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AFASTAMENTO DOS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO: ZOONOSES, HIGIENISMO E PÂNICO CULTURAL

1. IMPULSOS CIVILIZADORES NAS RELAÇÕES COM CÃES E GATOS

1.4. AFASTAMENTO DOS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO: ZOONOSES, HIGIENISMO E PÂNICO CULTURAL

Ao longo do século XX, os padrões de higiene, privacidade e organização para uma casa tornaram-se mais exigentes, incluindo o afastamento dos animais de estimação, que passaram a ter sua movimentação limitada por correntes, canis, portões e gaiolas (estas

20 O último surto da peste aconteceu em Londres, entre os anos de 1665 e 1666 e, dessa vez, os gatos foram

últimas especialmente no caso das aves e roedores). De maneira geral, nas classes média e alta, cães e gatos só retornam para os espaços internos da casa no século XXI.

A criação de cães e gatos no quintal é perceptível inclusive nos produtos culturais de meados da década de XX em diante. O cão Snoopy na década de 1950 aparecia dentro de casa, mas tinha reservado como seu lugar uma “casinha” do lado de fora, que acabou se tornando seu lugar definitivo; Pluto, o cão do Mickey, também vivia do lado de fora e tinha uma casinha com o seu nome – o que, nas minhas lentes de criança, parecia um privilégio. Tom, o gato que criava confusão perseguindo o rato Jerry, era frequentemente posto para fora quando derrubava alguma coisa e lá encontrava o cão Spike, que vivia no jardim, quase sempre com metade do corpo para dentro da casinha. Já no Brasil, a Turma da Mônica tem exemplos semelhantes com Bidu (o cão de Franjjinha) e Floquinho (o cão do Cebolinha), que viviam no quintal e andavam livremente na rua21. Em uma história do Pelezinho, de 1981, o cão Rex aparece com pintas no corpo e a mãe exclama “eu falei pra não deixar ele entrar aqui em casa! Eu sabia que isso ia acontecer um dia”. Quando Pelezinho entra no quarto para olhar o cão, a mãe tenta impedi-lo para que não se contamine e depois corre para buscar um médico gritando “a vizinha aí do lado vai ter nenê! O nosso outro vizinho tem um filhinho recém-nascido! Por isso não saia daí! Vou chamar o médico!”22.

O medo de doenças e o aumento nos parâmetros de limpeza parecem estar na base do processo de afastamento dos animais de estimação e no desenvolvimento do nojo em relação aos seus corpos. A afinidade entre esses fenômenos é facilmente compreensível, pois o nojo, que aparece para justificar um afastamento, acaba sendo impulsionado por ele23. Mas as variações no medo de contágio não podem ser compreendidas sem que se entenda a especificidade das zoonoses e de suas políticas de prevenção. A atitude oficial em relação às zoonoses tem impacto considerável na atitude cotidiana em relação aos animais.

21 O único cão da Turma da Mônica que vive dentro de casa é Monicão, criado em 1994, que posteriormente

ganhou uma personalidade agitada e destrutiva, passando a refletir justamente os problemas da convivência indoor, que serão abordados no capítulo 6.

22 História publicada originalmente na Revista Pelezinho nº 45 (1981, Editora Abril) e republicada na

coleção “As melhores histórias do Pelezinho” nº7 (2013, Editora Panini)

23 Quando há contato frequente com alguma coisa, é mais difícil ter nojo dela, por isso os animais

considerados “pragas urbanas”, ratos e baratas, são objeto de nojo e medo principalmente entre os sujeitos que vivem em ambientes nos quais a presença de um deles é acontecimento excepcional. Dessa maneira, pessoas que criam animais na área externa da casa têm mais chance de desenvolver maiores patamares de nojo em relação a eles.

