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3. OS IMPULSOS CIVILIZADORES E A POSIÇÃO AMBÍGUA DOS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO NO BRASIL

3.2. ANIMAIS DE DENTRO, ANIMAIS DE FORA E A CARROCINHA

3.2.2. Combate à raiva no Brasil

Após o anúncio do tratamento antirrábico bem-sucedido, desenvolvido por Louis Pasteur, em 1886, a Academia de Ciências de Paris organizou uma subscrição pública internacional para que fosse criado um instituto antirrábico a ser presidido pelo pesquisador, no qual seriam realizadas pesquisas biomédicas, bem como o desenvolvimento de vacinas e tratamentos. Antes mesmo que a inauguração do instituto parisiense ocorresse, o governo imperial brasileiro providenciou, em 25 de fevereiro de 1888, a fundação de um Instituto Pasteur no Rio de Janeiro, seguido alguns anos depois pela fundação de um Instituto Pasteur em Recife (TEIXEIRA, 1993). Em 1901, membros da elite cafeeira paulistana realizaram uma campanha, a partir do Clube Internacional, com o objetivo de levantar fundos para a fundação de um Instituto Pasteur em São Paulo,

89 Vale lembrar, ainda, que as doenças usadas como justificativa para o chamado da carrocinha e a ação

desta muitas vezes são facilmente tratáveis, como é o caso da sarna que, embora crie um aspecto de sujeira pelas feridas que gera no corpo do animal, geralmente é curada em menos de 15 dias, com uma ou duas injeções de baixo custo.

que ocorreu em 1903 (BABBONI & MODOLO, 2011). Comemorando o fato, o jornal “O Estado de São Paulo” noticiou que, até setembro daquele ano (1903), a Diretoria Sanitária e a polícia já haviam enviado para tratamento no Rio de Janeiro 63 pessoas mordidas por cães hidrófobos (TEIXEIRA, 1993:162).

Os institutos criados no Brasil cumpriam basicamente a função de postos médicos, para o tratamento preventivo de pessoas mordidas por animais supostamente hidrófobos, com o desenvolvimento das vacinas, de acordo com o procedimento desenvolvido por Pasteur. Segundo Teixeira (1993), o Instituto Pasteur de São Paulo foi o único que serviu tanto ao combate à raiva quanto à fomentação de pesquisas biomédicas variadas, aproximando-se um pouco mais da estrutura montada no Instituto Pasteur de Paris. O objetivo de promover o ensino da bacteriologia, no entanto, não foi cumprido em nenhum dos institutos brasileiros.

Enquanto isso, o instituto francês, que foi inaugurado com cinco laboratórios e vinte técnicos, em cinco anos já mantinha um hospital para estudo de doenças infecciosas, um periódico científico e três filiais. Nesses laboratórios franceses, descobertas importantes para a saúde coletiva foram feitas. Alguns destaques são apontados por Teixeira (1993:161):

Entre suas maiores conquistas figuravam a descoberta do modo de atuação do bacilo diftérico (Roux e Yersin, 1888); a descoberta do tratamento da difteria e o desenvolvimento da soroterapia (Martin e Chaillou, 1894); os primeiros trabalhos sobre fagocitose e inflamação (Metchnikoff, 1888/1900) e a identificação do bacilo da peste (Yersin, 1894).

Ainda de acordo com Teixeira (1993), a criação dos simulacros do Instituto Pasteur no Brasil deve ser entendida, antes, como uma tentativa de adequar o país aos parâmetros de desenvolvimento da Europa, que fornecia aos países periféricos não apenas um modelo de economia, como também de medicina e ordenamento urbano. Nesse sentido, ele acrescenta:

À primeira vista, os únicos denominadores comuns a essas instituições são a do nome Instituto Pasteur e a fabricação da vacina anti-rábica. Isto nos remete a uma dimensão simbólica da revolução pasteuriana, que atribui um sentido mítico e fundador a Pasteur e que historicamente está alicerçada em sua primeira descoberta no campo da medicina humana. Como precursores do processo mais geral de institucionalização da medicina pasteuriana no Brasil, os Institutos Pasteur nacionais exerceram, por algum tempo, função de emblemas do desenvolvimento de uma nova medicina enfim alçada ao grau de cientificidade e empenhada em romper laços com um passado considerado pré- científico e improfícuo pelos porta-vozes de seus discursos (...) A disseminação de réplicas do Instituto Pasteur denotaria o avanço da civilização do país, para as elites urbanas, que entendiam modernização como assimilação

de valores, hábitos, indumentárias e fachadas, como criação, enfim, de cenários importados do velho continente (TEIXEIRA, 1993:151)

