5/05/2012). Em menos de um mês (21/05), o abaixo-assinado organizado pelo movimento foi entregue à comissão de juristas do Senado Nacional com 160.000

113 É importante lembrar que outros vídeos de agressão foram divulgados nesse período. Em agosto de

2014, uma adolescente filmou e mandou par aos amigos um vídeo em que jogou a gata da mãe pela janela do 14º andar do apartamento em que moravam, em Diadema (SP); em fevereiro de 2015 uma mulher escondeu uma dentro do apartamento e flagou seus dois buldogues sendo agredidos pelo noivo, no Rio de Janeiro (RJ); em junho de 2015, um rapaz foi filmado pela câmera de segurança do elevador agredindo um cão pug em Recife (PE). Embora tenham sido repercutidos na mídia, nenhum desses casos ganhou tanto espaço (e acompanhamento posterior) quanto as agressões realizadas por mulheres na presença dos filhos.

assinaturas, coletadas presencialmente e também via internet. A petição virtual continuou aberta para assinaturas e, em julho de 2013, contava com 213.626 assinaturas.

Em maio de 2013, um caso semelhante ocorreu em Porto Alegre (RS). Uma mulher foi filmada na varanda se seu apartamento chutando seu cachorro filhote (um poodle com aproximadamente um mês e meio), falando que não gostava de animais. Em um determinado momento, diz ao filho de três anos de idade que “todos os cachorros, todo os bichos que tu vês na rua a gente não trata bem. A gente vai e bate, escutou?” No vídeo, filmado por um vizinho, a criança pega o animal no colo para sacudir no chão e dá vários chutes no cachorro, às vezes sozinho e às vezes acompanhado pela mãe, que também disfere golpes. Quando fica desacordado, o animal é levado para dentro do apartamento. O cão foi resgatado pelo sub-síndico do condomínio e sobreviveu. Similarmente ao caso anterior, a gravação foi usada em denúncia na polícia e na mídia e reacendeu o debate sobre o aumento da pena contra maus tratos e a ineficácia da justiça. Impacientes com a demora de um julgamento e descrentes na punição pelo judiciário, pessoas revoltadas com esses e outros casos semelhantes passaram a divulgar no facebook fotos de autores de agressões (e também de abandonos), acompanhadas de mensagens como “marque esse rosto”.

Em outra ocasião (LIMA, 2016), realizei a análise de comentários feitos pelos internautas em uma das publicações mais repercutidas sobre a agressão ao poodle e pude perceber que a falta de autocontrole das agressoras era percebida como ameaça não apenas para os animais, como para os filhos e as pessoas em geral. Mais ainda, imagina- se que a criança, carente de uma socialização que imponha o autocontrole, está em vias de se tornar um adulto capaz de agredir ou matar qualquer pessoa, inclusive a própria mãe. A preocupação com o caso, portanto, em muito extrapola o cuidado com a espécie canina: