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EUTANÁSIA DE ANIMAIS NÃO-HUMANOS: A ÉTICA DISPENSADA PELA LEGALIDADE

3. OS IMPULSOS CIVILIZADORES E A POSIÇÃO AMBÍGUA DOS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO NO BRASIL

3.3. EUTANÁSIA DE ANIMAIS NÃO-HUMANOS: A ÉTICA DISPENSADA PELA LEGALIDADE

Como já havia constatado no capítulo 1, a mudança na diretriz de controle populacional de cães e gatos pela OMS não foi motivada por razões éticas, e sim por questões técnicas, de custo e eficácia. De maneira semelhante, ao analisar alguns projetos de lei brasileiros, percebemos como os textos de proposição do fim da política de captura e morte subordinam a perspectiva de proteção animal à necessidade de proteger os humanos com maior eficácia:

Isso ocorre porque toda negociação política, como a elaboração e implementação de leis, traz a necessidade de dialogar com setores que apresentam sentidos diferenciados. O texto final de uma lei traz em si a explicitação de certos conflitos e a desigualdade entre as partes envolvidas quanto à possibilidade de articular forças políticas, mídia e opinião pública. Assim, é possível perceber, nas leis aqui estudadas, que a visão dos protetores (leis voltadas para a proteção dos animais não-humanos), acaba subordinada à

ideia de que o controle deve ser feito no sentido de proteger os animais humanos com mais eficácia (LIMA & SILVA NETTO, 2010: 9).

Alguns exemplos podem ser destacados, entre os projetos de lei pioneiros de proibição da captura e morte como método de controle populacional de cães e gatos. Entre esses, o PL 117/2008, de São Paulo, ressalta os interesses em comum entre a proteção dos animais e a proteção da salubridade pública:

(...) Da ultrapassada política de saúde decorre o crescente número de cães e gatos que pelas ruas vagam (...) Convém lembrar que a proteção aos animais e a salubridade pública, longe de serem valores antagônicos ou irreconciliáveis, são interesses que se vinculam e que se voltam a um mesmo fim, já que as medidas que protegem os animais são as mesmas preconizadas pela OMS, por atuarem na defesa da incolumidade pública (São Paulo, PL 117/08)

Já o PL 1703/2003, do Rio de Janeiro, refere-se à captura e morte de animais errantes como

prática antiética, tecnicamente obsoleta, ineficaz e dispendiosa, atentando contra os princípios da moralidade e da eficiência (Rio de Janeiro, PL 1703/2003)94

Por fim, o PL 1376/2003, de caráter nacional, afirma que a mudança na política de controle populacional é uma forma de atender às normas de saúde, prevenir crimes ambientais e seguir os princípios da moralidade e da eficiência na administração pública:

E não cabe à saúde pública atuar com critério leigo, se há critério técnico solucionando o problema. Não enfrentar a questão é desatender às normas de saúde pública, mesmo porque, o aumento do número de animais de rua, não vacinados e não assistidos, é fator facilitador da disseminação de doenças.

O povo deve ser conscientizado da necessidade de esterilizar os animais, ainda que domiciliados, para que se ponha fim à cruel e criminosa prática do abandono de filhotes indesejados, que contribui para o aumento de animais de rua e a sua conseqüente exposição a maus-tratos, além de incidir na norma punitiva do artigo 32 da Lei nº 9.605/98, que tipificou a conduta como crime ambiental.

O método atualmente empregado, além de ser oneroso para os cofres públicos, carece de ética e de eficácia, o que atenta contra os princípios da moralidade e da eficiência (BRASIL, PL 1376/2003)

Apesar das iniciativas legislativas para substituir a eutanásia de animais saudáveis pela esterilização cirúrgica, o Ministério da Saúde ainda preconiza o procedimento

94 De forma semelhante, o Projeto de Lei 356/2005, apresentado no Rio de Janeiro para a criação de um

pronto-socorro veterinário gratuito com viaturas e atendimento 24h, apresenta como justificativa o risco de “acidentes graves de trânsito a que estão submetidos os munícipes”, causados por animais de grande porte ou cães e gatos em logradouros públicos, e que neles permanecem agonizando após os sinistros”. Apesar de assim justificada, a lei é apresentada, ainda, no sentido de “consolidar o município do Rio de Janeiro na posição de pioneirismo que mantém no País com relação à defesa dos direitos dos animais”.

tradicional de captura e morte de 20% da população canina a cada ano, de acordo com o Guia de Vigilância Epidemiológica (BRASIL, 2002; 2009). No mesmo documento, medidas educativas de combate à raiva são previstas e, entre elas, encontra-se a orientação seguinte:

Não valorizar a proteção do cão errante, mostrando o potencial zoonótico como reservatório de doenças desses animais, assim como o incômodo e agressões que os mesmos podem ocasionar (BRASIL, 2009).

Ao apontar a proteção aos cães errantes como empecilho, o documento evidencia a exclusão desses animais do leque de preocupações morais dos formuladores das políticas de saúde.

Em consonância com o Ministério da Saúde, o Conselho Federal de Medicina Veterinária apontou, na Resolução nº174, de 2002, que, entre outros casos, a eutanásia deve ser indicada pelo médico veterinário “quando o animal constituir ameaça à saúde pública ou animal, ou for objeto de ensino ou pesquisa” (CFMV, 2002). Em 2012, o Conselho publicou nova resolução sobre eutanásia, com o objetivo de “alinhar os métodos a recentes alterações promovidas na legislação da Associação Americana de Medicina Veterinária e de outros países da Europa” (CFMV, 2012a). Nesse novo documento, ainda vigente em 2015, os preâmbulos passaram a trazer a consideração de que “os animais submetidos à eutanásia são seres sencientes e que os métodos aplicados devem atender aos princípios de bem-estar animal”. Entretanto, as situações com indicação de eutanásia para proteger os humanos foram ampliadas, passando a incluir situações em que “o tratamento representar custos incompatíveis com a atividade produtiva a que o animal se destina ou com os recursos financeiros do proprietário”. Quanto ao uso para atividades científicas e pedagógicas, o conselho manteve uma postura conservadora, não tendo apresentado restrições ao uso de animais em laboratório ou em sala de aula. A ressalva do CFMV em relação a isso é de que essas atividades sejam “devidamente aprovadas por uma Comissão de Ética para o Uso de Animais”. Como destaca Paixão (2004), a atuação dessas comissões muitas vezes não tem estimulado debates sobre a necessidade de realização dos procedimentos propostos com animais, limitando-se a regulamentar os procedimentos e cobrar deles cientificidade e eficácia. É o que ela destaca a seguir:

Pode-se dizer que o foco de atuação dessas comissões é a questão do bem estar animal, ou seja, minimizar a dor e o sofrimento e promover o bem-estar animal. Porém, a questão não deve ser colocada de forma simplista. Afinal, uma avaliação do ponto de vista ético, que não alcance a questão ética fundamental,

não poderá ser considerada ética e nem mesmo conseguirá atuar como uma forma de controle do uso de animais. A questão ética fundamental coloca a dúvida sobre o experimento como um todo e não sobre um ou outro procedimento, isto é, “esse experimento deve ser feito?” - esta é a questão ética fundamental (Hampson, 1991). A questão exige, portanto, uma avaliação do mérito da pesquisa e do status moral do animal. É exatamente em relação à pertinência de a comissão fazer esse tipo de avaliação que faz surgir as divergências quanto ao “papel da comissão”. Pode -se observar um grande debate no meio científico sobre até que ponto tais comissões têm competência ou devem fazer a avaliação do mérito da pesquisa (PAIXÃO, 2004:6).

A conduta de veterinários em relação à eutanásia de animais usados como cobaias foi padronizada pelo “Guia Brasileiro de Boas Práticas para Eutanásia em Animais”, publicado pelo CFMV em 2013. Nas descrições de alguns métodos de eutanásia aceitos sob restrição, a preocupação expressada no texto é com a eficácia dos procedimentos e com a sensibilidade dos observadores, havendo poucas observações em relação ao bem estar do animal a ser eutanasiado, como pode ser observado nos extratos seguintes:

a.3 - deslocamento cervical

(...) deve ser realizado, sempre que possível, com o animal sob anestesia geral. Esta técnica é amplamente empregada em pequenos animais de laboratório e quando bem realizada é eficiente e segura (...) Se o método não for realizado corretamente a perda de consciência pode não ser instantânea (...) As vantagens principais deste método são a ausência de contaminação química dos tecidos dos animais e sua eficiência quando corretamente realizado. As desvantagens consistem na percepção negativa para observadores e ineficiência quando realizado por indivíduos não treinados ou que estejam cansados (CFMV, 2013: 43).

a.4 - decapitação

A decapitação é aceita condicionalmente para pequenos roedores e aves. Ela é comumente usada quando os métodos químicos interferem com os resultados da pesquisa, porém, somente é recomendada quando a sua necessidade é justificada (...) Outro fator a ser levado em consideração é o estresse dos animais pela manipulação. O uso da anestesia anterior à decapitação deve sempre ser considerado e pode tornar o método esteticamente mais aceitável (CFMV, 2013: 43).

