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1. O LOGOS DE ORFEU

1.1. A Racionalidade Poética

1.2.2. Racionalidade e imaginação

Com o enquadramento do que possam ser as condições e limites da criatividade a seguir abordadas, tomemos aqui imaginação como essa capacidade de construir uma alteração mais ou menos profunda ao paradigma de realidade ou de representação habituais. Para distinguir o que poderia ser uma imaginação puramente fantasista e descomprometedora ou até alienante do homem, poderemos usar uma expressão composta pelos termos imaginação e criação ao mesmo tempo, reconhecendo à imaginação criadora essa independência paradigmática mas ao mesmo tempo iniciadora de algo com possibilidades mais imediatas ou mediatas de realização. Na mediatez da realização estaria pelo menos presente o não absurdo dos procedimentos intermédios, a não alienação completa do enquadramento cultural e a não destruição indiscriminada de qualquer outra perspectiva ou opositor — condições já de algum modo implícitas no final do ponto anterior.

Citando Ducrot, diz Michel Meyer que “tudo aquilo que pode ser dito pode ser contradito. De modo que não podemos anunciar uma opinião ou um desejo sem, ao mesmo tempo, o destinar a eventuais objecções de interlocutores...; a formulação de uma ideia é a primeira etapa, e a decisiva, para se pôr algo em questão”127. Esta afirmação, que à partida parece a defesa essencial de uma relatividade absoluta, aponta antes para o reconhecimento da legitimidade da imaginação criadora: por racionalidade ou por afectividade, ou simplesmente pela combinação voluntária das duas, o homem sobreviveu e melhorou a sua existência global alterando técnicas e procedimentos, lutando por um ideal ou

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ECO –Metáfora, 238. Transcreve-se aqui só a comparação entre os quatro elementos: -Rosa: F (cor, frescura), A (natureza), M (vegetal), P (graça).

-Mulher: F ( “ “ ), A ( “ ), M (animal), P ( “ ).

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morrendo vencido mas não convencido. Talvez tenhamos de recorrer a essa capacidade para explicar todo o pensamento simbólico de que Mircea Eliade diz que “... não é domínio exclusivo da criança, do poeta ou do desequilibrado: é consubstancial ao ser humano, precede a linguagem e a razão discursiva”128. Claro que este autor referia-se essencialmente aos símbolos míticos, que têm algumas características distintas dos outros, nomeadamente no que se refere à comunidade entre sagrado e figura, enquanto na simbologia racional há consciência da separação; nomeadamente na antecedência do simbolizado em relação ao símbolo, enquanto na arte o símbolo é criado e faz surgir o que não existia antes; nomeadamente ainda no carácter hierofânico, enquanto na arte o símbolo remete para um exterior ao homem mas de realização possível na sensibilidade; e ainda porque o símbolo religioso exige fé e entrega ao absoluto imutável enquanto o símbolo estético eleva o homem à autonomia da realidade, embora o sentimento estético, ao contrário do religioso, não perdure

para além da obra de arte129. Esta orientação não é unânime. Nesta mesma

obra, o autor expõe a posição de George Santayana, que assimila religião e poesia: “a poesia chama-se religião quando intervém na vida; e a religião, quando meramente sobrevivência à vida, não é vista senão como poesia”; ou “a poesia é um vislumbre do divino e uma incitação à vida religiosa, a religião é poesia convertida em guia de vida130. Se por detrás da racionalidade e da imaginação pensarmos que está um ideal de vida ou de sublimação, terão mais significado as já citadas definições de poeta dadas por Jaime Cortesão, Leonardo Coimbra e Miguel Torga, numa linha de um lirismo sentimental neo- romântico, e apresentadas no ponto 1.1.2. (nota 73, página 44).

A tarefa de dar sentido à realidade não é, como vimos, exclusiva da filosofia como elaboração especulativa de uma explicação. Por isso e porque a história mostra, apesar de alguns momentos de monolitismo quase geral, que até a filosofia requer imaginação suficiente para o sujeito cognoscente se desdobrar em sujeito epistémico e questionar até os modos anteriores de racionalidade, temos de reconhecer à imaginação pelo menos uma legitimidade

128

Citado por Jacobo Kogan in Filosofía de la Imaginación, 63.

