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2. RELAÇÃO, CONDIÇÃO E OPÇÃO DE ANTEU

2.1. A Relação de Anteu

2.1.5. Relação com o pensar religioso.

O reparo de Eduardo Lourenço sobre a temática essencial de Torga poderia levar-nos a pensar que a sua orientação neste domínio era a de um ateísmo, agnosticismo ou simplesmente de indiferença e esquecimento. Se há coisa que Torga não faz, é esquecer: e nem esquece o amigo nem o Deus da sua meninice e puberdade. O que numa primeira análise choca o leitor é este não se esquecer de Deus tanto para O continuar a referir (embora com vários nomes, como vimos) como para O continuar a enfrentar. Se dos amigos nos esquecemos algumas vezes tanto para mal (por preocupação de momento, pela distância) como para bem (para não guardar rancor ou não exercer vingança306 ), de Deus Torga não se esquece: auto-punição, auto-penitência, referência de construção pessoal ou simples desabafo de incapacidade e de receio pelo devir, Deus está na obra torguiana tão profundo como a terra, tão constante como o sonho, tão disperso como a vida e tão ausente como o autor. Torga só sossegaria com Deus quando sossegasse consigo mesmo. Dividido entre a ânsia e o limite, Torga não podia aceitar quem impedisse a superação nem esquecer quem lhe recordasse o infinito.

É difícil encontrar um estudioso de Torga que não se refira ao seu dilema religioso, à sua concepção de Deus ou simplesmente à atitude poética com que trata a divindade. Não exaustiva e até podendo considerar-se que sofre de uma certa intencionalidade doutrinária e apologética, a obra de António Freire Lendo Miguel Torga é das que mais referências faz à relação do desespero existencial de Torga com a problemática religiosa. Segundo o autor, Torga não se teria cultivado suficientemente ao nível religioso de um modo profundo e toda a sua atitude deveria situar-se também no facto de ter deixado

de rezar, depois de sair do Seminário de Lamego307. E aproveitando uma

citação de Eduardo Lourenço, tirada da sua obra O Desespero Humanista de

306

Veja-se o exemplo de ‘A Caçada’, em que no fim a atitude do homem que perdoa a ofensa é sinal de dignidade mais elevada do que a superioridade da honra lavada com sangue ou pelo menos aparentemente afirmada.

307

Miguel Torga e o das Novas Gerações, António Freire afirma que a situação

religiosa de Torga é ambígua e que ele joga simultaneamente no tabuleiro de Deus e do Homem, e que quase só conhece o homem como opositor a Deus. Mas o drama não pode ser situado ao nível da falta de informação, porque a vastidão e a profundidade de leituras e documentação são facilmente demonstráveis: Torga domina bem a mitologia e a simbologia cristã e até o seu alcance em termos de cosmovisão. O rigor da vida que o rodeava e o impelia para um justo aumento de condições materiais e a própria personalidade esquizotímica exigiam de um Deus um amparo claro ou uma oposição personalizante. A inclinação por esta justificação pode apresentar-se mais razoável: os referenciais de simbologia religiosa são greco-romanos ou cristãos (incluindo os do Antigo Testamento); se aderisse a um credo, seria ao cristão, conforme ele diz; e mais: falando sobre o seu feitio e o rumo de vida que tomou, diz também que criou um imagem que mantém, mas às vezes com custo e até dissabores – e estes podem não ser só ao nível sócio-político e afectivo!

A cultura religiosa de Torga vem da catequese, das vivências familiares, do tempo seminário e até da mitologia greco-romana que ele dominava profundamente. Também não terá sido informativamente inútil a diversidade de contactos mantidos por Torga com padres amigos de Coimbra, amigos das letras, amigos da caça, amigos das editoras, amigos da sua obra, etc. Não é novidade a aversão de Torga a massificações e dogmatismos; e, por outro lado, também não é desconhecido de ninguém o dilema ou a simples ambiguidade que resulta nos meios rurais com a mistura de fé e crendice, prática religiosa e superstição, culto e vivência pessoal e social. E se não encontramos Torga a criticar a ambiguidade dos outros no confronto da sua prática religiosa e culto e da sua vida concreta, encontámo-lo a defender de modo bem repetido a necessidade de coerência consigo e sobretudo o compromisso com o trabalho e com os homens. O sistema religioso, a orgânica e o peso institucional assustam-no, embora tenha da religião um sentido de respeito, significação e até deslumbramento:

"Uma autêntica vivência religiosa deslumbra-me sempre. Mas um sistema religioso apavora-me como a própria morte. À semelhança do que

ela faz às vítimas, também ele apaga a chama divina acesa no rosto da revelação, e lhe desenha o esqueleto mundano por debaixo da pele..." (Diário VII, 176).