A realização de pesquisas no instituto paulista, continua o autor, ganhou fôlego a partir de 1906, com a inauguração de novas linhas de pesquisas e a fabricação de novos produtos biológicos, como a vacina para a tuberculose bovina, os soros anticarbunculoso e antitetânico, a tuberculina, a maleína, a gelatina esterilizada além de testes para o diagnóstico da febre tifóide e desenvolvimento de um microrganismo contagioso que servia para o combate biológico aos ratos. O público para esses produtos, no entanto, ainda não estava estabelecido, por isso os relatórios frequentemente fazem referência à dificuldade de comercialização e ao fato de que a população ainda desconhecia as atividades industriais da instituição (TEIXEIRA, 1993).

Assim, a função principal do Instituto Pasteur de São Paulo foi a oferta de tratamento antirrábico, cuja demanda crescia de tempos em tempos, a partir dos surtos da zoonose, que ocorreram nos biênios de 1908 a 1909, de 1912 a 1913 e novamente após 191590. Em 1909, o Instituto Pasteur de São Paulo lançou uma campanha de esclarecimento, com panfletos para a população, indicando a forma de prevenção da doença (idem, ibidem).

Embora a raiva tenha chegado às Américas no século XIX, apenas em 1911 foi identificada no meio rural brasileiro. Uma epizoopatia desconhecida atingiu o rebanho bovino de Santa Catarina e Antonio Carini, um dos pesquisadores do Instituto Pasteur de São Paulo, descobriu que se tratava de hidrofobia, chegando à conclusão pioneira de que os morcegos eram possíveis transmissores da raiva aos bovinos (TEIXEIRA, 1993). A hipótese, comprovada em definitivo vinte anos depois, reforçou a percepção de que a centralidade dos cães na transmissão do vírus rábico ocorre especialmente no meio urbano. Para evitar que a doença se espalhasse na zona rural, o Governo Federal encarregou o Instituto Oswaldo Cruz de realizar, em parceria com o governo de Santa Catarina, um programa antirrábico que consistia na eliminação dos animais suspeitos de hidrofobia e na vacinação das pessoas atingidas. Esse programa sofreu resistência de grande parte da população e dos criadores, que não admitiam o abate do gado, mas foi levado adiante.

90 Entre 1904 e 1907, fora realizada uma média de 378 atendimentos ao ano, que passaram para a média de

622 atendimentos ao ano entre 1908 e 1909. Já no biênio de 1912 e 1913, a média de atendimentos antirrábicos em São Paulo subiu para 986 por ano (TEIXEIRA, 1993:167).

Já no meio urbano, a primeira tentativa de controle em relação aos cães “com dono” foi a exigência para que fossem mantidos dentro das propriedades, saindo apenas de focinheira, sob pena de recolhimento e multa (VIEIRA et al, 2007). No município de São Paulo, essa tentativa foi feita com a lei 143, de 1895, pela qual os cães começaram a ser controlados através de registro e uso de focinheiras:

Art. 1º - Ninguém poderá ter cães soltos nas ruas do Município sem que estejam açaimados e com colleira numerada que indique ter pago o imposto municipal, sendo os cães de caça marcados a fogo em vez de trazerem colleira

Essa regra, mesmo que tenha sido cumprida em algum momento, não seria capaz de reduzir significativamente a quantidade de cães soltos nas ruas, pois a alta taxa de reprodução dos cães levou ao surgimento de uma população crescente de animais “sem dono”, que não teriam quem os prendesse. Esse aumento populacional deve-se tanto à reprodução dos animais em situação de rua quanto dos animais domiciliados, cujas crias são constantemente colocadas nas ruas. Na prática, portanto, o procedimento adotado foi conter os cães especiais, para que não se misturassem e não ficassem submetidos aos perigos da rua – entre os quais a captura pelos agentes de controle sanitário e a contaminação pela raiva. Enquanto isso, os “cães vadios” deveriam ser periodicamente exterminados.