No final do século XIV, a pandemia de peste bubônica, transmitida por picadas de pulgas, levou a várias tentativas de exterminar ratos, cães e judeus – todos associados à propagação da doença (REZENDE, 2009, THOMAS, 2010). De acordo com Babboni & Modolo (2011), a raiva existe há pelo menos 4 mil anos e foi documentada pelos egípcios, gregos, chineses e indianos na Antiguidade, mas foi na Idade Média que começaram a surgir os surtos epidêmicos:

O primeiro grande surto de raiva descrito foi na França, em 1271, quando uma vila foi atacada por lobos raivosos e as 30 pessoas que morreram tinham mordeduras infectadas. Existem referências de surtos de raiva na Espanha em 1500, na cidade de Paris em 1614 e assim quase toda a Europa central. Com o surgimento do surto da raiva canina na cidade de Londres de 1752-1762, foi ordenado o sacrifício de todos os cães errantes, que incluía uma taxa de recompensa por animal morto, levando então a um massacre desses animais. Essa prática foi utilizada em locais como Madrid, onde mataram 900 cães em um único dia; na Inglaterra, em 1779, não era permitido que os pobres tivessem cães (BABBONI & MODOLO 2011: 351).

Com o processo de urbanização, que concentrou grandes contingentes de população, vários problemas de saúde começaram a surgir pela falta de destinação dos detritos humanos e animais. Foi a partir do século XVII que o ambiente urbano tornou-se objeto de preocupação da medicina, com as descobertas sobre agentes microbianos causadores de doenças e a necessidade de um planejamento urbano que favorecesse a saúde pública, como explica Velloso:

Estas descobertas contribuíram para uma outra visão de cidade, propiciando novas concepções de sujeira corporal e urbana. As cidades começam a ser planejadas, inspiradas na circulação do sangue e nos movimentos da respiração. Elas deviam ser amplas para que o ar circulasse livremente, sendo divididas em ruas principais e secundárias, da mesma forma que as veias e artérias do corpo humano, que transportam hemácias e outros elementos do sangue para os órgãos. Os resíduos, como fezes e urina, deveriam sair das casas através de um cano parcial, que nas ruas se acoplariam a um cano comum ou principal (VELLOSO, 2008: 8).

.

Um bom exemplo da articulação entre higiene e saúde é o caso de Lisboa, que para ser inserida entre as cidades civilizadas da Europa, iniciou um plano que consistia em incentivar hábitos de higiene como o banho e em encarregar homens pela limpeza urbana em cada área da cidade.

Era responsabilidade desses homens: eliminação de cães vadios; fazer cumprir a proibição de ensinar as bestas novas e de matar porcos nas vias públicas; a varrição das ruas, três vezes por semana e, por fim, a recolha diária dos detritos (VELLOSO, 2008: 8-9).

Assim como no caso de Lisboa, o posto de “Dogcatcher” (caçador de cães) nos Estados Unidos e na Europa foi inicialmente ocupado por populações marginalizadas, como ciganos e agricultores designados de maneira informal para abater os cães encontrados na rua, normalmente a pauladas ou tiros. No início do século XIX, a raiva canina chegou às Américas e, tanto nesse continente quanto na Europa, surgiram as operações governamentais do chamado Animal Control e o cargo oficial de Dogcatcher que, curiosamente, foi preenchido em alguns locais através de eleições periódicas até pelo menos 1967 (BABBONI & MODOLO, 2011; BUMP, 2014).

Entre os problemas associados à superpopulação de animais de estimação, especialmente os cães, a raiva foi a principal motivação para o estabelecimento de uma política oficial de extermínio de animais em situação de rua, nos mais diversos países. No final do século XIX, Louis Pasteur desenvolveu as primeiras drogas para vacinação e para tratamento pós-exposição.

Em 1885, Pasteur pela primeira vez tratou com êxito um menino (Joseph Meister) agredido por um cão raivoso (...) A comunicação do cientista à Academia de Ciências, já depois de ter certeza dos resultados sobre o tratamento de Joseph Meister, data de 26 de outubro de 1885, com a seguinte citação: “Joseph Meister escapou, logo, não somente à raiva que as mordeduras teriam- lhe desenvolvido, senão aquela que lhe inoculei para controle da imunidade

devido ao tratamento, raiva mais violenta que aquela que produzem os cães errantes” (BABBONI & MODOLO, 2011: 352).