Embora o deslocamento cervical dependa de um operador hábil para que a morte seja instantânea, o CFMV admite o risco de que seja realizado com falhas, dada a vantagem de não haver contaminação dos tecidos. Ressalte-se, ainda, que, apesar de prever a possibilidade de falha, as desvantagens apontadas são referentes à sensibilidade dos observadores e à eficácia quanto ao objetivo pretendido. No caso da decapitação, também considerada vantajosa pela ausência de contaminação, entende-se que a manipulação dos animais para que estejam na posição adequada à decapitação é estressante, mas o uso da anestesia é sugerido como forma de tornar o método “esteticamente mais aceitável”. Tanto nesses casos como nos procedimentos aceitos para

animais “de produção”, torna-se evidente a relação entre classificação dos seres e ordenamento moral, apontada anteriormente, com Boltanski & Thevenot (2006). Dois exemplos podem ser destacados:

a.5- Trauma direto na cabeça

Existem circunstâncias em que a morte do animal deve ser induzida imediatamente, como é o caso de nascimento de leitões que apresentam lesões extensas ou malformações. Nestas situações o esmagamento da cabeça é o método mais prático e deve ser conduzido de forma que o animal fique inconsciente imediatamente (...) O método, embora seja visto negativamente pelo observador, em certas circunstâncias, é o único disponível para o rápido alívio da dor ou eliminação de animais que sejam inviáveis após o nascimento (CFMV, 2013: 44).

a.8-Maceração

Este método é empregado com o uso de equipamento apropriado em que a velocidade das lâminas produz imediata destruição por laceração dos tecidos e induz rapidamente a morte de um grupo de pequenos animais. Este método é aplicado quando há grande número de animais a serem eutanaziados, como no caso de incubadoras industriais, que realizam a eutanásia de pintinhos defeituosos ou de ovos embrionados. A maceração pode ser considerada equivalente ao deslocamento cervical ou ao trauma sobre a cabeça. Suas vantagens são a morte instantânea e a possibilidade de ser aplicado a um grande número de animais, sendo considerado seguro para quem o aplica. Seu uso causa efeito negativo à observação, requer equipamento apropriado e os tecidos macerados podem apresentar risco de biosseguridade (CFMV, 2013: 45).

Essas duas técnicas, previstas para animais usados na indústria de alimentos, em geral recém-nascidos, partem do pressuposto de que haja necessidade de abate imediato para leitões com má formação e pintinhos defeituosos. É interessante perceber que esse pressuposto está assentado em nada mais que o desperdício que representa realizar a eutanásia em outro momento e/ou com material adequado e anestesia, visto que, até lá, os animais gerariam custos ao proprietário.

Devido ao processo histórico de construção de uma sensibilidade de evitação à morte e à violência, a mera descrição desses procedimentos pode causar espanto aos leitores. Entretanto, após a divulgação da resolução de 2012 sobre eutanásia, os protestos que o CFMV sentiu necessidade de responder não foram sobre o tratamento conferido aos animais “de produção” e “de laboratório”, e sim sobre o fato de que a legitimação da eutanásia por questões econômicas pudesse afetar cães e gatos. Em nota de esclarecimento publicada em outubro daquele mesmo ano, o CFMV afirmou que essa indicação não se aplicaria a tais espécies:

(...) o Médico Veterinário somente poderá fazer a indicação da eutanásia, quando o proprietário não obtiver recursos para custear o tratamento, no caso de animais de produção. O CFMV explica que nos casos dos pets, como são mais conhecidos os pequenos animais (cães e gatos), o tratamento médico veterinário deve ser a única opção indicada pelo Médico Veterinário quando houver possibilidade de cura e/ou tratamento do animal; o CFMV entende que os hospitais universitários ou públicos são um importante recurso para aqueles que não têm condições de custear o tratamento desses animais (CFMV, 2012b).