Acompanhando as mudanças no paradigma científico a partir do desenvolvimento da microbiologia, as principais capitais brasileiras começaram a adotar iniciativas higienistas inspiradas no modelo civilizatório europeu. As medidas sanitárias para o ambiente urbano destinavam-se a uma população com pouco esclarecimento em relação às doenças que estavam sendo combatidas e resistente à imposição de controle do poder público em suas vidas. Assim, eram vistas com desconfiança e mesmo com revolta as campanhas de vacinação, o estabelecimento de uma maneira não tradicional de descartar dejetos e a exigência para que se mantivesse os cães presos em casa, sob pena de captura e eliminação dos que estivessem vagando nas ruas. A multiplicação dos cães errantes era vista como um dos fatores responsáveis pela transformação das cidades em um ambiente de desordem, sujeira e perigo para a saúde.

Enquanto o abate do gado gerava resistência, devido aos prejuízos econômicos para os criadores, o abate de cães errantes não tinha o mesmo impacto, especialmente porque grande parte dos animais capturados não possuíam “dono” ou eram de pessoas pobres com menores possibilidades de reclamá-los. Diferente do que foi feito com o gado, porém, a eliminação de cães não ocorria apenas quando houvesse suspeita de raiva, pois

não se tratava apenas de conter a doença, mas também de reduzir a população canina, que se multiplicava rapidamente.

A redução da população canina, entendia-se, precisaria ser feita respeitando a propriedade dos cidadãos, por isso o objetivo da captura nas ruas era eliminar fundamentalmente os “cães vadios”. Em São Paulo, o ato 123 de 1902, estabeleceu que os cães registrados que fossem capturados em São Paulo seriam mantidos em um canil municipal por 24h, podendo ser reavidos pelos “proprietários”. Além disso, mesmo que não portassem registro, os cães de raça, que possuíam valor econômico, também seriam mantidos pelo mesmo período, para que possíveis interessados tivessem a chance de arrematá-los. Já os animais sem raça definida e sem registo seriam mortos imediatamente após a captura (VIEIRA et al, 2007).

Art. 3º - Serão aprehendidos e levados ao depósito, embora se haja pago o imposto a que se refere o art. 1º, todos os cães que forem encontrados, nas ruas e praças, vagando ou em companhia de qualquer pessoa, ou ainda atrelados à vehiculos, desde que não estejam convenientemente açamados.

Art. 4º - O uso da mordaça só se dispensará quanto aos cães que permanecerem no interior das habitações particulares, ou, à noite, nos jardins das mesmas habitações.

Art. 6º - Aprehendidos os cães e levados ao depósito, serão immediatamente mortos, pelo processo julgado melhor e mais rápido, com excepção dos matriculados ou de raça especial, ainda que não matriculados, os cães se conservarão no mesmo depósito por 24 (vinte e quatro) horas.

Art. 7º - Os donos de raça ou matriculados, que os forem procurar no depósito, pagarão a multa e mais a diária, de 500 réis, que se dará recibo no mesmo acto91.

Apesar das tentativas de reduzir a população canina, ou justamente pelo fato de serem ineficazes, os casos de raiva tornavam-se mais numerosos e espalhavam-se em um número maior de cidades. De acordo com Babboni & Modolo (2011), em 1963, a recém- criada Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu chegava a atender, em média, por dia, três cães com suspeita de raiva, havendo dias em que a demanda era ainda maior:

Em momentos de pico, chegou-se a atender sete cães, num único dia, e a ter 40 cães internados com suspeita de raiva, alguns deles comprovadamente com a doença, o que deixava em pânico os proprietários desses animais, a população humana da cidade e os órgãos públicos da época (idem, ibidem: 353).

Na segunda metade do século XX, instituições de ensino e institutos de pesquisa dedicavam-se ao atendimento profilático da população e à investigação de suspeitas de raiva em cães.

Devido ao elevado número de casos de raiva humana transmitida principalmente por cães nas décadas de 1950 e 1960 no Brasil, municípios e estados desenvolveram atividades e regulamentações direcionadas ao controle de zoonoses; em particular, da raiva. Um exemplo foi a Lei Orgânica dos Municípios publicada em 1969, no estado de São Paulo, que estabelecia a identificação e o controle dos fatores determinantes e condicionantes da saúde individual e coletiva mediante ações de vigilância sanitária e epidemiológica. Para o controle da raiva, eram necessárias atividades de vacinação animal, captura e controle de animais errantes e bloqueios de focos em áreas com circulação de vírus (WADA, ROCHA & MAIA-ELKHOURY, 2011:510).