129 Idem, 61-80. 130

de facto. Georges Santayana, antes referido, defende mesmo que tudo sai da imaginação, não se distinguindo esta da inteligência. A distinção eventual que se faz é uma questão de discriminação entre várias funções.

Admitindo, no entanto, diferenças, temos de reconhecer ainda à imaginação uma outra fonte de legitimidade. E esta não lhe advirá de facto mas

de jure. E por direito compete à imaginação transformar a vida embelezando-

a131.

Existe, contudo, outra função atribuída à imaginação que a coloca num plano de complementaridade em relação à razão e que permite integrar nela a filosofia e a poesia: criadas pela vontade do homem em se situar pessoalmente na realidade, em lhe responder de forma responsável e em não perder um rumo, as duas exigiriam uma recuperação do passado, uma transformação do presente e um criar de futuro. Sendo assim, a imaginação realizaria uma progressão regressiva, expressão que Paul Ricoeur destina só à arte e a toda a produção cultural, para a contrapor à psicanálise132, e que significa uma construção nova sem negar as raízes do passado ou da arqueologia pessoal. Finalmente, no plano que poderíamos chamar pragmático-psicológico, e partindo desta acepção de P. Ricoeur, poderíamos ver que “a imaginação não é só uma construção do espírito, é também um meio pelo qual os homens agem sobre eles mesmos: uma acção autoplástica, que ganha tanto mais influência quanto a acção aloplástica (transformadora da realidade exterior) se apresenta impossível”133. Só que neste caso temos de reduzir a imaginação ao âmbito de produção cultural, aparecendo a função imaginativa como elaboradora de propostas de fuga para diante, mesmo à custa da recuperação de heróis passados, como acontece nas revoluções. Mas reconheceremos o valor desta dimensão, mesmo em termos genéticos de constituição da identidade, quando os modelos dos contos originam fantasias personalizadas e a esperança secreta de reverter em favor a médio prazo a adversidade presente (tantas vezes originada pela fantasia do desconhecido e da novidade!). Talvez seja por isso que Fátima França Neto diga que Torga põe a

131

KOGAN –Filosofía de la Imaginación, 99.

132

RICOEUR –O Conflito das Interpretações, 141-158. A visão psicanalítica assenta, segundo Ricoeur, na arqueologia ou no passado de cada um.

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poesia não ao serviço da sua verdade, mas da sua vida, isto é, do apaziguamento do seu desespero134.

Permanece uma questão: de que se alimenta a imaginação, isto é, qual o grau de liberdade da criatividade do artista? Fernando Guimarães coloca as raízes da imaginação humana na presença da cultura na poesia, embora reconheça que seja esta a dar sentido ao que a rodeia e não o espaço ou

situação a dar sentido ao poeta.135 Se enveredássemos por uma

particularização dessa cultura e nos situássemos numa análise materialista, teríamos de aceitar na base da imaginação a necessidade associada às condições sócio-económicas, relações de produção..., em resumo, à infra- estrutura. Esta perspectiva seria o extremo oposto da liberdade absoluta do devaneio. Duas citações apresentadas por Jacobo Kogan são protótipo desta defesa feita por Bachelard. Eis uma de L’Eau et les Rêves: “os verdadeiros interesses poderosos são os quiméricos: são os interesses que se sonham, não os que se calculam”. E outra de Psicanálise do Fogo: “a conquista do supérfluo dá uma excitação espiritual maior do que a conquista do necessário. O homem é uma criação do desejo, não uma criação da necessidade”136.