Obviamente, veterinários clínicos, pesquisadores e membros da diretoria do CFMV sabem que cães e gatos têm a mesma capacidade de sentir dor, estresse e desconforto que qualquer outro mamífero ou ave. Assim, é relevante sublinhar que apenas no caso dessas duas espécies a eutanásia por motivações econômicas ou de praticidade seja questionada e que certas técnicas de eutanásia, consideradas aceitáveis para leitões, ratos e aves sejam proibidas para cães ou gatos.

Se, por um lado, a anulação de ponderações éticas é evidente diante da legalidade conferida às técnicas acima descritas, por outro lado, há nesses documentos uma tentativa de mitigar essa situação, conferindo-lhe formas humanitárias. Na Resolução nº1000, a respeito da eutanásia, ocorre a recomendação de medidas que reduzam “desconforto e dor” nos animais, bem como “sofrimento emocional e psicológico” nos sujeitos humanos (CFMV, 2012a). Mais uma vez, a escolha dos termos demonstra a disparidades entre os envolvidos, visto que o mal que pode ocorrer aos seres não humanos é desconforto ou dor, enquanto os seres humanos, pelo simples fato de presenciarem a morte, podem ter sofrimento emocional e psicológico:

Art. 4º São princípios básicos norteadores dos métodos de eutanásia: I - elevado grau de respeito aos animais;

II - ausência ou redução máxima de desconforto e dor nos animais; III - busca da inconsciência imediata seguida de morte;

IV - ausência ou redução máxima do medo e da ansiedade; V - segurança e irreversibilidade;

VI - ausência ou mínimo impacto ambiental;

VII - ausência ou redução máxima de risco aos presentes durante o procedimento;

VIII - ausência ou redução máxima de impactos emocional e psicológico negativos no operador e nos observadores (CFMV, 2012a:2)

Chama atenção que os esforços para a racionalização da eutanásia incluam a tentativa de preservar a sensibilidade civilizada, de forma que o procedimento seja, de acordo com o artigo 8º, “seguro para quem o executa, causando o mínimo de estresse no operador, no observador e no animal”. O entendimento de que a morte fira a sensibilidade dos envolvidos é exposto com especial clareza na afirmação de que o médico veterinário

responsável pela eutanásia deverá prever “a necessidade de um rodízio profissional, quando houver rotina de procedimentos de eutanásia, com a finalidade de evitar o desgaste emocional” (CFMV, 2002; 2008; 2012a).

Cabe destacar, ainda, a preocupação em fornecer segurança legal ao profissional, expressa na orientação para, nos casos de eutanásia de animais de estimação, solicitar autorização, por escrito, do responsável legal:

No caso dos proprietários de animais de estimação, precisa haver esclarecimentos suficientes para o entendimento da necessidade do processo, do método a ser empregado e da irreversibilidade do mesmo. Deve ser facultado ao proprietário o direito de presenciar o ato e, se necessário, um período de tempo a sós com o animal antes da eutanásia. A destinação do corpo deve ser discutida antes do procedimento. O proprietário deve manifestar o entendimento de todo o processo e proceder à autorização de forma expressa. No julgamento do Médico Veterinário para indicar a eutanásia, o aspecto econômico deve ser o último numa escala de prioridades e jamais deve realizar a eutanásia como forma de atender a uma necessidade do proprietário, como por exemplo, a convivência com as limitações impostas pela idade avançada do animal (CFMV, 2012a).

Por fim, observa-se que a eutanásia de animais tutorados é rodeada de precauções, como dar um tempo para o “proprietário” se despedir do animal, mas, no caso dos animais recolhidos pela carrocinha, não há nenhuma descrição de cuidados a serem tomados, a não ser o uso das técnicas aceitas para tais espécies e o rodízio profissional.

Observando os documentos do Ministério da Saúde e do CFMV, é possível perceber que a eliminação de cães e gatos passou por um processo de legitimação e racionalização similar ao que garantiu a normalização do tratamento conferido às espécies “de laboratório” e “de produção”. Mas, afinal, por que a eutanásia de cães e gatos, ainda que realizada de forma mais “humanitária” que a das outras espécies, passou a ser alvo de tantos questionamentos? Essa questão é o foco do próximo capítulo.

4.

ENTRE CIVILIDADE E MORALIDADE: O SURGIMENTO