Em 1973, foi lançado o Programa Nacional de Profilaxia da Raiva (PNPR), que consistia em fornecer ou subsidiar soro e vacina antirrábica para pessoas mordidas, promover campanhas de vacinação para cães e, também, em tentar reduzir a população canina com a eliminação de animais errantes.

São Paulo foi pioneiro ao implantar o Programa Estadual de Controle da Raiva em 1975. Nessa época, o coeficiente anual de incidência da doença era maior na capital que no interior, demonstrando que a raiva era um problema nos grandes centros urbanos (BABBONI & MODOLO, 2011: 353).

Acompanhando a política de captura e extermínio permanente de animais errantes recomendada pela OMS, as ações de captura e morte começaram a ser realizadas no Brasil na década de 1960, mas foi em 1973 que os programas foram institucionalizados (SOUZA, 2011). Foram criados, assim, os Centros de Controle de Zoonoses ou Centros de Vigilância Ambiental – órgãos municipais, vinculados às secretarias de saúde, responsáveis pelo controle e prevenção de zoonoses. Para potencializar a capacidade de captura, foram adquiridos veículos especialmente voltados a esse fim, as chamadas “carrocinhas”. A “carrocinha” tornou-se parte do imaginário urbano, de tal maneira que vários animais de desenhos animados aparecem sendo perseguidos ou levados por seus funcionários, como os dois protagonistas de “A Dama e o Vagabundo” (lançado em 1955), o cão Spike (Tom e Jerry), Pluto (Mickey), Manda Chuva e Marmaduke. Em todos os casos, a captura é feita ou tentada por um personagem masculino com feições maléficas e tanto o carro quando o canil são retratados como prisões. No Brasil, as revistas da Turma da Mônica, entre as décadas de 1970 e 1990, traziam, com frequência, o personagem Bidu fugindo do “homem da carrocinha”, que, à semelhança dos personagens estrangeiros,

portava uma vara em cuja ponta projetava-se uma rede, com a qual tentava capturar cães pelas ruas92. Também eram frequentes, na década de 1990, as piadas sobre cães que

virariam sabão.

Nessa política de prevenção às zoonoses, os animais selecionados para serem eliminados são aqueles encontrados soltos nas ruas, mas não é a sua situação de animal solto que o torna eliminável, e sim a sua situação de “sem dono” (LIMA & SILVA NETTO, 2010). Isso é perceptível tanto pela garantia legal de que os “proprietários” possam recuperá-los no canil do CVA/CCZ, no prazo de alguns dias, quanto pelo fato de não haver nenhum tipo de sondagem epidemiológica em relação aos animais que estão dentro das casas para detectar ou prevenir a raiva, tampouco para a realização de controle populacional93.

É preciso lembrar que o parecer da OMS sobre a ineficácia do extermínio de animais errantes e recomendação de esterilização dos animais só começou a ser incorporado no Brasil no início dos anos 2000. A eliminação de animais errantes não foi planejada e recomendada pelo fato de esses cães andarem soltos ou serem agressivos, e sim porque se considerava necessário reduzir a população de animais nas cidades e esses animais anônimos não fariam falta a ninguém. Partindo da lógica de que o animal de estimação é uma propriedade e que sua vida só é importante na medida em que seja importante para algum humano, eram os cães sem “dono” que poderiam ser eliminados sem prejuízo aparente para ninguém – visto que o interesse do cão em si não seria considerado nessa equação.

Em Recife, o Código Municipal de Saúde de Recife (Lei nº16.004), datado de 1995, previa que cães e gatos apreendidos pela carrocinha teriam 3 dias para serem resgatados no Centro de Vigilância Ambiental. Passado o prazo, poderiam ser alienados mediante leilão administrativo, doados a pessoas físicas e jurídicas, bem como a instituições de saúde ou ensino superior (para o uso em pesquisas) ou serem sacrificados (opção mais frequente).

92 O instrumento que aparecia nas histórias em quadrinhos era uma adaptação do cambão, que não capturava

com rede, e sim com um laço na ponta, com o qual se prende o pescoço do animal (gato ou cão), que é suspenso pelo pescoço e transferido para uma gaiola, ainda preso pelo cambão para evitar possíveis agressões nas tentativas de fuga.

93 Esse tipo de investida só ocorrerá em relação à leishmaniose e, ainda assim, de forma residual. O estudo

de Bevilacqua el al (2000) demonstrou que, no caso de Belo Horizonte, os cães dos moradores de bairros nobres só passaram a ser examinados quando o surto já alcançara esses locais.