Há, portanto, uma matéria sobre que trabalha a imaginação. Para Bachelard, a matéria primordial são os elementos primordiais terra, água, ar e fogo. Porquê escolher um e não outro desses elementos é uma questão de

disposição caracterológica137. Sem preocupação de aprofundar demasiado

esta questão, poderíamos completá-la com duas informações: primeira, existe em Portugal uma excelente aplicação da teoria bachelardiana à literatura, sobre base do pensamento de Yung, feita por João Mendes, nomeadamente com a determinação precisa dos arquétipos usados por Fernão Lopes, Gil Vicente, Camões e P.e António Vieira. Veja-se, por exemplo, que em Fernão Lopes as grandes decisões e os grandes momentos geram-se ou até se executam na noite, com a segurança da terra e ao mesmo tempo com a força mais inferior da sociedade que é o povo. Também para Torga se poderia tentar

134

NETO –A Palavra e a Vida na Poesia de Miguel Torga e Giuseppe Ungaretti e outras reflexões,376.

135

GUIMARÃES –Conhecimento e Poesia, 64.

136

KOGAN –Filosofía de la Imaginación, 142 e 143, respectivamente.

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A temática caracterológica tem sido ultimamente objecto de interesse renovado. Veja-se a obra recente de Chaïm Perelman La Caracthérologie. Uma abordagem muito simples mas exemplificativa da sua aplicação à educação pode ver-se em MAIA –Valores, Educação e Adolescência, 84-86.

um estudo semelhante. Mas extrapolaria demasiado o âmbito do tema

fundamental que nos ocupa138. E também não poderemos ignorar o peso de

uma perspectiva psicanalítica para a opção temática — como também o será para uma interpretação do encobrir metafórico e da diversidade do descobrir interpretativo. Segunda informação: há uma vertente de racionalidade que me questiona perante aquilo que pode passar despercebido aos olhos dos outros. Esta racionalidade essencialmente de descoberta do absurdo ou, pelo menos, dos dilemas ou simplesmente da incongruência, é geradora de um sentimento que tem de ser revelado. Daí que também se possa dizer que “a imaginação é uma disposição para converter em valor estético e artístico os elementos da realidade material”139 ou da realidade social que de algum modo se tornaram significativos ou objectos de um prévio questionamento intelectual. Teremos, de algum modo, a complementaridade racional em relação ao artista na medida em que essa racionalidade é mais um elemento a explicar a ressonância do exterior no interior do poeta. Situado na natureza, dotado de uma organização somática específica e até individual, fruto de uma aprendizagem sensível e teórica emocional, o poeta só pode projectar o que lhe vai no interior, embora essa projecção se liberte de qualquer limite e obedeça à imaginação criadora, que procura prefigurar um ideal: “o artista é um ser humano e nada do humano lhe pode ser alheio; só que ele cumpre também uma função específica dentro da humanidade, que é a de prefigurar uma existência ideal”140.

A complementaridade antes referida entre a imaginação e a razão leva- nos a admitir no início uma intuição fundamental comum. É ela que tanto levanta novas hipóteses científicas como filosóficas; e é ela que permite ao mesmo tempo suportar a ideia de que a própria realidade só é verdadeira sob a

138

A título de exemplo e de forma sumária, poderia dizer-se que em Torga predomina a noite, junto com a solidão criadora; em Torga é evidente a preferência pela terra e a sua segurança ou ponto de referência; e até os contos mais trágicos ou mais líricos têm a noite como hora de trama, de sentimento ou desenlace. Veja-se o ‘Nero’, que agoniza de noite e morre ao amanhecer; o ‘Morgado’, que sofre a angústia durante a noite; o ‘Bambo’, que descobre de noite o sentido da vida; o ‘Natal’, do Garrinchas, que decorre na noite de consoada; a desfloração de ‘Lúcia’, numa noite de vindimas; a Isabel, de ‘Fronteira’, vive, ama e dá à luz na noite de consoada; etc., etc. E quando é de dia o auge do enredo, é normalmente a uma hora de repouso, ou na sesta ou na merenda – como é o caso de ‘Madalena’, cujas dores de parto de um filho feito levianamente depois de um magusto decorrem no pino do calor, mas na hora calma da labuta agrícola, que é a hora da merenda.

