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O Programa Adote um Vira-Lata e minha imersão na proteção animal

2. O CAMPO DE PESQUISA E O PERCURSO METODOLÓGICO

2.1. A PROTEÇÃO ANIMAL

2.1.1. O Programa Adote um Vira-Lata e minha imersão na proteção animal

Em 2001, o ativista norte-americano, Douglas Fakkema, publicou um artigo intitulado “as quatro fases na vida de um protetor”, no qual argumenta que o percurso desses ativistas é marcado por quatro etapas na forma de encarar o trabalho com os animais: obsessão, depressão, misantropia e aceitação. Inicialmente, afirma, existe um entusiasmo sem limites, que assume a forma de obsessão pela causa. Nessa fase, descreve Fakkema, não se admite o sacrifício de nenhum animal e acontece um afastamento do convívio com aqueles que não entendem “a obsessão” ou mesmo um isolamento total, em que as únicas companhias são os cães e gatos. Em uma segunda fase, o entusiasmo dá

42 Guarda responsável é um conceito utilizado pelos movimentos de proteção e já incorporado pelo poder

público para indicar as práticas consideradas corretas para um tutor de cão ou gato. Entre os princípios da guarda responsável estão auxílio veterinário, controle reprodutivo, alimentação adequada e impedimento do acesso livre à rua.

lugar à frustração em perceber que o abandono, a negligência e os maus tratos continuam acontecendo. Nesse ponto, afirma ele, o protetor está exausto, não quer conversar sobre a causa e comumente adquire hábitos negativos, como alcoolismo, vício em compras e má alimentação. Na segunda fase, o sacrifício de alguns animais começa a ser admitido, mas é realizado com sentimento de culpa e fracasso. Aos poucos, explica Fakkema, a depressão transforma-se em raiva, dando lugar à fase da misantropia.

Começamos a odiar as pessoas. Toda e qualquer pessoa, com exceção daqueles que dedicam suas vidas em prol dos animais da mesma forma que nós fazemos. Odiamos até mesmo nossos companheiros de causa quando ousam nos questionar. Especialmente sobre sacrificar animais. Ocorre-nos: “Vamos sacrificar os proprietários, não os animais! Vamos sacrificar aqueles que maltratam e abusam dos animais no lugar deles!”

(FAKKEMA, 2010, s/p)

Na última fase, em que muitos não chegam por abandonar a atividade nas fases 2 ou 3, o protetor entende que o problema em que atua é complexo demais para ser resolvido por ele, mas que é possível fazer diferença. A vida pessoal e o voluntariado passam a ser equilibrados e as relações pessoais são retomadas.

Vemos que as pessoas não são tão más. Percebemos que a ignorância é natural, e, na maioria dos casos, é curável. Sim, existem pessoas realmente más que abusam e negligenciam os animais, mas são minoria. Reconhecemos que as soluções são tão complexas quanto os problemas e trazemos um grande número de ferramentas para solucionarmos esses problemas. Nossos escudos se abaixam. Aceitamos que tristeza e dor são parte de nosso trabalho. Damos um pequeno passo por vez. Paramos de mascarar nossos problemas com drogas, comida ou isolamento. Enfim, reconhecemos nosso potencial para ajudar os animais. Estamos mudando o mundo.

(FAKKEMA, 2010, s/p).

O esquema de Fakkema foi construído a partir de dados anedóticos e no contexto dos Estados Unidos, mas é bastante representativo do tipo de emoções que emergem nas atividades de proteção animal. Esse texto foi citado pelo pesquisador e protetor colombiano Néstor Maldonado, durante uma palestra na VI Conferência Internacional de Medicina Veterinária do Coletivo (2015) e, ao ler o relato de Fakkema, senti uma identificação pessoal.

