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2. RELAÇÃO, CONDIÇÃO E OPÇÃO DE ANTEU

2.3. Opção de Anteu

2.3.1. A Opção Fenoménica

A opção fenoménica da realidade e da profissão simboliza o que foi toda a sua vida: ter consciência das circunstâncias e fazer revertê-las em proveito dos outros através da sua realização pessoal e tomar ele próprio a iniciativa dessa reversão em vez de justificar uma apatia por lamentação das circunstâncias. Se em arquétipos se pudesse falar de modo claro, conforme antes foi abordado, a realidade e a profissão seriam tratadas por arquétipos diurnos, com a luz do tempo e a clareza da consciência a orientar a profissão e com o rigor de vida e a responsabilidade profissional a controlar a realidade. É essa a ordem que ele estabelece n'A Criação do Mundo: trabalhar durante o dia a ver doentes e parte da noite agarrado aos livros406. Quer dizer, com a luz do dia pretendia cegar a doença e na escuridão da noite pretendia recriar a realidade. O trabalho diurno é, paradoxalmente, o menos custoso e cansativo: faz no consultório o que qualquer um faria. De noite e nas férias é que desenvolve o trabalho mais penoso, a fazer o que só ele é capaz407.

A opção pela medicina foi justificada já por uma vertente consciente e por uma até inconsciente. Mas se o desenvolver da profissão acabou por corresponder às expectativas, não deixou de criar também dilemas que precisam de ser justificados de novo. Há uma justificação ideológica, uma psicossociológica e uma moral. Na justificação ideológica aparece simultaneamente a confirmação da sua realização como médico e da sua satisfação como poeta, através da subversão dada ao capital: usa o dinheiro da burguesia que lhe compra "algum suor e alguns livros", mas o que de melhor escreveu foi sobre a terra nativa e quando se sentiu mais profissional foi a tratar gente do povo.408 Na justificação psicossociológica vê conciliados o médico e o poeta porque os dois têm de estar abertos aos outros: o artista

406 A Criação do Mundo, 312. 407 Diário IV, 63. 408 Diário VIII, 13.

também é receptivo, para além de perceptivo.409 E na justificação moral explana-se o sentido geral da sua existência dentro dos limites possíveis: "é bom isto de ser médico e poeta. São dois a dar. Os jovens vêm-me pedir ajuda, porque faço versos; os velhos, porque os posso medicar. E lucramos todos. Eles por se sentirem que não estão sós no mundo; e eu, afinal, também (...)".410 E assim foi cumprindo a sua profissão de modo persistente, pontual e até ritual, mesmo com o sacrifício de uns pontos na cabeça por ter desabado sobre ele parte do tecto do consultório, com alguma tristeza por sentir o abandono progressivo dos doentes e com muita amargura por ter de fechar o consultório em favor de uma instituição bancária – sua senhoria.

A outra opção, por que era essencialmente designado e admirado, era a

da ficção e da devoção. Mas falar de devoção não significará menor sentido

de dever, menor sentido de obrigação. E o pior é que nessa ficção não podia estar nada que "... pudesse limar certas arestas, adoçar certos travos, doirar certas negruras..." – que até tornaria os livros mais aceitáveis. "Mas seria roubar-lhes a autenticidade (...). Testemunha de horrores, não podia entoar loas ao inefável. A violência estava na própria vida".411 E foi esta visão poética que comandou a sua vertente social, incluindo até a de médico. No filme da RTP 2, de 1994, sobre Torga, Frederico de Moura opina claramente sobre a influência do poeta na faceta do médico.

Pior ainda era a urgência e o sofrimento com que essa força interior se impunha: depois de escritas, as palavras pareciam caricaturas do tumulto e da tribulação interior; mas não as escrever era impossível: "a paz da mudez era- lhe (à alma) vedada. Galeriano do verbo, servidor da expressão, tinha de sofrer nela o martírio da sua própria incomunicabilidade"412. E a expressão material desse martírio eram os esforços por se expressar límpida e rigorosamente: "passo horas a sujar o papel com a mesma frase" – diz ele ao Santos, em Bruxelas, lamentando o seu "engenho tartamudo"413. E se ser médico era um acto de amor, ser poeta era uma prova. E Torga desenvolvia esse "exercício de