Mas também não será tão linear esta análise, porque o elogio do renascer da manhã é muito frequente; e a mesma figura de um sapo pode ser obstáculo a essa esperança de dia e de vida (Cf. ‘Conquista’, in Diário III, 122-123).

139 KOGAN –Filosofía de la Imaginación, 151. 140

perspectiva em que é vista. Não que ela seja enganosa, mas parcial141. A diferença entre o tratamento da intuição, que até pode ser mais profunda no poeta do que no filósofo, entre o filósofo e o poeta é, no entanto, significativa porque se aquele procura a fidelidade à realidade que ele pressente encoberta, este procura encobrir a realidade que o afecta, através de símbolos cujo conteúdo concreto o inconsciente lhe impede de reconhecer e cujo nexo lexical ele domina mas com alcance simbólico que lhe escapa na globalidade142. Por outro lado, a expressão dessas intuições tem logo à partida objectivos diferentes nos filósofos e no poetas: os primeiros procuram constituir sistemas que esclareçam, justifiquem e fundamentem essas intuições, porque a verdade se impõe por si mesma; os segundos procuram mais a admiração pelo modo como expressam do que a adesão àquilo que expressam, porque também confiam que a sua verdade se impõe por ele mesma, ao atingir directamente a emoção — donde parte a sua intuição. É assim que para um poeta ser lido como filósofo tem de ser possível descobrir o fundamento das suas crenças: ele não celebra a verdade mas o sentimento; e para um filósofo que se expressa de forma poética é necessário lê-lo em perspectivas sucessivas e não simultâneas: ora como poeta, ora como filósofo143. Mas nunca com um limite pré-determinado em que o implícito não possa ser revelado por um trabalho sobre a analogia poética e sobre a metáfora filosófica.

Para terminar, há uma questão que se levanta e que ao mesmo tempo serve de justificação ao valor da intuição para a racionalidade intelectual e para a racionalidade emotiva: como se legitima a conotação metafórica e se possibilita a sua compreensão? Se, como vimos, existe na metáfora e na analogia um distanciar da realidade para universalizar o seu alcance empático e inteligível, o que permite que uma rica imaginação criadora construa metáforas abertas à compreensão dos outros? A teoria substituvia, que Michel Meyer também critica, não serve: torna-se absurda e, além disso, qualquer nova frase é uma frase diferente144. A problematologia deste mesmo autor não

141

KOGAN –Filosofía de la Imaginación, 204-205.

142

PÊCHEUX –Semântica e Discurso, 177. 143

KOGAN –Filosofía de la Imaginación, 190-195.

144 Isso acontece mesmo nas correcções que se fazem a um poema: palavra substituída é comunicação alterada. E

explica que a linguagem poética possa colocar uma questão nova porque, directamente, só admite a linguagem como resposta a uma questão do leitor. Isto é: o problema será respondido, ou ilucidado, pela literatura ou poderá ser criado por ela? Estará neste aparente pormenor a diferença entre literatura e filosofia? Só três reparos: primeiro, a anormalidade é característica do artista: a

normalidade tende a destruí-lo145; segundo, toda a linguagem referencial

expressa um modo de relação com a realidade, mais do que a realidade em si; e o destinatário requer uma referencialidade de contexto para fazer substituições que não sejam literal mas figurativamente equivalentes146. Só que esta substituição apoiava e apoia-se na dimensão intelectual; para a dimensão emocional será preciso pressupor: uma intuição estética universal (?), um substracto inconsciente comum (?), um número limitado de arquétipos universais traduzíveis por um número ilimitado de metáforas (?), uma 'calofilia', que tem a força de uma 'calomania' (?)147. Terceiro reparo: parece não ser possível criar metáforas sobre o nada nem para o absurdo: se "não há cultura ortodoxa", também "não há flores pretas"148. E tratando-se de uma pedagogia da arte este reparo tem profundo sentido pois o acesso ao alcance metafórico é mais simples com uma conotação referencial mas elementar. E daí que a produção contista de Torga possa ser a mais pedagógica de toda a sua criatividade literária.