Na própria fala de Pasteur, é possível perceber que a raiva foi associada aos cães, mas especificamente aos cães errantes. Nas reuniões da Organização Mundial da Saúde, o problema era anunciado e afirmava-se com veemência que a eliminação de animais de rua era um método inquestionavelmente eficaz apra controlar e erradicar a raiva:

A eficácia da vacinação profilática de cães com vacina potente, combinada a outros procedimentos de controle da raiva (registro de cães) e eliminação de animais errantes foi comprovado inquestionavelmente no controle e erradicação da raiva. A qualidade variável da vacina de raiva para cães e a necessidade de vacinação anual, no entanto, constituem empecilhos à aceitação do valor e exequibilidade à vacinação canina (WHO/OMS, 1949).

Em 1973, o 6º Informe Técnico da Organização Mundial de Saúde (OMS), a partir de reunião do Comitê de Especialistas em Raiva, recomendou a adoção de medidas de combate à raiva a partir da eliminação desses animais em situação de rua. Essa linha foi defendida com veemência até o final da década de 1980.

Os cães errantes continuam sendo uma ameaça na transmissão da raiva e, por isso, um programa conduzido de forma eficiente para a eliminação desses animais é necessário. Tal programa requer uma operação do canil local ou abrigo de animais no qual os cães devem ser mantidos temporariamente e, se não forem reclamados ao fim de um curto período, destruídos. Em caso de surto em áreas previamente livres de raiva, a eliminação dos cães errantes deve começar prontamente e continuar com o máximo de eficácia. A prática de disponibilizar animais errantes e apreendidos para adoção deve ser suspensa durante os surtos de raiva em uma comunidade (WHO, 1973: 35).

A institucionalização dos programas de eliminação de cães em situação de rua ocorreu em vários países, inclusive no Brasil, como será abordado nos capítulos seguintes. De fato, o descontrole populacional de cães e gatos soltos nas ruas está relacionado ao aumento da transmissão de zoonoses, mas a associação direta entre os animais e as doenças é uma representação frequentemente questionada por médicos veterinários, biólogos e protetores de animais. Os questionamentos feitos por esses grupos é que a maior parte das zoonoses não é transmitida no contato com o corpo do animal, e sim com alimentos contaminados, com as fezes e urina e, ainda, através de vetores que atuam como intermediários, como mosquitos e moscas. Diante disso, é digno de nota que as políticas de prevenção tenham sido calcadas na captura e eliminação de cães e gatos ao longo de décadas, tanto quanto é sintomático que essas medidas tenham se tornado alvo de questionamentos acadêmicos e protestos políticos nos últimos anos.

O desenvolvimento de uma vacina contra a raiva foi alvo de esforços da OMS nas primeiras décadas do século XX. Em 1949, uma vacina já tinha sido desenvolvida e estudos continuavam sendo feitos para desenvolver drogas mais eficazes, mas havia dificuldades de aceitação pelas autoridades, devido à necessidade de vacinar os animais anualmente – o que parecia pouco prático (WHO, 1949)24. Foi o argumento técnico do resultado alcançado pelas vacinas que firmou esse procedimento em todo o mundo. A mesma comprovação de eficácia/ineficácia foi necessária para que se começasse a cogitar a mudança da política de extermínio pela esterilização dos cães e gatos, já no final da década de 1980.

A eliminação de cães e gatos é uma medida tensa, que demonstra, com bastante clareza, a posição ambígua dos animais de estimação na sociedade contemporânea, representados como seres próximos dos humanos, por um lado, e como fonte de risco

24 Os países escolhidos para a realização de testes da vacina e do soro anti-rábico para humanos foram Israel

e Egito, onde a incidência de raiva era grande e as autoridade veterinárias haviam demonstrado interesse em colaborar

para os humanos, por outro lado. São, a um só tempo, fontes de afeto e fontes de doenças e, por isso, parece haver uma proporção inversa entre afeto e nojo/medo.