409 Diário IX, 59. 410 Diário VI, 175. 411 A Criação do Mundo, 197. 412 Idem, 277.

amar e suplício de escrever" com a profunda convicção de que é lento e penoso o caminho da arte, e (...) nela só o esforço aturado conta verdadeiramente"414. À inevitabilidade do destino de poeta juntavam-se, como se sabe, condições externas dificultadoras: o controlo ideológico e as consequências nefastas por não aderir ao regime. Por essas circunstâncias podia ser abandonado pelos bens materiais, como acontecera como médico na Casa dos Pescadores de Buarcos, onde ia duas vezes por semana. Mas com o médico que viajava de mãos vazias vinha o poeta, que muito aproveitava415.

Era o ser poeta que o não abandonava e que ele diz pôr acima até da mulher416. Este ser poeta que também acompanhava o médico no escritório e que, para além disso, tinha de conviver com o homem e o médico que também chegavam a entrar em conflito417, mas que ele queria juntar:

"...não há espelho mais transparente do que uma página escrita. É nela que fica testemunhada para todo o sempre a verdade irreversível ao autor: a sua autenticidade, se foi sincero, e a sua falsidade, se mentiu. É aí onde os possíveis leitores de hoje e os de amanhã o surpreendem e julgam, e ele próprio, que se procura, acaba por encontrar uma imagem à sua semelhança ou uma ficção irremediavelmente desfigurada" (A Criação

do Mundo, 313).

E se ser poeta não dependia de uma vontade inicial nem sequer de uma lei que se pudesse conhecer – conforme ele diz em 'Enigma':

Que lei rege o poeta, ninguém sabe; Que arcanjo o vela, também não. Um poeta não cabe

Na sina que se lê na sua mão (Diário IV, 65)

– precisava, no entanto, de ser justificada profundamente. Ora, se Torga fundamenta a sua opinião moral no esforço e no sacrifício, fundamenta também o ser poeta na fé ou devoção com que o é – conforme a ode 'A Baco':

(...)

Versos que não medi, que não contei, Mas que estão certos,

Pela sagrada fé com que tos dei! (Odes, 83).

A confluência das duas dimensões da opção de vida torguiana pode fazer-se no binómio sociedade e intimismo: porque em sociedade se

413 A Criação do Mundo, 293. 414 Idem, 311 e 312, respectivamente. 415 Idem, 425. 416 Idem, 409. 417

desenvolvia a profissão e na intimidade a ficção. Mas mais ainda: porque o modelo de sociedade desejado era realizado em si mesmo; e porque era de si mesmo que saía a grande fonte de alimentação de um ideal humanitário e de uma sociedade livre. Teresa Rita Lopes resume simbolicamente este binómio afirmando que o mais concreto ou o mais subjectivo é o mais universal e que se Torga fala primeiro de um horizonte que se vê de longe, depois calcorreia o caminho até lá palmo a palmo418. Da aspiração interior profunda à liberdade, Torga procurará passar à extensão dessa aspiração a todos, numa onda de ressonância cada vez mais ampla. É por isso que a mesma autora diz que, mesmo que os rituais colectivos não apareçam na obra de Torga, ele tem consciência e vontade de os simbolizar todos, ele pretende uma comunhão universal. No Prefácio à quinta edição dos Novos Contos da Montanha o próprio autor é claro no seu objectivo: "desde rapaz que defendo uma arte o mais pura possível nos meios e o mais larga possível nos fins"419. E esses fins humanos estão estabelecidos no espantoso texto que é o prefácio à segunda edição – onde Torga afirma também não pretender substituir a responsabilidade de nenhum dos seus irmãos nativos nem dos 'nateiros da planície'420.

É conhecido, e foi de algum modo explicado, o temperamento sociofóbico de Torga. Como poeta, essa solidão é confessada, confirmada e até fundamentada: a produção poética exige essa condição de solidão. Nos possíveis paradigmas torguianos, o diurno era o tempo da solidariedade profissional e o nocturno o tempo da solidão criadora ou inventiva. O poeta é diferente dos outros na noite e na solidão – diz Albano Martins, referindo-se ao

lugar do poeta421. O próprio Torga parece fazer a apologia dessa solidão

primordial e fundamental do homem, no volume III do Diário:

Solidão

Só, como a fonte no areal sem vida. Só, como o sol no céu deserto. Só, de cabeça erguida,

Humanamente certo.