O núcleo inicial do Adote um Vira-Lata foi formado no ano de 2007, a partir de uma mobilização da professora do Centro de Ciências Biológicas, Ariene Bassoli, e de um grupo de alunos do bacharelado em ciências biológicas, no qual ela ministra a disciplina de histologia. Inicialmente nomeado Adote a Natureza, a iniciativa tentava promover adoção para animais abandonados no campus da UFPE e ações educativas em

escolas públicas do entorno a respeito da convivência com os animais. Em 2009, o projeto foi registrado oficialmente na Pró-Reitoria de Extensão da UFPE com o nome de Projeto de Extensão Adote um Vira-Lata, mas é mais comum que seja referido apenas como Adote (e assim passarei a denominar daqui por diante).

Foi justamente em 2009 que eu, então estudante do mestrado, vi uma folha de papel A4 xerocada na parede do elevador do CFCH, convocando pessoas interessadas em participar do projeto de extensão Adote um Vira-Lata. Eu já resgatava gatos e tinha vontade de fazer algo mais, porém, até então, não fazia ideia de que existiam grupos organizados com esse objetivo. Já um pouco cansada do ativismo político no qual havia me envolvido em sete anos de movimento estudantil, eu queria fazer algo útil sem ter tanta dor de cabeça. Não fazia ideia, naquela época, de quanto trabalho e desgaste emocional me aguardavam na proteção animal. Escrevi para o e-mail indicado e recebi o convite de participar de um “mutirão no lar de Alice43” naquele sábado. Achei que Lar de

Alice fosse o nome de uma instituição e fui me encontrar com o grupo no sábado, às 8h, para irmos juntos. Ao chegar no local, entendi que se tratava de uma casa (o lar) de uma senhora com cerca de 70 anos, que tinha em casa uma média de 70 gatos e 10 cães, muitos deles doentes, que teríamos a missão de medicar. Com o passar do tempo, passamos a fazer mutirões também de limpeza do local, ajudando Alice a encher sacos vazios de ração com fezes de gatos, que se acumulavam em montes no gatil. Também limpávamos o terraço, retirando pilhas de jornal, caixas de papelão e pratos de isopor que ela acumulava para os gatos. As baratas corriam para todo lado quando limpávamos e eu, apavorada, tentava ser discreta para não perder a credibilidade, pois ela tentava nos demover da ideia de limpar o lixo, afirmando que poderia fazê-lo sozinha depois. Demoramos mais de um ano para conseguir permissão para limpar o interior da casa – já tão cheia de lixo e fezes que foi preciso contratar uma equipe para remover o entulho e um caminhão para levar o lixo. Pelo acordo feito com ela, só tiveram permissão para estar presentes os homens contratados, mas Ariene compareceu e relata que havia várias camadas de fezes cobertas com jornais no chão da casa, além de muitos ratos e baratas. Após a retirada do lixo, promovemos uma arrecadação para cimentar o chão e realizar consertos, de forma que Alice pôde, finalmente, voltar a morar dentro de casa. Passados

43 Alice é um nome fictício, como forma de preservar sua identidade e resguardar seu endereço de novos

abandonos. Em toda a Região Metropolitana do Recife há casas em situação semelhante à dela e, apenas no Distrito Sanitário IV, em que se encontra o abrigo de Alice, conheço outros 4 semelhantes.

alguns meses, porém, havia vários gatos no interior da casa, bem como fezes, jornais, caixas e bandejas de isopor.

Além de limpeza e medicação, fazíamos alguns mutirões de castração, em que levávamos cerca de 20 gatos para castrar em um mesmo dia, no hospital da UFRPE. Ariene, coordenadora do projeto, realizava as mesmas atividades que nós e tinha sempre alguma ideia do que mais poderíamos fazer, mas o engajamento geral era praticamente limitado aos mutirões, pois todas nós tratávamos o Adote como voluntariado. A única exceção era Débora, que desenvolveria sua monografia com uma experiência de inclusão da educação para o direito dos animais em escolas, sob a orientação de Ariene, e, por isso, realizava também atividades educativas.