Embora uma mudança na política de controle da raiva não tenha ocorrido até que a medida se mostrasse tecnicamente eficaz, é perceptível que a atuação da carrocinha no século XX já era feita de forma a preservar a sensibilidade dos cidadãos. Diferente da eliminação com tiro e pauladas, o procedimento nesse período foi submetido a regras de bem-estar – ao menos oficialmente. Havia procedimentos “humanitários” para a captura, para a eliminação (que passou de “destruição” a “eutanásia”) e tudo deveria ser feito longe das vistas. A população já não extraía prazer de participar ou assistir ao sofrimento desses animais, como tivera até o século XVII e o “sofrimento necessário” foi para “os fundos da vida social”. Esse processo de afastamento da ideia de morte foi identificado por Elias também em relação aos “animais comestíveis”, cujo trincho passou da mesa para a cozinha, e deixou de ser feito pela figura de autoridade para ser feito pelos subalternos, visto que lidar com a morte tornou-se degradante (ELIAS, 1994; 2001). Foi no final da década de 1980 que a OMS começou a questionar a eficácia do extermínio dos cães errantes:

No Sri Lanka, em que amplas operações de eliminação de cães foram realizadas sistematicamente desde 1977, ficou demonstrado que, a despeito dos resultados aparentemente altos (entre 35 e 50 mil cães eliminados por ano), essas atividades não estão alcançando mais que 5% da população total de cães. Adicionalmente, exames sorológicos feitos nos cães eliminados demonstrou a existência de anticorpos da raiva em 4% da amostra. Uma análise retrospectiva dos resultados das campanhas permanentes e eliminação de cães realizadas em Guayaquil [no Equador] entre 1980 e 1985 demonstram que mesmo uma eliminação atingindo o nível de 25-12% da população total estimada de cães não afeta de maneira durável o tamanho da população alvo e não reduz de maneira durável a incidência da raiva canina (WHO/OMS, 1988).

Em parecer emitido em 1992, o Comitê de Especialistas da OMS em Raiva asseverou que a captura e morte de animais errantes não era eficaz no combate à zoonose, pois a alta taxa de reprodução das espécies canina e felina tornava sua eliminação dispendiosa e ineficaz, além de gerar reações negativas em algumas comunidades que não aceitavam a medida (OMS, 1999)25. A partir de tal constatação, a organização passou a

25 Em uma estimativa parcimoniosa, considerando que cada cadela amadureça sexualmente aos 10 meses

de idade e gere 4 filhotes por ano, sendo metade fêmeas, a OMS calcula que sua descendência possa triplicar a cada ano. Essa estimativa é conservadora se considerarmos que cada cadela pode dar duas crias por ano, com média de 7 filhotes. Nos cálculos da ONG Arca Brasil (2000), uma única cadela e seus descendentes podem gerar 64.000 novos animais em seis anos e uma gata e seus descendentes, que podem ter até quatro ciclos estrais (cios) por ano, podem chegar a 174.760 descendentes em sete anos.

recomendar políticas públicas de esterilização e identificação dos animais, acompanhadas de ações educativas junto à população26.

A mudança no papel dos Agentes de Controle Animal mudou radicalmente a imagem desses profissionais, que passaram a assumir um papel parecido com o da polícia e se tornaram quase astros em programas de televisão dedicados a ações de resgate de animais em situação de maus tratos, como Distrito Animal, Pitt Boss, Pitt Buls e Condenados, Acumuladores de Animais, Animais em Risco, Bom dia Kalimantan e Resgates Milagrosos (todos no Animal Planet)27.

1.5. IMPULSOS CIVILIZADORES NAS RELAÇÕES COM OS ANIMAIS