418

LOPES –Miguel Torga: ofícios a um deus de terra, 10.

419

Novos Contos da Montanha, 13.

420

Pela sua beleza e por resumir tudo o que era grande objectivo e visão de Torga, reproduz-se em Anexo VI este prefácio.

421

Só, a nascer, a ser e a morrer, Recto como um pinheiro que brotou E cresceu e caiu, sem se torcer

Ao tempo vário que por ele passou (Diário III, 66).

Na Vindima lamenta "como era duro, na verdade, que toda a forma de existir tivesse interferências alheias"422. E afirma explicitamente: "tenho da arte uma ideia individualista, cada pedra da catedral marcada com a sigla do pedreiro que a lavrou"423. Mas esta última citação continua logo dizendo que, se tivesse de escolher, votava "pela catedral contra a assinatura do canteiro"; e quando se refere à solidão primordial diz também logo a seguir que a plenitude só é obtida com o comunicar com a natureza e com os outros iguais.

Portanto, esta convicção profunda da solidão poética e até da arte individualizada é a convicção de que é nessa "solidão de cada um, onde começa a realidade humana" – conforme opinião de Fernão de Magalhães

Gonçalves424. Do ser homem individual partirá o poeta, despojado do

circunstancial, para o entendimento do cosmos, de Deus e do homem – diz

Maria Manuel Maldonado425. E por isso o homem de Torga representa o

homem todo426. Esse mesmo homem que faz em Torga a ressonância

dramática de que a sua poesia faz eco427.

Mas esta era a vertente de uma solidão activa e de opção auto- justificada. Há ainda a outra solidão – a que era votado por consequência da singularidade: "a singularidade afirmada é uma solidão social assegurada"428. Se a anterior era símbolo de excelência natural (ao contrário do social, que seria símbolo de mal e opressão – na análise de Maria do Amparo Tavares429) esta será fonte de algum sofrimento e até de uma certa desilusão pelo egoísmo revelado. No poema Danação lamenta a falta de uma voz cordial que tornaria o

desespero menos pungente430. Mas, na sua pelo menos aparente, mas

frequente, contradição, até o amor está sujeito a este dilema de solidão e

422

Vindima, 239.

423

Diário V, 33.

424 GONÇALVES –Sete Meditações Sobre Miguel Torga, 40. 425

MALDONADO –Errância em Torga, 308.

426

OLIVEIRA –Miguel Torga: na rota de um peregrino I, 49.

427

OLIVEIRA –Miguel Torga: na rota de um peregrino I, 84.

428

Diário IX, 162.

429 TAVARES –O Paradigma Bíblico em Miguel Torga: "Bichos", 4. 430

solidariedade. E tanto diz que "o amor é um jogo em que se perde tempo. Todo o engano está na maneira como cada qual reage à derrota"431; ou que "... todo o amor é um grito/ Desesperado/ Que ouve apenas o eco..."432; como também se caracterizará na penúltima página do Diário como "defensor incansável do amor, da verdade e da liberdade, a tríade bendita que justifica a passagem de

qualquer homem por este mundo"433. Parece poder ver-se no pseudónimo

torguiano uma estranha conotação ou até contradição. O indivíduo responsável socialmente era o Adolfo Rocha, médico, cidadão que pagava impostos e que, apesar da origem envergonhada e rude e do temperamento áspero, foi sendo educado no trato e até cordial e afável com os doentes e amigos. O indivíduo irreverente e anárquico, capaz de um mutismo irónico ou de uma

descompostura altiva é Miguel Torga434. Mas o pseudónimo surge para

preservar a sua independência e até isolamento, para além de poder compensar, pela criatividade, as limitações e condicionantes da existência. Neste sentido, o pseudónimo significaria mais um medo e uma defesa de ameaça do que propriamente um egoísmo. O seu intimismo será fonte de solidariedade e não de desprezo ou simples desatenção à humanidade. É mesmo a sua condição de poeta que o faz descobrir carências onde só existe hábito e nulidade: qualquer outro veria na falta de carinho e meiguice do pai e do tio, quando fez tão rapidamente o liceu e o curso, uma simples ética de tenacidade. Mas o poeta buscava também a ternura doada, para além do dever cumprido.