Os debates sobre desistir do abrigo de Alice eram constantes no grupo, pois percebíamos que ela sempre voltava a juntar entulho, continuava recebendo animais e, justamente por estarem em grande quantidade, o tempo todo, eles continuavam adoecendo e morrendo sem parar. Toda vez que tirávamos um filhote do abrigo para cuidar, Alice chorava, se despedia como se estivéssemos fazendo um mal, mas, quando retornávamos após quinze dias, os filhotes que haviam ficado já estavam reduzidos à metade ou menos, devido às doenças e à impossibilidade de cuidar deles naquele ambiente e de dedicar tempo a cada um, diante de tantos afazeres. Enquanto isso, nós vivíamos um drama também em nossas casas, pois conseguir adoção para os animais (especialmente os gatos) não era nada fácil e o Orkut era uma ferramenta muito falha. Buscávamos adoção entre os conhecidos, mandávamos fotos por e-mail e aguardávamos. Lembro de como acordava sobressaltada no meio da noite preocupada com algum gato “encalhado” que já estava em lar temporário há meses e eu não conseguia doar. As chamadas feiras de adoção, promovidas em 2009 e 2010, eram um fracasso, pois não reuniam público e o número de adoções ficava ente zero e cinco. Naquele período, eu e outras extensionistas sonhávamos com a construção de um abrigo modelo, em que os animais resgatados tivessem qualidade de vida e pudessem ser encaminhados para adoção. Aos poucos, frustradas com a impossibilidade de manter os animais saudáveis e, principalmente, de impedir o constante abandono no abrigo que ajudávamos, concluímos que o tempo e a energia dispendidos nesse tipo de atividade não geravam os resultados esperados. Lembro de reuniões bastante tensas em que Ariene, frustrada ou irritada, asseverava que jamais conseguiríamos mudar a situação do abrigo, enquanto eu e outras voluntárias afirmávamos que poderíamos, que já estávamos fazendo isso. Passados alguns meses, a confiança nos resultados deu lugar ao desânimo e adquirimos o hábito de lanchar

guloseimas ou tomar sorvete após cada mutirão de limpeza, como uma espécie de recompensa emocional pelo que havíamos testemunhado. Com mais alguns meses, passei a discutir com a dona do abrigo e a responder de forma grosseira aos telefonemas recebidos por ela, de pessoas querendo deixar animais no local. Um de meus maiores acessos de fúria aconteceu em 2010, quando atendi ao telefonema de uma mulher que queria o endereço do abrigo para levar sua cadela poodle de 13 anos, que havia ficado cega e precisaria de cuidados especiais, mas a tutora alegava não ter tempo de cuidar. Embora não tenha registrado esse diálogo em nenhum lugar, lembro-me dele com bastante clareza, especialmente das coisas que falei antes de desligar o telefone:

Se fosse a sua filha cega aos 13 anos de idade, você abandonaria? Se você abandonar essa cadela no momento em que ela mais precisa, ela vai morrer e, se você fizer isso, eu desejo profundamente que os seus filhos a abandonem quando a senhora estiver velha e doente.

Não importava quantos animais retirássemos da casa de Alice, todas as vezes que voltávamos, o número deles era igual ou maior. Além disso, não importava o quanto nos esforçássemos para medicá-los contra vermes, sarna e viroses, a infestação de parasitas e a mortalidade eram sempre altas, especialmente entre os recém-chegados. Traçando um paralelo com o relato de Fakkema, é possível dizer que a mudança na forma de atuação do Adote está relacionada ao fato de Ariene ter passado por essas fases antes de nós e, por isso, forçar-nos a passar por elas mais rapidamente.

Nos quase dois anos de intensa dedicação ao abrigo (Ariene já o ajudava desde 2007), éramos um grupo que variava entre 6 e 8 voluntárias (os homens que apareciam eram namorados de alguma das mulheres do grupo e ajudavam apenas esporadicamente). Em 2010, o projeto conseguiu duas bolsas de extensão, que foram revezadas entre as voluntárias, todas da graduação de ciências biológicas ou ambientais. Entrei para o Adote como a maior parte das pessoas, com a intenção de ajudar os animais, mas sem ter ideia de como isso seria feito. Minha participação em todas essas atividades era constante, mas tomava apenas um dia por quinzena e o tempo de cuidar em casa dos animais resgatados. Quando rompemos com aquele modelo de atuação, passamos a priorizar medidas de prevenção ao abandono, como promover castração e atividades de educação para a guarda responsável. A colaboração com o abrigo restringiu-se à castração e resgate dos animais a serem adotados, além da promoção de eventos de adoção, que, em novembro de 2011, ganharam periodicidade mensal. Entre 2011 e 2012, Débora desenvolveu a monografia, mas, apesar de me interessar pelo tema, não me engajei na atividade,

