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Reificação: objetificação, desendividualização e dicotomização

4. ENTRE CIVILIDADE E MORALIDADE: O SURGIMENTO DA SENSIBILIDADE DE EMPATIA INTERESPÉCIE

4.1. MECANISMOS DE LEGITIMAÇÃO DA VIOLÊNCIA

4.1.2. Reificação: objetificação, desendividualização e dicotomização

O segundo mecanismo referido por Bauman (1998) como condição para a corrosão das inibições morais é a desumanização das vítimas, que, no caso dos judeus, foi empreendida com a difusão da ideia de que seriam parte de uma raça inferior, transmissores de doenças, comparáveis a piolhos. Inferiorizados de tal maneira, os judeus foram retirados do universo de obrigação, que designa o círculo de pessoas com obrigação recíproca de se protegerem, bem como dos limites do território social dentro do qual é possível elaborar questões morais dotadas de sentido. Nos termos de Boltanski & Thévenot (2006), a desumanização corresponde à elaboração de um ordenamento moral ilegítimo, no qual alguns seres humanos são aprioristicamente excluídos100.

No caso dos animais não humanos, é importante sublinhar, de partida, que não se trata de desumanizar, posto que eles são justamente a referência negativa utilizada nesse conceito. O que ocorre com esses seres é uma reificação, acionada de várias maneiras: são objetificados101 ao serem manejados sem cabeça e nomeados como “peças”, “cabeças” ou “unidades”, além de serem definidos como objetos na legislação e nas políticas públicas. Também são desendividualizados porque, até para quem lida com criação, a convivência com os animais já não propicia o tipo de observação realizada quando se lidava com poucos indivíduos:

100 A eugenia é considerada por Boltanski & Thévenot (2006) como uma atitude incompatível com o regime

de justificação, pois, em qualquer ordenamento moral legítimo, é necessário partir da premissa de que, a princípio, todos os humanos nascem iguais, sendo possível ordená-los apenas a partir de suas expressões de virtude, eficiência, autoridade, entre outras.

101 A tradução aponta esse mecanismo como objetivação, mas realizei essa troca para facilitar a

No mundo antigo, as pessoas viviam muito próximas aos animais de criação, muitas vezes dividindo a mesma casa e, por mais que pudessem ser bastante cruéis em determinados momentos, eles tratavam os animais como indivíduos, capazes de sofrer como elas mesmas (...) Mas, uma vez que o número de animais possuídos tornou-se imenso, alcançou a casa dos milhares, é inevitável que suas identidades individuais sejam perdidas. Esse foi o resultado inevitável da criação industrial no mundo moderno, em que animais domésticos, requeridos em vasto número para alimentar a crescente população humana, são tratados como vegetais, reproduzidos de forma que pareçam idênticos e criados em pequenas celas, para serem abatidos quando for solicitado (CLUTTON- BROCK, 2003:34).

Devido à escala dessa produção, Joy (2014) lembra que se torna difícil estabelecer conexão emocional, pois, diante de grandes números, temos dificuldade de perceber a questão de forma concreta, ao contrário do que ocorre quando focamos no que foi vivenciado por um único indivíduo. Essa percepção de sofrimento individual é dificultada quando os animais são entendidos como representantes autômatos da espécie. A ideia de que “são todos iguais”, ressalta Lawrence (1994), é um ponto em comum entre o especismo e o estigma racial que já vitimou vários povos ao longo da história.

O último mecanismo de reificação é a dicotomização, que nos faz perceber grupos de seres como radicalmente diferentes – a exemplo da classificação animais racionais (apenas os humanos) e animais irracionais (todas as demais espécies do planeta). De acordo com Joy, a dicotomização de animais em comestíveis ou não comestíveis faz com que os comestíveis em geral sejam representados como estúpidos, feios e sujos. Somadas, a dicotomização e a objetificação resultam em representações de animais dotados de senciência como incapazes de sentir. Esse mecanismo está presente desde a categorização cartesiana dos animais como “máquinas sem alma” até afirmações de senso comum, recorrentes em discussões com vegetarianos, de que os animais no abatedouro gritam “por puro reflexo” ou de que “porcos sentem tanta dor quanto uma cenoura arrancada do chão”.

A razão de empatia e repugnância estarem tão intimamente relacionadas deve- se ao fato de a empatia ser a base de nosso senso de moralidade e a repugnância ser uma emoção moral. Tipicamente, quanto maior a empatia que sentimos por um animal, mais imoral –e, portanto, repugnante – vemos o ato de comê-lo (JOY, 2014: 123).

Devido ao fato de que uma das dicotomizações sedimentadas, há pelo menos um século, é a que opõe cães e gatos a todos os outros animais, a reificação dessas duas espécies não se difunde de forma tão profunda quanto a das espécies “de produção”, mas isso não significa que estejam liberadas desses mecanismos. Como foi visto no capítulo 3, o crescimento do mercado pet e a entrada das mascotes dentro das casas estabeleceu

uma dicotomia entre cães e gatos “especiais” e cães e gatos “sem importância”. Além da raça, a utilidade e o vínculo afetivo com um humano poderiam estabelecer uma linha muito rígida entre animais a serem protegidos e animais a serem levados pela carrocinha, por isso as denúncias reunidas na revista Cães & Cia de 1983 (nº48) diziam respeito principalmente à captura de animais “com proprietário”. Além disso, a truculência envolvida no extermínio era denunciada porque, embora tratados como propriedade (e chamados pelo mercado pet de exemplares e matrizes), esses animais não tiveram negada a sua capacidade de sentir. Feitas as ressalvas por procedimentos “humanitários”, o extermínio desses animais era legitimado fundamentalmente pela dicotomização em relação aos “especiais” e pela desindividualização conferida pelo distanciamento em que eram mantidos os animais “de rua”, vistos como perigosos.