Quanto a uma possível opção, se ela se viesse a fazer seria pela religião católica, como vimos. Se nesta opção possível pesou uma determinação ponderada intelectualmente, se pesou só o exemplo de muitos desses amigos ligados profundamente à Igreja católica, ou até se pesou só um certo saudosismo de infância, será difícil de determinar. Mas que o modelo antigotestamental é fonte constante de referência pelo menos para o lirismo de abandono, sofrimento e desengano... isso é inegável.

Sagradas, Torga só considerava três coisas na vida: a infância, o amor e a doença, porque nelas "a pessoa está indefesa"308. Por outro lado, "para falar de Deus não é preciso ter fé. Basta apenas estar de boa-fé"309. Isto não impede que se refira a uma certa nostalgia do Deus do catecismo e da sua

meninice310, e que em todas as terras por onde passava visitasse a

arquitectura religiosa311. Mas não se pode deixar de considerar radical a sua orientação para o humano e só a partir desse humano (como das pedras dos templos) é que poderá brotar o divino. Torga não se fica pela negação, como vimos, nem encontra substituto para o lugar desse deus. O seu ateísmo é só uma questão de fé312; e parece manter a esperança de um salto até ao 'alto':

Luar

(...) É deste aceno íntimo do alto

Que aligeira o tormento que em mim há De conceber o salto

Que me suba até lá (Diário II, 172).

Mas, por outro lado, o poema ‘Notícia’, de O Outro Livro de Job, é extraordinariamente violento e desesperado:

O verme também vivia... O Sol, de todos, como diz a Lei, aquecia-lhe o corpo musculado; mas a roda passou..., era de ferro... O caminho bastava..., aproveitado...verme 308 Diário XII, 90-91 309 Diário XVI, 83. 310 Diário X, 84. 311 Diário VIII, 193.

312 Cf. primeira estrofe de ‘Sementeira das Almas’, in Ansiedade, 45: "Ânsia de um mundo que se acaso existe/ Eu

Mas Deus, que guiava a roda, vinha bêbado e malvado. Tinham-lhe dito que a Vida pouco era,

de tão grotesca e pequena; só não havia outro sonho que tanto valesse a pena!... Andava e contava os passos para saber a distância que nos separa do céu...

Mas a roda passou..., era de ferro... E Deus que guiava a roda

nem o viu... (O Outro Livro de Job, 70-71).

O poema expressa uma revolta que não atinge na prática literária, profissional, ideológica ou social o nível que atingiu em muitas outras figuras313 e que se pode encontrar justificado no verso 12 do poema Orfeu Rebelde: "Violências famintas de ternura"314. É nesta perspectiva que se pode inserir uma certa ambiguidade de atitude torguiana perante a questão religiosa. Veja- se o poema ‘Diálogo’ de Orfeu Rebelde:

Pergunto...

Mas quem me poderia responder?! Tu não, rio sem asas,

Que permaneces A passar...

Nem tu, planeta alado, Que pareces

Parado A caminhar...

Humano, só de humanos meus iguais Entendo a fala,

Os gestos E o destino. E esses, como eu, Olham a terra e o céu, Os rios e os planetas E perguntam também...

Perguntam, mas a quem? (Orfeu Rebelde, 66-67).

Por isso, parece demasiado simplista a divisão feita por Fernão de Magalhães quando diz que o tema da relação com Deus se reduz a dois

313

Que se vão servindo do ateísmo para se fazerem notar, venderem livros e até enriquecerem; mas que se mantêm acomodados perante o sofrimento e injustiças reais dos 'semelhantes'.

314

momentos: até ao conto Vicente expressava-se o contra e a partir daí a ausência315. O próprio autor acabara de reproduzir o poema ‘Desfecho’316, em que parece notar-se uma imagem divina presente em toda a parte; e, por outro lado, as referências à primavera como recondução ab initio remetem para uma certa mitologia que não tem sentido sem a divindade. E se bem que Torga não coloque a questão da origem do universo e não precise de a remeter para uma divindade, o certo é que, ao admitir um sentido de perfeição, não pode admitir a circularidade. Então, a questão pode colocar-se nestes moldes: há uma fé no futuro, apesar de começar sempre ab origine, na primavera; esse futuro será diferente, quando não a perfeição não teria lugar; se admitirmos perfeição, temos de admitir a não circularidade e uma fonte transcendente. Só que em Torga esse transcendente não é mero exterior, que se operacionalizava com o ritual; é também um interior racional, que obriga cada um a fazer a sua parte no processo dialéctico que a razão tem de admitir. Esta parte é de algum modo o pecado (não pelo gosto do mal, mas pela graça que pode ter317); e é sobretudo o compromisso terreno e a apologia da força natural, contra o ranço velho que pode estragar o azeite novo318.