limitando-me a emitir opiniões nas reuniões do grupo. Aquele trabalho ainda não me parecia ser do Adote como um todo – e isso era bastante confortável. No final de 2011, porém, as meninas do grupo demonstraram interesse em participar de dois congressos e resolvi colaborar. Elaborei um questionário para aplicarmos no bairro em que o abrigo estava localizado, treinei as extensionistas para aplicá-lo e participei com elas da coleta e interpretação dos dados. Com essa primeira pesquisa, pretendíamos mapear a situação dos animais daquela localidade e a opinião daquela vizinhança sobre castração, abandono e abrigos, procurando identificar possíveis fontes de abandono e aproveitando a visita para incentivar as pessoas a castrarem seus animais. Por causa dessa pesquisa, passei a guiar algumas reuniões voltadas para o debate de trabalhos acadêmicos e o treinamento das extensionistas para planejar e realizar outras investigações, tendo como resultado, não planejado, a inauguração do braço acadêmico do Adote.

Daquele momento em diante, o projeto começou a caminhar para uma consolidação acadêmica, os extensionistas passaram a vislumbrar a possibilidade de unir as atividades de extensão à participação em congressos e à realização de pesquisas para seus Trabalhos de Conclusão de Curso. Por fim, ao formar um grupo estável de extensionistas e um conjunto fixo de ações, começamos a garantir financiamento para algumas de nossas ações a partir de editais do MEC-Sesu a partir de 2013, liberando-nos de parte das atividades de arrecadação de verbas e das limitações impostas pela precariedade financeira. Em 2015, o Adote passou para a categoria de Programa de Extensão e, pela primeira vez, garantiu financiamento para um biênio pelo MEC-Sesu44.

Deixar o abrigo e passar a atuar com um programa de controle populacional foi uma decisão difícil e repleta de culpa, firmada em um momento de transição da equipe, em que permaneceram apenas cinco componentes já envolvidas com o abrigo (Ariene, eu, Tamires, Rosinha e Vanessa). Essa decisão modificou substancialmente o perfil dos envolvidos no Adote e a conexão afetiva com as atividades do programa. Nesse novo contexto, o Adote assumiu características que terminaram por diferenciá-lo dos outros grupos de proteção animal da Região Metropolitana do Recife. A primeira diferença resultante desse processo foi a composição do grupo. Ao longo dos anos, formamos uma equipe relativamente estável, pois, além de mim e Ariene, contamos com uma média de

44 O financiamento do MEC-Sesu é concedido para a realização de mutirões de castração, eventos de adoção

e pagamento de bolsas para estudantes de graduação, mas há permanentemente a venda de produtos como forma de financiar tratamento de animais resgatados e ampliar a quantidade de castrações oferecidas.

10 extensionistas fixos, todos membros da UFPE (a maioria estudantes de ciências biológicas). Além disso, o fazer acadêmico nos levou a conectar, às ações do programa, conhecimentos científicos e técnicos, realizando planejamentos estratégicos a partir de estudos anteriores, promovendo pesquisas e participando de congressos acadêmicos45.

Além da atenção crescente para as questões acadêmicas, os contatos com os animais tornaram-se menos frequentes e intensos que o contato com pessoas, que se tornaram o centro de nossas atenções tanto nos eventos de adoção quanto no cadastro para os mutirões de castração. Nos mutirões em si, a atenção é dividida entre o atendimento aos tutores, os procedimentos burocráticos e os cuidados com os animais. Percebemos inicialmente que muitos dos novos extensionistas se frustravam porque tinham a expectativa de cuidar de animais e passamos a explicar, nos processos seletivos, que o trabalho seria desenvolvido fundamentalmente com pessoas. Para mim, no entanto, essa mudança criou uma oportunidade ímpar para a realização de minha pesquisa de doutorado.